19 Junho 2007
Na edição de maio da Revista National Geographic Brasil, o pesquisador Evaristo Eduardo de Miranda publicou o artigo intitulado “A invenção do Brasil”. Em seu texto, Evaristo relata a transformação do nosso “país tropical” pelas mãos dos povoadores e dos povos primitivos, desmistifica a história oficial que conta que os portugueses, ao descobrirem nosso país, encontraram um verdadeiro paraíso na Terra. Evaristo descreve, ainda, que existem indícios de que os ecossistemas daqui já se encontravam muito alterados em 1500, quando chegaram os portugueses.
A IHU On-Line entrevistou, por e-mail, o doutor em ecologia Evaristo Eduardo de Miranda. Na entrevista, Evaristo fala das ações que o ecossistema brasileiro vivia antes do descobrimento, da afirmação de que a Amazônia não era intocada até o ano 1500 e dos benefícios que os europeus trouxeram à fauna e flora brasileira.
Evaristo Eduardo de Miranda é graduado em Engenharia Agrícola pelo Institut Superieur d Agriculture Rhone Alpes Isara, França. Realizou mestrado e doutorado na área de ecologia na Université de Montpellier II, na França. Atualmente, é chefe geral da Embrapa Monitoramento por Satélite, representante do Ministério da Agricultura na Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional brasileira e Diretor do Instituto Ciência e Fé.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Que tipos de ações o ecossistema brasileiro já sofria antes do descobrimento, em 1500?
Evaristo Eduardo de Miranda - Os ecossistemas, pois são muitos e não um, estão sendo modificadas pelo homem (e por mudanças climáticas) há mais de 15 mil anos, no caso do Brasil. Os primeiros caçadores coletores contribuíram para a extinção de inúmeros animais, como as preguiças gigantes, e o desaparecimento dessa macrofauna levou a mudanças na vegetação em todo o Brasil, há cerca de 10 mil anos atrás. O uso do fogo, por esses mesmo caçadores, contribuiu para um aumento significativo dos cerrados. Se não houvesse homem na América do Sul, no momento da chegada dos europeus, as áreas de cerrado talvez fossem a metade do que são hoje. No meu livro “Quando o Amazonas corria para o Pacífico” (Rio de Janeiro: Vozes), eu tratei desses processos com bastante detalhe. Os imensos castanhais do Pará são frutos da atividade de coleta e plantio de castanheiras pelos caçadores coletores, e não florestas “naturais”. A própria extensão da floresta de araucária também tem uma história parecida, muito evidente no caso da maioria dos capões, que são, na realidade, uma relíquia das intervenções humanas (áreas de pouso, de abrigo, de acampamento mais permanente etc.). O mesmo ocorre com as florestas de bambu do Acre, associadas com o uso do fogo no Neolítico e muitas outras áreas tidas como naturais no Brasil. Elas são tão naturais quanto culturais.
IHU On-Line - Muitos julgam os portugueses como destruidores da Amazônia, pois deram início ao desmatamento e degradação da biodiversidade local. Porém, no seu artigo, o senhor afirma que a Amazônia não era intocada quando os descobridores chegaram. Quais são as conseqüências dessas afirmações para estudiosos desses problemas?
Evaristo Eduardo de Miranda - Associar os portugueses com o desmatamento da Amazônia é desconhecer o básico da história brasileira. O desmatamento da Amazônia é obra da segunda metade do século XX!!! É obra nossa, de nossos pais e avós. A ocupação dos europeus na Amazônia começou apenas, e de forma incipiente, nos finais do século XVIII e prolongou-se durante o século XIX, de forma extremamente discreta, ribeirinha, limitada ao extrativismo. A Amazônia é o lugar do território nacional onde os humanos estão há mais tempo, pelo menos 15 mil anos, e provavelmente mais. É o lugar onde o homem há mais tempo interage e altera a natureza no Brasil. O que nós devemos totalmente aos portugueses foi a incorporação da Amazônia ao território nacional. A Amazônia era espanhola, de direito e de fato. Esse legado colossal ao Brasil, de mais de 5 milhões de quilômetros quadrados, foi fruto de mais de dois séculos de lutas, investimentos, cartadas geopolíticas, expedições exploradoras, trabalho de evangelização, ações militares e muita determinação da Coroa portuguesa.
IHU On-Line - Quais são os benefícios para a biodiversidade, fauna e flora brasileira que os europeus trouxeram?
Evaristo Eduardo de Miranda - Com o povoamento português do Brasil no século XVI, a Europa, a África e a Ásia passam a contribuir com a construção de uma nova paisagem brasileira, através das espécies animais e vegetais importadas. Um século e meio mais tarde, nos campos e jardins das aldeias e povoados, nas mais diversas descrições, encontram-se, lado a lado, algumas plantas indígenas e uma infinidade de hortaliças, flores, árvores frutíferas, cereais, legumes, fibras e plantas medicinais, trazidas de todo o Planeta. Esse processo de introdução de plantas exóticas começou na orla marítima com a introdução da cana de açúcar, do arroz, das laranjas etc. e com o plantio de coqueirais (Cocus nucifera), trazidos do Oceano Índico. Não existe, no Brasil, a ocorrência de povoamentos naturais de coqueiros. Eram novas terras, semeadas por novas espécies. Transportadas sem suas principais pragas e doenças, em geral na forma de frutas e sementes, essas novas culturas - em que pese sua baixa diversidade genética, devido ao pequeno número de indivíduos na origem - vão crescer melhor no Brasil do que em suas terras africanas, asiáticas ou européias. Os portugueses promoveram o aumento da biodiversidade das terras brasileiras e a mudança dos hábitos alimentares e de vestuário, com a introdução de um grande número de espécies vegetais, dentre as quais destacam-se: cana de açúcar, algodão, manga, bananas, carambola, melão, melancia, arroz, feijão, trigo, aveia, sorgo, uva, coco, figo, fruta-pão, jaca, laranjas, limão, limas, tangerinas, tamarindo, café, cravo, canela, pimenta do reino, caqui, biribá, gengibre, romã, inhame, amoras, nozes, maçãs, pêras, pêssegos, sapotis, pinhas, graviolas e uma infinidade de hortaliças, temperos, ervas medicinais e tubérculos. Os principais animais domésticos e de exploração pecuária dos brasileiros, até hoje, foram todos importados pelos portugueses: cães, gatos, galinhas, patos, gansos, bicho da seda, coelhos, bovinos, jumentos, burros, abelhas, cavalos, ovinos e caprinos.
IHU On-Line - Que tipo de "marcas" a diversidade étnica e cultural, que povoou a Amazônia no ano 1000, deixou no local?
Evaristo Eduardo de Miranda - Cerca de 2.500 anos antes da chegada dos portugueses, a maioria das terras da Amazônia e do Brasil ainda não estavam nas mãos dos índios, como os conhecemos. Seus ocupantes eram outros grupos humanos, diversificados e de diferentes culturas. Eles também tiveram ascendentes e antecessores numa cadeia que remonta a mais de uma dezena de milhares de anos. Os territórios amazônicos ainda não haviam sido conquistados pelos movimentos de expansão dos povos tupi-guaranis, aruaques e caribes, principalmente, iniciados sobretudo a partir da época da Cristo, do ano 0. No ano 1.000, a Amazônia provavelmente atingiu uma das maiores densidades demográficas do passado, com uma grande diversidade étnica e cultural. A antropofagia e o canibalismo integravam e marcavam as endêmicas guerras inter-étnicas, em que o valor simbólico de homens, territórios e recursos naturais contava tanto quanto sua materialidade e o seu interesse de uso e consumo. A maioria dos povos antecessores dos atuais indígenas desapareceram diante dessa expansão, há cerca de 2.500 anos, deixando muitos vestígios. Os sobreviventes foram absorvidos e adotaram a língua e a cultura das novas populações indígenas dominantes que nunca constituíram um estado-nação como ocorreu nos Andes, vivendo sempre no Neolítico. Hoje, os índios amazônicos situam-se em territórios distantes dessas áreas de grande densidade demográfica por volta do ano 1.000 (os grandes vales amazônicos) e também são muito diferentes de seus antepassados de apenas 500 anos atrás.
IHU On-Line - E que tipos de marcas os europeus deixaram e que foram incorporadas a nossa paisagem?
Evaristo Eduardo de Miranda - O dado mais fundamental e permanente são nossas cidades, extremamente bem planejadas pelos portugueses, como os estudos históricos têm demonstrado, no que pese seu crescimento desordenado do século XX e XXI. O outro é nossa agricultura. No meu livro "Natureza, conservação e cultura" (São Paulo: Metalivros), eu mostrei como esses processos ocorreram nos principais biomas brasileiros. Turistas em visita ao Brasil têm o sentimento de usufruírem da vegetação tropical brasileira, extasiados diante da “natureza”. Na realidade, eles desfrutam de uma paisagem artificial, humanizada, criada pelo homem, com plantas exóticas. Um exemplo antigo é a narrativa do príncipe Maximiano de Wied Neuwied. Ele esteve no Brasil de 1815 a 1817, encantou-se e fez a seguinte descrição: “O europeu, transplantado pela primeira vez para esse país equatorial, sente-se arrebatado pela beleza das produções naturais, e sobretudo pela abundância e riqueza da vegetação. As mais belas árvores crescem em todos os jardins; vêem-se aí mangueiras colossais (Mangifera indica), que dão uma sombra densa e um excelente fruto, os coqueiros de estipe alto e esguio, as bananeiras (Musa) em cerradas touceiras (...) e grande número de outras espalhadas por jardins pertencentes à cidade. Esses soberbos vegetais tornam os passeios extremamente agradáveis; os bosques, que formam, oferecem à admiração dos estrangeiros [...]”. Todos vegetais citados são exóticos. Estavam incorporados de tal forma à paisagem que pareciam compor, naturalmente, a identidade do Rio de Janeiro.
IHU On-Line - O que há de verdadeiramente brasileiro na nossa natureza hoje?
Evaristo Eduardo de Miranda - O que você quer dizer por “verdadeiramente brasileiro”? As árvores e plantas exóticas integram hoje a paisagem rural, os jardins, as cadeias produtivas, a culinária e os hábitos alimentares nacionais, inclusive dos povos indígenas. Para mim, tudo isso é brasileiro. Elas representam a base das maiores transformações espaciais dos ecossistemas originais. Muitas cidades e regiões econômicas brasileiras devem sua existência e opulência a essas culturas, introduzidas pelos portugueses. Poucos são os que se lembram ou conhecem sua origem. Essa migração genética ainda deverá ser mais estudada em pesquisas futuras, por seu significado econômico, social e cultural. As paisagens rurais e os ecossistemas brasileiros são cada vez mais dependentes das intervenções humanas, tanto para a preservação como para a exploração. Quando o Planeta está mudando, há séculos, sob o impacto da intervenção humana, como imaginar um “cantinho” intocado?
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A invenção do Brasil. Entrevista especial com Evaristo Eduardo de Miranda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU