28 Setembro 2014
“Recortes territoriais são sempre arbitrários, no sentido que estabelecem limites normativos que não existem na natureza. Inclusive os recortes territoriais do Estado-nação são arbitrários”, afirma o pesquisador.
Foto: Envida por email |
A dinâmica territorial hegemonizada pela lógica de produção industrial das últimas décadas do século XX, que iniciou com uma investida caótica ao interior das cidades e depois tentou reorganizá-las a partir de seus parâmetros e medidas, parece estar se esgotando. “A relação, digamos assim, incestuosa, entre as formulações do urbanismo moderno e as determinações organizacionais do fordismo é bastante evidente, embora as cidades nunca tenham se deixado capturar completamente por essa lógica funcional e segmentada”, explica o professor e pesquisador Gerardo Silva, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
Entretanto, após meados dos anos 1980, um outro modelo surgiu paralelamente a esta lógica, que levou a outro tipo de organização territorial e social. “O Silicon Valley nos Estados Unidos foi o primeiro grande laboratório de reflexão sobre essas novas formas de organização da produção e do território, um âmbito altamente concorrencial de produção colaborativa e trabalho em rede. Aliás, foi ali que Manuel Castells encontrou inspiração para seus trabalhos sobre a cidade informacional e a sociedade em rede”, avalia.
Repensar o território requer repensar as configurações sociais que emergem em tal contexto. “A casa, o escritório, o café, o restaurante, o banco, as lan-houses, os shopping centers são nós de uma rede de produção que acontece na circulação, tanto física quanto de informações. Nesse sentido, o metrô e a banda larga seriam, por assim dizer, o sistema nervoso da cidade, isto é, são os lugares que tornam possível a produção e também onde a produção acontece”, sintetiza o entrevistado.
Ao debater o tema, Gerardo recorre a Antonio Negri e Michael Hardt para explicar as novas figuras produtivas e sociais, nomeadas pelos autores como “Multidão”. “São seus territórios que dispõem dos meios necessários para tornarem efetivas essas novas formas de geração de riqueza. Portanto, a questão que se coloca nessa perspectiva é a seguinte: como qualificar a metrópole para os agenciamentos produtivos da multidão? Acredito que a resposta seja política: deixar a multidão se manifestar”, argumenta.
“A não percepção das singularidades dos territórios do século XXI gera, no melhor dos casos, atrasos e retardos na evolução da capacidade de geração de riqueza do trabalho da multidão, e, no pior, obstáculos e violência”, destaca. “Nenhum planejamento será possível sem uma perspectiva crítica sobre os rumos das cidades e os fatores que operam sua permanente transformação, e isso implica tanto a boa prática reflexiva de quem pensa a cidade quanto o engajamento das pessoas que vivem e trabalham nela”, complementa.
Gerardo Alberto Silva possui graduação em Geografia pela Universidad Nacional de Mar del Plata, na Argentina, mestrado em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e doutorado em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro/UCAM. Atualmente é professor adjunto da área de Planejamento e Gestão do Território da Universidade Federal do ABC - UFABC.
Confira a entrevista.
Foto: Outras Palavras |
IHU On-Line – Como o final do século XX e, especialmente, o começo do século XXI reconfiguraram o que compreendíamos como território?
Gerardo Silva - Sem dúvida, entre o final do século XX e o início do século XXI, a nossa compreensão sobre a importância do território mudou radicalmente, assim como também mudou o nosso entendimento sobre os processos de constituição da sociedade e das formas de organização do trabalho. Desde o início da revolução industrial até metade dos anos 70 do século passado, a configuração dos territórios foi hegemonizada pela lógica da produção industrial, primeiramente invadindo as cidades de maneira caótica e depois tentando organizá-las de acordo com seus parâmetros e medidas. A relação, digamos assim, incestuosa, entre as formulações do urbanismo moderno e as determinações organizacionais do fordismo é bastante evidente, embora as cidades nunca tenham se deixado capturar completamente por essa lógica funcional e segmentada. Pois bem, tudo isso mudou a partir da segunda metade da década de 1970. Através da chamada “reestruturação produtiva”, que significou o desenho de um novo mundo industrial, nas palavras do economista e geógrafo francês Pierre Veltz, tais mudanças tornaram-se evidentes.
Por um lado, teve lugar uma transformação tecnológica, que implicou uma progressiva automação dos processos produtivos e uma reconfiguração dos processos de trabalho dentro da fábrica, como o toyotismo, por exemplo; por outro lado, houve uma “desterritorialização” da produção industrial concentrada nos países centrais em direção do sudeste asiático, entre outros destinos mundo afora. Paralelamente, uma outra economia começou a emergir.
Em 1984 a Apple apresenta o computador pessoal Macintosh, esconjurando comercialmente a “profecia orwelliana”; em 1993 a Microsoft lança o Windows ST, considerado o primeiro sistema operativo universal com interface gráfica e, no mesmo ano, a World Wide Web torna a Internet tal como a conhecemos. De onde vinham essas inovações? Como teriam sido produzidas? Quem eram as pessoas que estavam no comando dessas empresas? Como se financiavam? Certamente, elas não provinham nem dos antigos espaços industriais, nem das estruturas tradicionais de financiamento.
Embora não tenha sido o único, o Silicon Valley nos Estados Unidos foi o primeiro grande laboratório de reflexão sobre essas novas formas de organização da produção e do território, um âmbito altamente concorrencial de produção colaborativa e trabalho em rede. Aliás, foi ali que Manuel Castells encontrou inspiração para seus trabalhos sobre a cidade informacional e a sociedade em rede.
IHU On-Line – Em que medida uma visão mais moderna das cidades — da era da máquina/indústria — se torna insuficiente diante das complexidades contemporâneas?
"Os parâmetros do mundo industrial para o estabelecimento de recortes territoriais têm sido ultrapassados"
Gerardo Silva - Antes de responder à segunda pergunta, gostaria de fazer alguns esclarecimentos sobre a resposta à pergunta anterior. Em primeiro lugar, quando faço referência ao Silicon Valley não estou dizendo que esse seja o modelo a seguir ou alguma coisa do tipo, embora ele tenha sido utilizado nesse sentido, inclusive no Brasil; estou apenas utilizando-o como exemplo para qualificar mudanças que aconteceram na nossa compreensão do território na passagem para o século XXI.
Em segundo lugar, tampouco estou querendo dizer que as transformações foram determinadas pelas tecnologias, posto que acredito que elas são sempre produto da dinâmica social da qual emergem.
Em terceiro e último lugar, essas transformações são ainda capitalistas, ou seja, condicionadas por formas de exploração e extração de mais-valia, embora isso aconteça através de dispositivos diferentes dos que caracterizaram o mundo da grande fábrica e o proletariado industrial tradicional.
Voltando agora à pergunta. Recortes territoriais são sempre arbitrários, no sentido que estabelecem limites normativos que não existem na natureza. Inclusive os recortes territoriais do Estado-nação são arbitrários. O que há de fato são recortes territoriais com maior ou menor grau de legitimidade ou reconhecimento ou imposição. Mas nada é definitivo. Basta ver o quanto a geopolítica do mundo atual encontra-se aquecida. Em termos de planejamento e/ou de alocação de recursos no território, que parece ser o sentido da pergunta, os recortes e os critérios são sempre problemáticos. Em certo modo, isso coloca a Geografia no centro da questão. Sem dúvida, os parâmetros do mundo industrial para o estabelecimento de recortes territoriais têm sido ultrapassados, pelo menos no âmbito das cidades e das metrópoles. Talvez a mudança mais importante esteja na impossibilidade de separar mundo da vida e mundo do trabalho, como mandava o cânone moderno.
O trabalho colaborativo da sociedade em rede, para continuar utilizando a expressão de Manuel Castells, acontece fora da fábrica. Ele requer uma infraestrutura de serviços e de mobilidade capaz de potencializar comunicação e encontros para uma gama enorme e extremamente complexa de agenciamentos que acontecem cotidianamente. A casa, o escritório, o café, o restaurante, o banco, as lan-houses, os shopping centers são nós de uma rede de produção que acontece na circulação, tanto física quanto de informações. Nesse sentido, o metrô e a banda larga seriam, por assim dizer, o sistema nervoso da cidade, isto é, são os lugares que tornam possível a produção e também onde a produção acontece. Como auferir esses processos com os velhos instrumentos de organização funcional da cidade? Acredito que às vezes o mercado imobiliário compreende melhor essas mudanças, para o bem ou para o mal. Geralmente para o mal.
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"Talvez a mudança mais importante esteja na impossibilidade de separar mundo da vida e mundo do trabalho, como mandava o cânone moderno" |
IHU On-Line – Considerando as particularidades do século XXI, por quais tipos de reconfigurações as cidades têm passado?
Gerardo Silva - Para começar, as cidades têm sido um elemento decisivo no processo de globalização. As redes urbanas nacionais e regionais configuradas territorialmente em função dos modelos de desenvolvimento seguidos em cada país não conseguem mais garantir um comportamento estável e organizado das relações entre as cidades e destas com suas hinterlândias. A toda hora, as forças globais estão tensionando a rede e reposicionando os centros urbanos que fazem parte dela. E o mais significativo é que esse tensionamento se dá não apenas nos principais centros, mas também em centros secundários ou de menor hierarquia. Mas é evidente também que as grandes metrópoles são as principais afetadas. É nesse âmbito que os processos de globalização se afirmam com mais intensidade e complexidade e é onde se tornam mais visíveis seus efeitos, muitas vezes perversos.
Concretamente, as metrópoles se integram cada vez mais às redes mundiais de produção, circulação e consumo e cada vez menos às redes nacionais ou regionais ou mesmo locais. Isso cria tensões muito fortes entre dinâmicas produtivas ancoradas internacionalmente e os territórios que ainda dependem de uma economia, digamos assim, “doméstica”. É frequente a sensação de estarmos assistindo a processos de modernização urbana “out-of-range” (fora de alcance) e “out-of-control” (fora de controle), que sabemos serem de custos financeiros elevados e social e territorialmente excludentes.
IHU On-Line – Em que medida os problemas referentes aos territórios e às políticas públicas são tributários da transposição não problematizada de uma civilização industrial (da cidade de massa) à pós-industrial (metrópole da multidão)?
Gerardo Silva - Essa pergunta me permite complementar a resposta anterior. Se, por um lado, a globalização cria distorções e efeitos perversos, pelo outro ela abre oportunidades de luta pelo reconhecimento da dimensão produtiva do trabalho cooperativo da sociedade em rede, que se apresenta como sendo autônomo, flexível e precário na grande maioria dos casos. E essa luta é igualmente global ou globalizada, na medida em que essa vulnerabilidade se manifesta de maneira análoga nos diferentes cantos do planeta. Mas quem encarna essa luta?
Quem é capaz de amalgamar ou de dar corpo a essas novas figuras produtivas nas suas singularidades e nas suas dimensões global e local? Antonio Negri e Michael Hardt chamam esse “quem” de multidão. A multidão é composta pelo conjunto de pessoas, agentes, atores e sujeitos que afirmam individual e coletivamente a dimensão produtiva do trabalho cooperativo da sociedade em rede, isto é, além da fábrica e da relação salarial. Daí a sua precariedade, embora alguns nichos privilegiados pareçam demonstrar o contrário. Ora, o lugar de afirmação do trabalho que constitui a multidão é a metrópole. São seus territórios que dispõem dos meios necessários para tornarem efetivas essas novas formas de geração de riqueza. Portanto, a questão que se coloca nessa perspectiva é a seguinte: como qualificar a metrópole para os agenciamentos produtivos da multidão? Acredito que a resposta seja política: deixar a multidão se manifestar.
IHU On-Line – Que impactos a não percepção das particularidades dos territórios no século XXI geram nos conglomerados urbanos?
Gerardo Silva - A não percepção das singularidades dos territórios do século XXI gera, no melhor dos casos, atrasos e retardos na evolução da capacidade de geração de riqueza do trabalho da multidão, e, no pior, obstáculos e violência. A permanente ingerência das companhias de telecomunicação no desenho da rede e das formas de acesso à banda larga, por exemplo, pode ser creditada à primeira conta, enquanto a brutal repressão aos camelôs nas principais cidades do país pode ser creditada à segunda, assim como as péssimas condições do transporte público, da saúde e da educação para a maioria da população. É nesse sentido que podemos afirmar que as manifestações de junho de 2013 foram um levante da multidão. O que está em jogo é a dimensão produtiva da metrópole e não apenas uma simples melhoria do transporte público ou uma ampliação dos recursos para educação, embora essas pautas sejam importantes. Uma metrópole mais convivial, mais cultural, mais cosmopolita, mais tolerante, mais igualitária e mais democrática é uma metrópole mais produtiva. Essa é, a meu ver, a grande novidade do século XXI.
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"A casa, o escritório, o café, o restaurante, o banco, as lan-houses, os shopping centers são nós de uma rede de produção que acontece na circulação" |
IHU On-Line – De que maneira os diversos dados levantados pelos observatórios contribuem na interpretação que temos sobre as cidades e na (des)construção de modelos de gestão urbana compatíveis com os desafios contemporâneos?
Gerardo Silva - Bom, em termos gerais os observatórios são uma forma interessante de focar e concentrar esforços em uma problemática determinada. A produção de informações e conhecimento pode contribuir não apenas ao saber acadêmico, como também influenciar as políticas urbanas e a tomada de decisões.
Atualmente, vários laboratórios e grupos de pesquisa nas universidades trabalham fazendo esse tipo de ponte ou conexão. O que é muito importante, tendo em conta a dimensão prático-normativa que é própria do planejamento territorial.
Contudo, em minha opinião, temos que evitar subsumir a problemática urbana a essa dimensão normativa do planejamento, quer dizer, temos que ter o cuidado de não inverter a ordem dos problemas. Nenhum planejamento será possível sem uma perspectiva crítica sobre os rumos das cidades e os fatores que operam sua permanente transformação, e isso implica tanto a boa prática reflexiva de quem pensa a cidade quanto o engajamento das pessoas que vivem e trabalham nela. Caso contrário teremos como resultado, no melhor dos casos, ou uma tentativa vã de tapar o sol com a peneira ou uma prática tecnocrática cheia de boas intenções, porém ineficaz politicamente. Nesse sentido, os observatórios, assim como outros âmbitos de pesquisa, que assumem o desafio de produzir conhecimento visando à cidade do século XXI, tornam-se absolutamente necessários.
Por Ricardo Machado
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Metrópole, a grande novidade do século XXI. Entrevista especial com Gerardo Silva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU