07 Outubro 2014
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“Quando nos libertamos da ideia do belo como um objeto de contemplação, a preocupação central da estética passa a ser a forma como os corpos se percebem através do campo social. A estética se torna uma ciência do contato. Contato entre as epidermes. Contato entre corpos. Contato entre rostos”, afirma a pesquisadora.
“O pensamento ocidental parou na ideia da estética como a ciência da beleza de um objeto”, declara a pesquisadora Raluca Soreanu, para quem a estética deve ultrapassar a busca pela compreensão do que é belo e ser uma categoria para entender as transformações sociais e políticas de nossa era. A estética, assinala, “entendida como um estudo do contato entre os corpos e do atravessamento da distância social, não é externa às categorias sociopolíticas. Pelo contrário, ela se coloca no coração do conjunto sociopolítico”.
Raluca Soreanu analisa a estética dos protestos que se sucederam após junho de 2013 e propõe “fazer uma psicoetnografia das formas de criatividade do protesto; fazer uma semântica do atravessamento do espaço social”. Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, ela enfatiza que “as manifestações puseram em cheque as deficiências da representação, se situando assim em uma onda global de contestações (uma crise de representação, podemos dizer). Elas questionaram igualmente os impasses concretos da democracia participativa consagrada pela Constituição”. E acrescenta: “Acho muito pouco produtivo criticar o movimento por não ter organicidade ou um ‘projeto político’. Às vezes o que está sendo demandado do movimento é mais do que qualquer partido político atual seja capaz de dar, em termos de organicidade”.
Para ela, as manifestações e os recentes debates eleitorais atuais no país mostram que “não estamos lidando apenas com uma polifonia de interpretações sobre o que está acontecendo, mas com uma confusão e uma contradição entre os vários comentadores sobre o posicionamento dos partidos e dos candidatos (esquerda-centro-direita). Isto quer dizer que estamos entrando numa confusão de linguagem se permanecemos fixados nestes termos do debate. Falta algo crucial. Falta a disponibilidade de aceitar a profundidade e a irreversibilidade da crise da política representativa”. E complementa: “Estamos tentando obsessivamente posicionar partidos e candidatos em função de um eixo que não existe mais há muito tempo. Não se trata de respostas corretas ou erradas, se trata de uma pergunta impossível, cujo contexto de enunciação desapareceu”.
Raluca Soreanu é psicanalista e socióloga. Atualmente é pesquisadora Marie Curie em sociologia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e no Birkbeck College, em Londres. É doutora em sociologia pela University College London, Reino Unido. É membro associado do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ).
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Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que é a estética do protesto, o que ela diz sobre a realidade e onde a identifica nas manifestações que ocorreram no país de junho de 2013 para cá?
Raluca Soreanu - A estética do protesto diz respeito à maneira pela qual o espaço social e o espaço político têm sido atravessados nas manifestações. Esse novo e surpreendente atravessamento das distâncias sociopolíticas precisa ser descrito com mais precisão e dedicação para não nivelar a riqueza de suas diversas formas e o seu caráter de mudança radical. Quando falo da estética, me refiro às mutações da sensibilidade, da epiderme, das zonas de contato entre os corpos. Isto já nos interpela como uma problemática sociopolítica. O pensamento ocidental parou na ideia da estética como a ciência da beleza de um objeto. Quando nos libertamos da ideia do belo como um objeto de contemplação, a preocupação central da estética passa a ser a forma como os corpos se percebem através do campo social. A estética se torna uma ciência do contato. Contato entre as epidermes. Contato entre corpos. Contato entre rostos.
Os modos de fazer contato e os modos de atravessar o espaço social podem ser estudados através de uma semântica da proximidade social. Assim, quão próximos estávamos, exatamente, antes de junho de 2013 e o quão próximos nos tornamos após essa data? Estamos indo da pele à pele de outras maneiras depois de junho de 2013? Essas são perguntas cruciais. Para começar: o capitalismo opera como uma patologia do contato. Não toque, apenas olhe. Epidermes são substituídas por telas. Faces são substituídas por telas. A grande virada de junho é precisamente a experimentação com um rosto e com uma corporalidade que estão diferentemente investidos. Os corpos retornam fortemente na equação simbólica. Dito de outra forma, há atos, modos de se relacionar e composições coletivas durante as manifestações que simplesmente contestam a dicotomia entre processos materiais e processos semióticos. Aqui podemos pensar no fato de sentir a dor juntos durante os protestos e nos efeitos de agregação e de reamarração do laço social que a dor tem. Podemos pensar também nas complexas coreografias que foram feitas para conseguir assembleias deliberativas com um grande número de pessoas. Às vezes essas formas coletivas ultrapassaram qualquer fantasia de democracia direta do teórico político. Uma semântica da proximidade social seria então capaz de entender ambas as distâncias entre estes corpos materiais e as qualidades destas distâncias.
Essas mudanças do sensível não podem ser registradas sem presença no meio das manifestações. Um olhar distante - ancorado nas repetições e patologias da mídia, que reproduz de uma forma incontinente as imagens da suposta violência que acabam criminalizando o movimento - simplesmente não pode dar conta da profundidade das mudanças. É um momento político para nos transformarmos em etnógrafos cuidadosos. É isto que estou propondo: fazer uma psicoetnografia das formas de criatividade do protesto; fazer uma semântica do atravessamento do espaço social.
IHU On-Line - Qual a necessidade de uma interpretação deste tipo de movimento a partir da ideia de uma "estética", isto é, por que a importação de categorias externas ao conjunto de categorias sociopolíticas para compreender os protestos e inclusive a violência nas manifestações?
Raluca Soreanu - A estética – entendida como um estudo do contato entre os corpos e do atravessamento da distância social – não é externa às categorias sociopolíticas. Pelo contrário, ela se coloca no coração do conjunto sociopolítico. O junho de 2013 criou uma perplexidade teórica nas ciências sociais e políticas (às vezes escondida atrás de uma proclamação prematura do que estamos entendendo do que está acontecendo!). Precisamos de um novo vocabulário sociopolítico para dar conta das mudanças sutis, dos deslocamentos, repetições, ciclos, ritmos, censuras, associações e contaminações na esfera do imaginário social.
Há muitas positividades depois do movimento de junho, mas às vezes fica difícil falar delas, porque precisamos nos habilitar com novas interpelações e alianças que permitam uma tal fala. Como falar das novas formas de sociabilidade? Como falar das formas de cuidado e de contenção mútua dentro das manifestações (que são muito mais frequentes do que os atos violentos, e que nos levam muito mais adiante no nosso pensamento sobre subjetivação coletiva)? Como falar das mudanças do imaginário social, das transformações do espaço público? Como falar do luto público pelos mortos e desaparecidos da ditadura militar (que se cruza nas ruas com o luto público pelos mortos e desaparecidos da democracia)? Como falar dos aspectos trágicos da política da memória desse país, cuja prematura lei da anistia deixou as vítimas na situação paradoxal de não serem os verdadeiros agentes do perdão, mas um tipo de público na frente do qual os perpetradores estavam se perdoando a eles mesmos? A impossibilidade de perdoar é um terrível bloqueio do imaginário social, que condena a uma eterna repetição da violência; acho que as manifestações, pelas temporalidades cruzadas que proporcionaram, trouxeram-nos mais perto do momento do perdão. Isto é um imenso evento psicossocial.
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"Os corpos retornam fortemente na equação simbólica" |
Sobre a questão da violência, acho que precisamos primeiramente esclarecer como foi possível um tal exagero (das mídias de comunicação, mas igualmente do campo intelectual) em fixar a imagem dos protestos como “violentos”. Protestos violentos de um milhão de pessoas são protestos com milhares de mortos – felizmente, não foi o caso. Os protestos foram, na maioria deles, não violentos. É aqui onde encontramos um gesto “esteticizante” (no sentido restrito de des-politização) – no ato de sobrerrepresentar a violência das manifestações. É um gesto de “desfiguração” do movimento, surgindo principalmente da demofobia.
IHU On-Line - Como avalia o frequente uso de máscaras por muitos manifestantes? Como o uso das máscaras é entendido pela estética do protesto?
Raluca Soreanu - As máscaras são parte de uma virada simbólica muito importante. Depois do junho de 2013, houve uma re-politização dos rostos e uma democratização das partes do corpo em relação ao processo semiótico, ao ato de dar sentido. No mundo do trabalho ou no mundo do loisir os rostos são marcados pela individuação da enunciação – afirmações são sempre controladas e censuradas – sobre o pano de fundo de um medo constante de que o ego sucumba, se exponha, perca o controle. Isto traz uma abolição do socius. Félix Guattari (em seu livro O inconsciente maquínico) propõe uma análise brilhante sobre o rosto capitalista. Rostos capitalistas são rostos em que nada acontece; são benevolentes e binarizantes; são carregadores de papéis sociais. Guattari desnaturaliza o rosto e mostra como ele surge através de uma sobrecodificação. Os aparelhos de poder vigiam os rostos, os hierarquizam e os qualificam como perigosos ou não perigosos, usando critérios racistas e classistas.
Nesse contexto, a máscara ganha uma qualidade de espelho para a violência e os impulsos hierárquicos dos aparelhos de poder. O uso da máscara equivale à redistribuição do “perigo” através do espaço social. Com máscaras, somos todos igualmente perigosos, antes e acima de tudo a partir de uma violência categorial: o que entra em colapso são precisamente as categorizações racistas e classistas que estão em ação no julgamento do perigo dos corpos. A máscara preta dos protestos é parte de uma nova semiótica; não é a preservação de um rosto abstrato e inexpressivo, mas a construção ativa de uma facialidade pela qual o capitalismo pode ser tocado: uma facialidade que ele não pode codificar. A pele-rosto sob o tecido-rosto (a máscara) é sentida cada vez mais como o lugar de produção de singularidades políticas.
O espaço entre as máscaras é um espaço politizado. Uma artista que descobri recentemente, Nicola L., tem algumas obras que nos fazem pensar em uma máscara coletiva [Nous voulons détruire (1975); Nous voulons respirer (1975)]. Ela confecciona com um mesmo tecido as máscaras e os espaços entre as máscaras. Não se trata aqui do ressurgimento de uma outra ilusão organicista do coletivo, de falar de coletivo como se ele fosse um corpo só, mas se trata de conseguir imaginar (ou acompanhar!) um coletivo se constituindo pelas experiências similares na pele, na zona do encontro com o outro; ou pelas experiências de atravessar a distância social da mesma forma.
IHU On-Line - Que ações durante as manifestações são aceitas pela estética do protesto enquanto ações que têm a intenção de fazer uma crítica ao sistema econômico e político?
Raluca Soreanu - O imaginário social radical se manifestou através de inúmeras formas depois do junho de 2013. Essas formas refletem a potência e as contradições da nova composição do trabalho metropolitano. A plurivocalidade e a pluricromática das manifestações está carregada de uma agenda política substantiva e robusta. A insistência na descrição dos protestos como meras “indignações” é uma forma de nivelar um campo altamente complexo e internamente diferenciado. Uma redistribuição do sensível não significa uma ausência de demanda política, muito pelo contrário.
As manifestações puseram em cheque as deficiências da representação, se situando assim em uma onda global de contestações (uma crise de representação, podemos dizer). Elas questionaram igualmente os impasses concretos da democracia participativa consagrada pela Constituição. Elas criticaram a captura das instituições e serviços públicos pelos interesses das corporações. Elas conseguiram articular melhor o direito à cidade. Elas mostraram os vícios do modelo atual de segurança pública. Cada uma dessas contestações tem a sua própria legitimidade. O conjunto de contestações pode ser visto como uma expressão do “direito ao evento” (ou o “direito à revolução”, seguindo Costas Douzinas). O fato de que a proposta “por uma vida sem catracas” não passa pelos ciclos eleitorais, não a desqualifica como proposta política.
Acho muito pouco produtivo criticar o movimento por não ter organicidade ou um “projeto político”. Às vezes o que está sendo demandado do movimento é mais do que qualquer partido político atual seja capaz de dar, em termos de organicidade.
Seguindo os comentários sobre os novos desenvolvimentos eleitorais atuais no Brasil, o que fica marcado é que não estamos lidando apenas com uma polifonia de interpretações sobre o que está acontecendo, mas com uma confusão e uma contradição entre os vários comentadores sobre o posicionamento dos partidos e dos candidatos (esquerda-centro-direita).
Isto quer dizer que estamos entrando numa confusão de linguagem se permanecemos fixados nestes termos do debate. Falta algo crucial. Falta a disponibilidade de aceitar a profundidade e a irreversibilidade da crise da política representativa. Assim, estamos tentando obsessivamente posicionar partidos e candidatos em função de um eixo que não existe mais há muito tempo. Não se trata de respostas corretas ou erradas, se trata de uma pergunta impossível, cujo contexto de enunciação desapareceu.
A temporalidade do movimento não é a do ciclo eleitoral. Trata-se de uma temporalidade muito mais extensa, e da formação de uma geração, mas não no sentido da idade, nem no sentido da participação de um evento, concebido como algo externo, já dado, mas sim no sentido da criação compartilhada do evento, pelas experiências do contato, da pele, do encontro com o outro.
IHU On-Line - Quais são as demais críticas à sociedade evidenciadas pela estética do protesto?
Raluca Soreanu - As principais críticas surgem num “triângulo” constituído pela crise do capitalismo, a crise da representação e a crise ecológica. Essas críticas se articulam numa nova “ecologia mental” que na minha visão tem como umbigo a ideia de sustentabilidade. A vida do planeta teria que permanecer imaginável para além das práticas e fantasias de uma pequena série de gerações de excesso. Os novos modos de subjetivação coletiva que os protestos proporcionaram (não só no Brasil, mas em vários lugares do mundo) não são associados a uma dada utopia. Fredric Jameson nos lembra que, antes de pensar numa utopia, temos que criar um contexto da imaginação onde esse pensamento se torne possível. Acho que a onda atual de protesto faz esse trabalho de “tecer” o contexto estético-social-político para começar a imaginar projetos políticos alternativos.
IHU On-Line - Quais são as contribuições da estética do protesto em termos políticos e sociológicos para entender o que foram as manifestações de junho de 2013 e as manifestações sequentes, como as durante a Copa, por exemplo?
Raluca Soreanu - Já comentei acima sobre essas contribuições. Trata-se basicamente de trabalhar dentro de perspectivas teóricas que permitam localizar a estética dentro do campo político e social. Trata-se de fazer uma semântica das distâncias sociais e do atravessamento do espaço social.
IHU On-Line - Quais são os limites da estética do protesto quando se usam símbolos religiosos aceitos por grande parte da população, como é o caso do Brasil, por exemplo, como aconteceu à ocasião da Jornada Mundial da Juventude, em que manifestantes da Marcha das Vadias quebraram imagens de santos da Igreja e usaram crucifixos em sua crítica à Igreja?
Raluca Soreanu - A criatividade específica das manifestações do último ano é muito pouco compatível com agregações e ossificações em política identitária. Em outras palavras, quando a gramática de um ato é uma gramática identitária, ele perde sua potência criativa, sua capacidade de gerar um rearranjo dos elementos do imaginário social. Por exemplo, quando as ações do Black Bloc funcionaram como tática, atravessada por uma ética da resistência e da ação direta, elas tinham uma faceta de crítica social. Quando o Black Bloc se assimilou a uma nova identidade, esse significante perdeu sua dimensão crítica, enquanto as práticas associadas arriscavam transformar-se em meras repetições e encenações esvaziadas do gesto crítico. Isto quer dizer que fazer uma autocrítica do movimento é um gesto fundamental.
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"Às vezes essas formas coletivas ultrapassaram qualquer fantasia de democracia direta do teórico político" |
Uma outra questão é a escolha do “objeto político” dos críticos do movimento. Aqui podemos pensar numa sociopatologia dessas escolhas. Qual é a emocionalidade de uma sociedade que encontra mais recursos para indignações sobre a quebra de imagens dos santos do que para a morte e o desaparecimento das pessoas dentro do exercício da segurança pública?
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Raluca Soreanu - Depois do junho de 2013, o símbolo político vem se tornando cada vez menor. É delgado. É versátil. É elíptico. E seu sentido não está fechado. Ultimamente, uma questão tem aparecido nos muros do Rio de Janeiro: “Cadê?” Uma palavra de quatro letras, que já contém um verbo e uma referência à existência. Uma condensação da pergunta “Cadê o Amarildo?”. Essa palavra de quatro letras é parte de uma política pós-edipiana, que não traz referência necessária ao pai político – às suas numerosas autorizações e instituições, assim como às suas mortes e destituições. Novas formas políticas emergem sem referência necessária à Autoridade e à Lei do Pai (Razão, Ordem, Estado e Mercado). “Cadê?” faz um corte na subjetividade e, ao fazer esse corte, constitui a responsabilidade do sujeito político. Onde está a dor? Onde estão os mortos da ditadura? Onde está o luto? Onde está a memória? Cada sujeito político deve preencher a elipse de forma diferente. Assim, entramos em contato com a ideia de que algo foi perdido.
O tempo linear da modernidade capitalista é algo mortífero e mortificante. Todos nós somos mortificados pela tentativa de viver em um tempo único e linear. A pluralidade de inquietações condensadas na pergunta “Cadê?” traz também uma pluralização dos futuros possíveis – isto é um movimento em direção à vida.
(Por Patricia Fachin)
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A estética do protesto e a superação da beleza para entender as transformações sociopolíticas. Entrevista especial com Raluca Soreanu - Instituto Humanitas Unisinos - IHU