09 Novembro 2014
“Pelo que se pode observar na documentação, é inegável o poderio fundiário da Companhia de Jesus na América portuguesa e mesmo fora dela”, diz a pesquisadora.
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Uma complexa estrutura econômica fundava as bases do projeto missionário jesuíta na América portuguesa. Com os planos de conversão de milhares de almas e na educação de um grupo privilegiado de colonos, era preciso que cada colégio angariasse fundos que lhes garantisse independência econômica. Conforme a historiadora Marcia Sueli Amantino, várias foram as soluções encontradas: “Além dos imóveis urbanos que eram alugados aos moradores das cidades, angariaram, através de doações reais ou particulares, imensas extensões de terras onde desenvolveram variada produção de gêneros primários e prestaram diversos serviços à população ou às autoridades”.
Os colégios, mais do que espaços de sacerdócio, ensino, socorro de enfermos, ou mesmo venda de carnes, tornavam-se o centro administrativo que controlava os interesses econômicos das fazendas, dos aluguéis, dos arrendamentos, da compra e venda de terras, gado e escravos. Além disso, “ao conhecerem melhor os diferentes grupos indígenas e perceberem um pouco mais sobre suas culturas, vistas muitas vezes como selvagens e inconstantes, perceberam que precisariam estabelecer regras mais eficientes de catequização, criando os aldeamentos”. Neles, os índios convertidos trabalhavam para o aldeamento, para os religiosos e para os colonos mediante um salário. Serviriam também “como mão de obra para as obras públicas, socorrendo as regiões em caso de ataques de outros índios e de estrangeiros”.
Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, a professora ressalta que a atuação da Companhia de Jesus estava em consonância com o horizonte social de sua época. “Assim, não é possível imaginar que em suas fazendas poderia haver algum outro tipo de trabalhador que não o escravo ou, no mínimo, um trabalhador compulsório. A base do crescimento econômico da ordem no período colonial foi a utilização da mão de obra escrava, assim como de qualquer outra ordem religiosa ou de indivíduo leigo”. O questionamento, no entanto, sempre ocorreu. E definir quem poderia e quem não poderia ser escravo, tanto entre índios quanto entre negros, era uma preocupação da Companhia.
Marcia Sueli Amantino possui graduação em História pela Universidade Federal Fluminense - UFF, com mestrado e doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Concluiu ainda pós-doutorado pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e pela Universidade de Évora, em Portugal. Atualmente é professora do Programa de Pós-Graduação da Universidade Salgado de Oliveira – Universo, e lidera o Grupo de Pesquisa Sociedades escravistas nas Américas.
Amantino é co-coordenadora da Rede de Grupos de Pesquisa Escravidão e mestiçagens e do Centro de Estudos da presença africana no Mundo Moderno, liderados pelo prof. Eduardo França Paiva (UFMG). É também organizadora de diversos livros, entre eles Santa Cruz: de legado dos jesuítas a pérola da Coroa (Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013), Povoamento, Catolicismo e escravidão na Antiga Macaé (séculos XVI-XIX) (Rio de Janeiro: Apicuri, 2011) e Escravidão, mestiçagens, ambientes, paisagens e espaços (São Paulo: Annablume, 2011).
A professora coordena o Seminário temático simultâneo A Companhia de Jesus e as bases econômicas de seu projeto missionário na América portuguesa, na Unisinos, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU. O evento, que se estende de 11 a 13 de novembro, das 9h às 12h, faz parte da programação do XVI Simpósio Internacional IHU - Companhia de Jesus. Da supressão à restauração. A programação completa pode ser encontrada aqui.
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Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual era o projeto missionário dos jesuítas na América portuguesa?
Marcia Sueli Amantino - O projeto missionário dos jesuítas na América portuguesa era o de salvar as almas dos colonos que, em teoria, já eram cristãos, trazê-los novamente para o seio da igreja e dos comportamentos católicos, e converter os indígenas à fé católica por meio do ensinamento do cristianismo.
Inicialmente, acreditaram que os índios eram indivíduos puros e fáceis de serem convertidos. Porém, com o passar do tempo e com as inúmeras dificuldades enfrentadas por parte das resistências indígenas, os religiosos perceberam que a tarefa não era tão simples assim e tiveram que adaptar e negociar suas práticas cotidianas de conversão.
Ao conhecerem melhor os diferentes grupos indígenas e perceberem um pouco mais sobre suas culturas, entendidas não mais de forma positiva, mas vistas muitas vezes como selvagens e inconstantes, perceberam que precisariam estabelecer regras mais eficientes de catequização, criando os aldeamentos. Estes seriam terras ocupadas pelos índios sob a administração religiosa e temporal dos jesuítas. Os índios deveriam ser convertidos, trabalhar para o aldeamento, para os religiosos e para os colonos mediante um salário e servir também como mão de obra para as obras públicas, socorrendo as regiões em caso de ataques de outros índios e de estrangeiros.
IHU On-Line – Como, na América portuguesa, os jesuítas construíram suas bases econômicas?
Marcia Sueli Amantino - A base econômica dos jesuítas na América portuguesa foi construída, inicialmente, com a obtenção de sesmarias doadas pelos governadores gerais, na segunda metade do século XVI. Normalmente, os motivos alegados para essas doações eram os constantes e essenciais serviços prestados pelos religiosos na conversão dos índios e a consolidação da conquista numa dada região, bem como pelos papeis desempenhados na direção dos grupos indígenas que lutavam ao lado das autoridades.
Nessas sesmarias, os inacianos erguiam seus colégios e igrejas e, posteriormente, mais afastadas, suas fazendas. O projeto missionário jesuítico baseado na conversão de milhares de almas e na educação de um grupo privilegiado de colonos fez com que cada colégio necessitasse angariar fundos que lhes garantisse independência econômica. Várias foram as soluções encontradas por cada colégio e sempre em consonância com as práticas sociais e econômicas locais. Além dos imóveis urbanos que eram alugados aos moradores das cidades, angariaram, através de doações reais ou particulares, imensas extensões de terras onde desenvolveram variada produção de gêneros primários e prestaram diversos serviços à população ou às autoridades.
Os colégios eram, portanto — além de um espaço físico onde os padres ministravam suas aulas, socorriam enfermos, vendiam carnes, hospedavam pessoas importantes e, é claro, praticavam seus dogmas religiosos —, um centro administrativo que controlava os interesses econômicos das fazendas, dos aluguéis, dos arrendamentos, da compra e venda de terras, gado e escravos, bem como dos interesses dos aldeamentos tanto no que se refere aos aspectos religiosos quanto aos temporais.
Após o estabelecimento dos aldeamentos, esses tornaram-se também um motivo a mais para a entrega de terras para os inacianos, com a justificativa de que eram para a manutenção de grupos crescentes de nativos que estavam tornando-se cristãos e que atendiam e defendiam os colonos e as vilas e cidades em seus entornos.
Além das terras, os inacianos recebiam também doações de produtos, animais, imóveis e escravos. A partir dessas benesses, desenvolveram uma economia bastante eficiente e conseguiram, como poucos, mantê-la, ainda que passando em alguns momentos por graves crises financeiras.
IHU On-Line – Como foi a relação entre os jesuítas e os indígenas durante os séculos XVI e XVII por ocasião da chegada da Companhia de Jesus ao Rio de Janeiro?
Marcia Sueli Amantino - Na região onde mais tarde foi fundada a cidade do Rio de Janeiro, era comum, desde o século XVI, o desembarque de estrangeiros que se aliavam aos grupos indígenas inimigos dos portugueses e passavam a comercializar e a montar feitorias no litoral.
Há inúmeras notícias de que franceses, flamengos e ingleses negociavam com eles e obtinham grandes carregamentos de pau-brasil. São comuns na documentação do século XVII e seguintes as constantes reclamações por parte dos moradores ou autoridades destas regiões de que os estrangeiros associados aos índios frequentavam o litoral, vivendo alguns, inclusive, entre os nativos.
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“A base econômica dos jesuítas na América portuguesa foi construída, inicialmente, com a obtenção de sesmarias doadas pelos governadores gerais” |
Na capitania do Rio de Janeiro, os jesuítas aportaram durante as tentativas de expulsão dos franceses e controle dos índios Tamoios na segunda metade do século XVI, e, vencidas as dificuldades iniciais, obtiveram em 1565, de Estácio de Sá, a primeira doação de terras na região com o intuito de edificarem seu colégio. Eram as terras chamadas de Iguaçu. Nela, além do colégio, foram estabelecidas as fazendas de São Cristóvão, o Engenho Velho e o Engenho Novo. Para tentar impedir as alianças entre índios e estrangeiros e garantir seu domínio, a coroa portuguesa lançou mão de algumas estratégias que iam além dos ataques às aldeias indígenas hostis: os aldeamentos jesuíticos.
Aldeamentos
Os aldeamentos foram um importante passo neste sentido, posto que contribuíram para a pacificação dos índios, os retiveram como mão de obra e, acima de tudo, serviram como barreiras aos avanços de outros grupos hostis e impediam o desembarque de estrangeiros. Além disso, eram também centros fornecedores de homens para quaisquer necessidades. Estes índios, por exemplo, foram usados para impedir a entrada de piratas no litoral de Cabo Frio ou expulsar os que por ventura conseguissem desembarcar. Os índios aldeados de São Pedro do Cabo Frio tornaram-se especialistas nesta tarefa. Em 1617, no ano seguinte e, novamente, em 1630, conseguiram derrotar e expulsar os holandeses que buscavam Pau-brasil na região. Graças a isto, os jesuítas conseguiram as doações das sesmarias onde, anos depois, seriam fundadas as fazendas de Macaé, do Colégio e de Campos Novos. A justificativa para a solicitação era a de que os índios haviam sido essenciais na manutenção da área e que a cada dia aumentava o seu número e, portanto, precisavam de mais espaços. Os aldeamentos serviram, ainda, para proteger a cidade do Rio de Janeiro de tentativas de invasões de estrangeiros e de outros grupos indígenas vindos do interior.
Analisando este panorama, identifica-se que já no século XVII havia do lado Leste da cidade do Rio de Janeiro dois aldeamentos e quatro fazendas jesuíticas. Observando a distribuição geográfica das fazendas, verifica-se que estavam situadas em pontos estratégicos muito próximos aos aldeamentos em cada uma das regiões. A Fazenda de Santo Ignácio dos Campos Novos ficava localizada na região de Búzios, bastante próxima do aldeamento de São Pedro do Cabo Frio. A Fazenda de Sant’Anna, também chamada de Fazenda de Macaé, estava entre a do Colégio de Campos dos Goitacazes e a de Nossa Senhora da Conceição de Campos Novos. As três possuíam fortes ligações entre si. No Colégio, eram criados rebanhos para, posteriormente, serem enviados para engorda nas duas outras. De lá, saíam para abastecer o mercado do Rio de Janeiro. Numa região um pouco mais afastada deste complexo, verifica-se que o mesmo padrão ocorreu. Próximo ao aldeamento de São Barnabé havia a Fazenda da Papucaia. Os exemplos podem ser estendidos aos outros aldeamentos. São Lourenço ficava muito próximo à Fazenda do Saco de São Francisco Xavier. O aldeamento de São Francisco Xavier de Itinga, depois chamado de Itaguaí, se relacionava de maneira muito próxima com a Fazenda de Santa Cruz. Além destas fazendas maiores, também existiam os Engenhos que ficavam mais próximos à cidade do Rio de Janeiro e eram responsáveis por parte de seu abastecimento e dos aldeamentos em caso de necessidades, não apenas com alimentos, mas também com madeiras e peças de olarias.
IHU On-Line – De que maneira funcionava a estrutura de poder econômico e social construída pelos jesuítas desde o século XVI no Brasil?
Marcia Sueli Amantino - Os religiosos da Companhia de Jesus estavam inseridos nas lógicas sociais, econômicas e políticas do mundo colonial, e eram espaços agrários pautados por relações escravistas que lidavam com representações ligadas ao funcionamento desta sociedade. Administravam suas propriedades agrárias, transformando-se em senhores de terras e de cativos, ao mesmo tempo que eram membros de um universo religioso e como tal possuíam dogmas e comportamentos específicos que as sociedades, de uma forma ou de outra, esperavam que eles seguissem. Havia ainda outro complicador, pois ao administrarem os aldeamentos acabavam por controlar centenas de braços aptos ao trabalho e definiam quando, como, para quem e por quanto os índios trabalhariam.
Já na metade do século XVIII a Companhia de Jesus era a instituição que possuía o maior número de escravos nas Américas e milhares deles se encontravam na América lusa e na capitania do Rio de Janeiro; essa mão de obra se manteve estável por toda a centúria. Em 1759, no momento da expulsão dos jesuítas, eles possuíam, na capitania do Rio de Janeiro, cerca de 3.400 escravos. Essa mão de obra produzia para abastecer os aldeamentos/missões, as cidades próximas, ou mesmo outras localidades, mas, acima de tudo, era responsável pela geração de lucros para os Colégios dos Jesuítas e para a Companhia de Jesus. Este enriquecimento será uma das justificativas para as constantes queixas proferidas contra a Companhia de Jesus. Acreditava-se que os inacianos teriam se distanciado de seus dogmas e se tornado ricos fazendeiros e/ou comerciantes.
Cada fazenda possuía suas próprias características e elementos constitutivos. Entretanto, havia alguns itens que estavam presentes em todas elas. Com exceção de algumas que acabaram ficando muito próximas aos centros urbanos, todas as outras eram centros criadores de bovinos, equinos, ovinos e caprinos. Contavam também com matas de onde retiravam madeiras que abasteciam as cidades e eram usadas na construção de casas, templos, edifícios públicos e também na fabricação de embarcações, que normalmente eram navegadas pelos índios dos aldeamentos/missões.
Produziam também produtos agrícolas típicos das regiões. Além disso, as fazendas contavam com espaços destinados aos trabalhos nas ferrarias, carpintarias e olarias, onde trabalhavam os escravos mais habilidosos e mais caros dos plantéis. Para os que ficavam doentes, existiam as enfermarias/hospitais com boticas repletas de remédios e unguentos. Os livros que ensinavam a utilização destes, bem como os outros, ficavam nas bibliotecas, espaços no interior das casas dos padres, sedes de cada uma das fazendas. Próximo a elas, havia a igreja consagrada ao protetor da fazenda, as senzalas coletivas e as casas separadas para as famílias dos escravos, que eram bastante numerosos. Estes possuíam suas próprias roças e gado, que podiam ser vendidos nas feiras.
A montagem e manutenção destas estruturas econômicas agrárias por parte da Companhia de Jesus foi sempre justificada pela necessidade de gerar riquezas para que com ela ocorressem as condições propiciadoras do crescimento econômico, político e social destes religiosos na Colônia e, por que não, do próprio projeto colonizador.
A situação para os jesuítas não mudou muito do século XVI até a primeira metade do século XVIII e a documentação dá conta deste poder exercido pelos inacianos através do controle local e regional. Todos os seus complexos econômicos propiciavam um grande poder político e econômico que só será alterado, no caso da América portuguesa, a partir de 1759 e em 1767 em terras da América espanhola, momentos em que foram expulsos.
A conjuntura não era mais a mesma dos séculos iniciais e diferentes categorias sociais começaram a pressionar e os jesuítas foram identificados como elementos de perigo às Coroas. Daí para suas expulsões foi um passo. Suas fazendas, escravos e bens foram confiscados e, posteriormente, leiloados. A expulsão dos mesmos e o confisco de seus bens definirão mudanças significativas nos rumos da catequese, das relações de poder e no controle sobre as terras e mão de obra. Antes, os jesuítas eram vistos como os únicos capazes de lidar com os indígenas e transformá-los em vassalos dos reis. Mas, a partir de uma série de mudanças significativas ao longo do século XVIII, a situação da Companhia de Jesus alterou-se radicalmente. De aliados, tornaram-se inimigos das principais monarquias católicas.
IHU On-Line – Até que ponto a ascensão da Companhia de Jesus na América Latina, especialmente no Brasil, deu-se por conta de sua perspectiva missionária e até que ponto foi por conta dos ataques a colonos e indígenas e à base da escravização?
Marcia Sueli Amantino - É importante perceber que a atuação da Companhia de Jesus no que diz respeito às suas práticas econômicas estava em consonância com o que fazia o restante da sociedade colonial. Assim, não é possível imaginar que em suas fazendas poderia haver algum outro tipo de trabalhador que não o escravo ou, no mínimo, um trabalhador compulsório. A base do crescimento econômico da ordem no período colonial foi a utilização da mão de obra escrava, assim como de qualquer outra ordem religiosa ou de indivíduo leigo.
O que sempre foi questionado por membros da Companhia de Jesus era quem poderia ou deveria ser escravo, tanto para os índios quanto para os africanos. Nos dois casos, deveriam ser os capturados em guerras justas. No caso dos índios, os obtidos por resgates, também chamados de índios de corda, poderiam ser escravos por um determinado tempo para cobrirem os gastos com sua salvação. Como para os africanos era quase impossível saber quem havia sido capturado em guerra justa, a Companhia de Jesus chegou à conclusão de que não valia a pena fazer esse tipo de pergunta a um desembarcado. O melhor a fazer, já que com a escravidão ele recebia uma chance de ser salvo por meio da conversão ao cristianismo, seria tratar o escravo bem e transformá-lo em um bom cristão.
IHU On-Line – Quem foram os principais opositores aos jesuítas no Brasil? Que conflitos de interesse havia entre a corte portuguesa e a Companhia de Jesus?
“Os religiosos da Companhia de Jesus estavam inseridos nas lógicas sociais, econômicas e políticas do mundo colonial”
Marcia Sueli Amantino - Desde os anos iniciais da chegada dos jesuítas à América portuguesa, ocorreram alguns conflitos envolvendo os interesses dos religiosos, de um lado, e os colonos, de outro. A principal causa disso era, sem dúvida, a questão do controle sobre a mão de obra indígena. Os colonos queriam utilizar o maior número possível de indígenas como escravos, e os religiosos, tendo à frente alguns padres jesuítas, acreditavam e defendiam que apenas os aprisionados legalmente, por meio das guerras justas, poderiam tornar-se escravos. As leis de liberdade geral dos índios, é claro, transformavam a todos, pelo menos, em teoria, em homens livres. Os jesuítas lutavam para que pelo menos as leis fossem respeitadas e isso gerava uma série de disputas com os colonos e mesmo com as autoridades.
Entretanto, os padres jesuítas tiveram que lidar também com os questionamentos sobre seus privilégios econômicos. A produção dos inacianos, desde a provisão real de 17 de março de 1576, gozava da vantagem real de não ser taxada. Segundo esse documento, em função dos serviços prestados à Coroa na conversão dos gentios, no ensino e doutrina dada à população e nos benefícios espirituais deles decorrentes, e contando ainda que, para isto tudo, era necessária uma grande despesa por parte dos Colégios, o rei determinava que a partir daquela data não fossem mais cobradas taxas na saída ou entrada de produtos. Bastava para isso que os religiosos comprovassem que os artigos eram seus.
Além disso, tinham permissão para desfrutar de embarcações próprias que transportavam de um lado para outro sua produção, sem qualquer fiscalização das autoridades. Por tudo isso, seus artigos possuíam valores muito melhores do que os dos colonos. Recebiam também produtos de fora com preços inferiores ao restante da população. Contudo, os religiosos estenderam esse privilégio ao pagamento dos dízimos, e isso gerou uma série de conflitos com as autoridades metropolitanas. Sempre que a situação política local ou na Península Ibérica não estava muito favorável aos interesses dos inacianos, tal querela vinha à tona e gerava uma série de documentos de parte a parte tentando provar quem teria razão. O fato é que os jesuítas nunca aceitaram pagar os dízimos.
IHU On-Line – O que levou o Marquês de Pombal a promover a expulsão dos Jesuítas de Portugal e do Brasil?
Marcia Sueli Amantino - Pelo que se pode observar na documentação, é inegável o poderio fundiário da Companhia de Jesus na América portuguesa e mesmo fora dela. Numa sociedade onde a dignidade social era medida pela posse da terra e pelo número de cativos que se possuísse, não há como não identificar os inacianos como uma ordem extremamente poderosa que amealhava privilégios e, com estes, condições favoráveis aos seus intentos. Os colégios eram geradores de grandes somas em dinheiro e em produtos. Mercadorias circulavam na colônia e muitas eram exportadas para Europa, África e Ásia. Uns colégios eram mais poderosos que outros e alguns possuíam dívidas, mas a maioria conseguia gerar lucros que eram reinvestidos na produção, na compra de cativos, de mais terras, de ferramentas e, é claro, de objetos de culto, de decoração para as igrejas e de manutenção das aldeias indígenas.
A posição estável dos jesuítas frente ao poder régio começou a sofrer reveses à medida que se aproximava a segunda metade dos setecentos e teve como ponto decisivo a ordem de expulsão da companhia de Jesus de todo o reino. Percebe-se que o banimento dos inacianos foi o clímax de um processo de desgaste da Ordem que já vinha se arrastando há alguns anos. Na colônia, as principais queixas eram contra o controle que os padres exerciam sobre a mão de obra indígena e sobre as melhores terras, bem como o fato de eles não terem seus produtos taxados nas alfândegas. Na corte, dentre outras reclamações, preponderavam a interferência da cúpula dos jesuítas nos negócios do Estado e também a alegada riqueza não tributada.
A partir daí, a situação dos padres da Companhia, que já era bastante difícil junto a Carvalho e Melo , ficou insustentável. Violentas campanhas apontando os religiosos como traidores da coroa e desobedientes das vontades reais irromperam por todos os cantos. O ponto culminante deste processo de descrédito da ordem inaciana frente aos interesses da coroa foi a suposta tentativa de assassinato régio. Acusados de terem conspirado contra o rei, foram declarados inimigos e banidos de todo o reino e colônias.
IHU On-Line – Após a supressão, quem “herdou” as propriedades dos jesuítas? Em que se transformou o poderio econômico deles no Brasil após a supressão?
Marcia Sueli Amantino - Junto com a ordem de expulsão dos jesuítas vieram documentos ordenando que todos os bens que eles possuíam deveriam ser inventariados e sequestrados para o tesouro régio. Os bens deveriam ser leiloados em praça pública pelos melhores preços que conseguissem e os valores obtidos deveriam ser enviados para os cofres de Lisboa.
Entretanto, as terras jesuíticas, pelo menos as que ficavam em torno da cidade do Rio de Janeiro, eram bastante grandes e isso dificultava a venda. Assim, decidiram que venderiam as terras divididas em parcelas/chácaras para os que já eram arrendatários dos jesuítas. Já as fazendas mais afastadas do núcleo urbano foram leiloadas em sua totalidade, algumas, inclusive, com seus escravos. Outras, como foi o caso da Fazenda de Santa Cruz, nunca foram leiloadas. Assim, pode-se dizer que muitas pessoas ficaram com partes das terras que haviam pertencido aos jesuítas. A saída deles significou uma redistribuição agrária impactante, principalmente na cidade do Rio de Janeiro.
Por Ricardo Machado e Andriolli Costa
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Sacerdotes, administradores e empreendedores. As bases econômicas do projeto missionário jesuíta. Entrevista especial com Marcia Sueli Amantino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU