06 Mai 2007
Anjos do Sol é uma das ficções mais reais dos últimos anos e um dos filmes mais premiados do cinema brasileiro. Traz à tona a situação da prostituição e abuso sexual, problemas vividos por crianças e adolescentes, tão atuais e, ao mesmo tempo, tão escondidos e esquecidos pela sociedade brasileira. A IHU On-Line entrevistou o diretor, Rudi Lagemann, por telefone, e ele contou sobre o retorno social que o filme trouxe. Ele fala ainda da questão da violência e lembra alguns filmes que também tratam dos problemas brasileiros, que são pouco discutidas pela mídia. Segundo Rudi, “a mídia deve tentar trazer informações no sentido de provocar debates entre a sociedade”.
Rudi Lagemann é diretor de filmes publicitários. Atualmente, está trabalhando em três projetos paralelos sobre diferentes temas, “porque a atividade cinematográfica é muito cara”, diz. Um deles é um projeto que tem como tema a educação. Está trabalhando também em um filme épico. “Este é um projeto de longo prazo”, afirma Rudi. E o terceiro é um filme que, segundo ele, é um desejo antigo, sobre o universo feminino que contará a história de uma mulher durante cinco anos de sua vida. “Este será um filme mais existencialista, mais psicológico”, acrescenta.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O filme "Anjos do sol" parte de dados reais e é transformado em ficção. Essa forma é uma forma de atingir um público maior para aquilo que não tem espaço necessário nas mídias?
Rudi Lagemann – A princípio eu queria fazer um documentário. Eu levantei muito material, em nove anos de pesquisa, sobre o tema. Porém, quando você vai fazer um documentário sobre esse tema em específico que é a questão da exploração sexual de crianças e adolescentes, você não pode mostrar o rosto deles. Por isso, em todo o tipo de reportagem, em qualquer fato jornalístico relacionado a esse tema, você sempre só vê o personagem de costas, de lado etc. Para mim, o que faltava era dar uma cara ao problema, porque a sociedade brasileira o conhece, sabe que existe a questão da exploração sexual das crianças e adolescentes, mas não conhece a sua singularidade. E também não conhece quem está envolvido com este problema, pois se você não vê o rosto acaba mantendo uma distância do problema. Então, minha opção pela ficção foi dar um rosto a essa questão, pois aí sim o problema fica mais forte. Para atingir um público, seja o filme uma ficção ou um documentário, sempre depende de como é feito. Naquele momento, a minha decisão foi fazer a ficção.
IHU On-Line – Você concorreu no Festival de Cinema de Gramado com outros dois documentários importantes, "Pro dia nascer feliz" e "Serras da desordem". Podemos pensar nos documentários como uma tendência do cinema nacional atual?
Rudi Lagemann – O que acontece é o seguinte: a partir dos anos 1990, com o advento da TV a cabo e também com a facilidade de novos equipamentos digitais, tornou-se bem mais simples produzir um documentário. Então, o acesso é bem maior e mais fácil a qualquer pessoa que tenha uma idéia e queira registrar. Então, existe um número bem maior de documentaristas do que havia algum tempo atrás. Outra questão é que, com a exibição digital, facilitou essa questão de você exibir seu documentário justamente por ser captado em digital. Dentro disso, eu acho que sempre você terá alguns produtos de qualidade. Então, houve uma escola de documentários nos anos 1990 que surgiu e revitalizou o gênero. Como isso, temos uma gama de mestres do documentário para poder seguir e assistir, como o Eduardo Coutinho (1), que voltou a filmar com força e tem feito, praticamente, um documentário por ano, a exemplo de "Babilônia 2000" e "Santo forte". Temos ainda o João Moreira Salles (2), com "Notícias de uma guerra particular". E vários garotos, como a gente chama, fazendo novos trabalhos bem expressivos. Eu gosto muito de documentário. O seu estilo influenciou muito no meu modo de filmar o "Anjos do sol".
IHU On-Line – A idéia de fazer o "Anjos do sol" partiu de onde?
Rudi Lagemann – Eu comecei a pesquisar sobre trabalho escravo infantil. E o que mais surgiu em relação a isso foi a questão da exploração sexual de crianças e adolescentes. Eu comecei a trabalhar vários caminhos para abordar o tema, e não encontrava. Pensei em fazer um filme policial, mas a concepção eu não achei boa. Então, foi quando eu vi a notícia daquela menina que tinha o apelido de “50 centavos”, que era o valor que ela cobrava numa cidadezinha do interior de Pernambuco. Essa menina tinha dez anos, andava na cidade, sem ninguém dar a mínima atenção a ela, ao problema que enfrentava. Nesse momento, eu pensei: "esse é o filme: contar a história de uma menina e tentar falar porque a gente tem uma posição de inércia em relação ao assunto". Dessa idéia nasceu o filme.
IHU On-Line – Para você, qual é o papel que a imprensa tem desempenhado com essa problemática da prostituição infantil?
Rudi Lagemann – A questão da imprensa é a seguinte: eu acho que o papel da imprensa e da mídia é informar a população, porém ela deve tentar trazer informações no sentido de provocar debates e não no sentido de trazer fatos, digamos, que não provoquem nenhum tipo de contestação por parte dos expectadores, ouvintes e leitores. A população brasileira, pelo processo de cultura dela, sofre um processo de letargia, ou seja, inércia, paralisia, em relação à contestação do que acontece. O papel da mídia é importante no sentido de fomentar esses debates e sempre vai haver, dentro dela, em relação a essa questão de exploração sexual de crianças e adolescentes, aquele órgão da imprensa que vai tentar faturar em cima da notícia, do escândalo, assim como sempre vai ter aquele que órgão que levará o tema mais a sério. É uma questão própria do espaço democrático da mídia. Agora, todas as pessoas que são entendidas nesse assunto, que militam e trabalham nessa área, dizem que sempre que o assunto está na mídia há avanços, sejam avanços legais, sejam avanços no sentido de combater o problema. Então, é necessário manter em voga o assunto.
IHU On-Line – E que avanços você percebeu após o filme?
Rudi Lagemann – Nossa! Vi vários avanços. Eu mantenho o mesmo processo de pesquisa que tinha para realizar o filme, porque juntando esse material o filme virou uma referência no audiovisual relacionado ao tema. Isso é impressionante. Por exemplo, no próximo dia 18 de maio é o Dia Mundial de Combate ao Combate à Prostituição Infantil. A minha agenda, no mês de maio, está lotada, porque me chamam para vários eventos para discutir o tema. Depois do filme, eu passei a ter muito contato com pessoas da área e vejo, assim, um processo de progresso na legislação. O filme passou a fazer parte do acervo, tornou-se um instrumento de combate ao crime. Só para você ter uma idéia, a Organização Internacional do Trabalho adquiriu 200 cópias para usar no combate a esse crime pelo país. Em maio, vou assinar, com o Ministro da Justiça e com o Secretaria de Direitos Humanos,a permissão de se utilizar o filme em áreas de extrema pobreza, áreas onde você não tem cinema, nem locadora de vídeo e dvd, para que se possa exibir o filme à população como instrumento pedagógico relacionado ao tema. Ao mesmo tempo, vemos que nos últimos anos há um acirramento no combate a essa questão, afinal ela continua existindo, claro, ou seja, não é um problema que você resolverá em 10, 20 anos. É um problema muito antigo e está inserido na cultura do brasileiro. Ele não é só fruto da miséria. O brasileiro comete esse crime como também pessoas de outros países, mas aqui parece uma questão cultural. Veja: o maior número de crianças e adolescentes vinculados a esse crime são meninas, o que mostra como esta é uma sociedade machista. Há um número maior de negras e mulatas, ou seja, é uma sociedade que vive também o preconceito étnico e racial. E com o problema relacionado sobretudo a crianças e adolescentes, isso mostra um certo abuso de poder do adulto. Então, não adianta você terminar com a miséria, porque é uma questão cultural; só isso não vai resolver o problema. É preciso debater culturalmente para avançar, pois uma questão dessas não mudará de uma hora para outro; necessita-se um processo longo, mas você não pode parar agora para dizer que ela só será resolvida daqui a “tantos” anos. É preciso começar agora.
IHU On-Line – A denúncia da prostituição é muito forte durante todo o filme. Há, inclusive, cenas pesadas para quem não está acostumado a assistir esse tipo de problema. Contudo, ao mesmo tempo, percebemos um lado poético, pela fotografia utilizada. Como foi essa relação que você consegui fazer durante o filme?
Rudi Lagemann – Eu acho que fiz um filme do tipo “sessão da tarde”. Porque se eu fosse colocar ao pé da letra várias coisas que eu vi, as pessoas não ficariam dois minutos no cinema, porque é muito chocante. Você tem crianças de quatro, cinco anos envolvidas nisso, e nenhum espectador iria conseguir assistir ao filme se eu o apresentasse de forma mais realista. Então, as minhas preocupações eram: "como abordar o tema?"; "como vencer o que sórdido"; "como ultrapassar isso"? Então, o meu trabalho e o da equipe, foi criar um universo bem real, mas quando você faz um filme desses você constrói uma realidade, uma representação simbólica da realidade. Então, quais os símbolos a serem utilizados? A gente sabia que tinha que passar informações reais a todos os fatos que estavam no roteiro, como o arrastão da menina. Todos são fatos reais. O que eu fiz, no roteiro, foi amarrar esses fatos.
IHU On-Line – E como abordar isso?
Rudi Lagemann – A gente queria conquistar, primeiramente, o espectador através da emoção para que ele mantivesse uma certa, porém pequena, distância do que está acontecendo. Criei a emoção de ele ver a Maria e pensar que é assim que elas são. Se eu fosse me direcionar só para o lado do horror, para o chocante, ninguém ficaria até o final do filme. Claro, eu construí uma linha dramática, a fim de ter o espectador ao lado do filme e não contra ele. Nisso, entra, então, o tratamento fotográfico dado, a interferência da trilha. Tudo é feito no sentido de tornar um pouco mais ameno aquilo que é sórdido e cruel.
IHU On-Line – Após o filme, aconteceu a morte daquele menino no Rio de Janeiro, João Hélio, arrastado no carro pelos bandidos. É impossível assistir ao filme, ver a cena do arrastão da Inês e não relacionar os dois fatos. Como você vê a questão da violência, no geral, no país?
Rudi Lagemann – Eu acho que nos somos um país extremamente violento. Todos dizem que o Brasil é um país pacífico, tem um povo ordeiro, mas essa não é a realidade. Nós somos inertes e covardes para resolver questões coletivas, e individualmente o país é muito violento. Basta ver o número de mortos com armas de fogo, provocados por acidentes de trânsito etc. É um povo insano, muito violento e isso passa pela mesma questão que eu falei antes, que é a questão cultura, isto é, não é só uma questão de miséria. Você precisa diminuir o abismo social, distribuição de renda, mas precisa fazer também um trabalho longo de conscientização da população sobre o que está acontecendo. O cinema brasileiro vem, desde os anos 1950, batendo nessa tecla. Temos aí uma tradição do cinema brasileiro, onde eu me insiro hoje, mas que vem desde o Nelson Pereira dos Santos (3), com "Vidas secas" e com "Rio 40º". Isso vai passando pelas décadas e você vê "Barra pesada", nos anos 1970. E nos anos 1990, chegamos ao Cidade de Deus (4).
A gente chama esse tipo de cinema de "pipoca engajada". É um tipo de cinema que é para fazer uma narrativa cinematográfica que tenha um pedaço de entretenimento e, ao mesmo tempo, tenta trazer o público para o debate relacionado ao tema. Porque fazer filme sociológico é muito chato. Acho mais complicado se fazer esse tipo de obra, que tenha um cunho de entretenimento, que na verdade é a vocação original do espetáculo do cinema, e com o passar dos anos foi apresentando várias formas. Então, esse cinema social brasileiro é muito forte na história de cinematografia brasileira e o combate à violência passa por isso. Antes a gente conversou sobre documentários e temos alguns recentes muito interessantes sobre a questão da violência, como "Prisioneiro das grades de ferro", que é muito interessante, pois foi filmado por quatro prisioneiros mesmo. O diretor cedeu a câmera e eles filmaram o submundo do universo do Carandiru. Temos vários trabalhos que envolvem esse tema. O cinema ainda é o principal documento histórico sobre o país. Se você quer entender o Brasil, você deverá assistir aos filmes das décadas de 1970 e 1980. Isso você não vai encontrar em novelas: a produção audiovisual está nos filmes.
IHU On-Line – No "Anjos do sol", há uma cena em que a personagem Sheila diz que gosta de viver com o personagem Saraiva. Dentro de sua pesquisa, de que modo você constatou que há meninas que gostam de viver dentro com esse problema?
Rudi Lagemann – Há duas questões aí: eu li muitos depoimentos das meninas, tanto de rua quanto de jovens prostitutas, que dizem que, às vezes, a realidade em casa é muito mais pesada do que a realidade que elas encontram na rua ou dentro de um prostíbulo. Em casa, por sofrer agressões física, verbal e psicológica, a criança foge de casa. O que acontece muito é a menina fugir aos cinco, seis anos de casa, ir para a rua onde recebe o abrigo de grupos de crianças que também vivem na rua e até os oito anos ser considerada a mascote do grupo. A partir dos oito anos, ela vira uma moça, já começa a fazer programa, a trazer dinheiro para grupo. Ao viver na rua, ela passa também a ser independente. É um problema porque as organizações encontram as crianças, levam-nas aos abrigos e depois elas querem voltar às ruas, não querem ficar nos abrigos, não conseguem mais viver com qualquer tipo de instituição social, querem viver “em liberdade”. Então, existem vários depoimentos que meninas que dizem que gostam das ruas e dos prostíbulos, que afirmam preferir as ruas a serem empregadas domésticas. Existe isso e eu precisava colocar isso no filme, mostrando como é complexa essa questão. Não é simples assim, colocar num abrigo, numa clínica e está resolvido. Você tem que tanto resolver a questão das crianças como de suas famílias.
Notas:
(1) Eduardo Coutinho: um dos mais importantes nomes do documentário brasileiro, teve uma formação que passou pelo cinema, teatro e jornalismo. Seu trabalho é caracterizado pela profundidade e sensibilidade com que aborda problemas e aspirações da grande maioria marginalizada, seja em favelas, no sertão ou na boca do lixo.
(2) João Moreira Salles: diretor dos documentários "Nelson Freire" (2002) e "Entreatos" (2004). Irmão mais jovem do cineasta Walter Salles Jr., começou sua carreira em 1985, fazendo roteiro e texto para a série"Japão, uma viagem no tempo", exibido na extinta TV Manchete. A consagração veio a partir de "Notícias de uma guerra particular" (1999), co-dirigido por Kátia Lund, seguido de "6 Histórias Brasileiras" (2000).
(3) Nelson Pereira dos Santos: Considerado um dos mais importantes cineastas do país, seu filme "Vidas secas" um dos filmes brasileiros mais premiados em todos os tempos, sendo reconhecido internacionalmente como uma obra-prima. Foi um dos precursores do movimento do Cinema Novo. Em 2006, Nelson foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, sendo o primeiro cineasta brasileiro a se tornar imortal.
(4) Cidade de Deus: Lançado em 1997, "Cidade de Deus", foi dirigido por Fernando Meirelles. Conta a história do menino Buscapé através da realidade de uma das maiores e mais violentas favelas do Rio de Janeiro, a Cidade de Deus. Seu elenco foi formado por centenas de jovens atores, quase todos em seus primeiros papéis no cinema.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Anjos do sol. Uma ficcção real. Entrevista com Rudi Lagemann - Instituto Humanitas Unisinos - IHU