28 Abril 2012
“Os empresários, toda vez que pensam em terceirização e na revisão da CLT, usam um falso discurso, que é o da modernidade”, diz Ana Tércia Sanches, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line.
Para ela, esse discurso normalmente vem acoplado à ideia de que a terceirização gera emprego. “Tudo isso é mentira e não se sustenta nem técnica nem empiricamente, tampouco pelas estatísticas. Essa é uma reforma trabalhista às avessas porque é o contrário do que os empresários dizem, de que é moderna, que gera mais empregos”.
Segundo a historiadora, na verdade, ela é uma reforma que, pelas medidas que podem ser tomadas pelas empresas e pela forma de gerir o capital (fazer gestão das organizações através da terceirização), consegue atender aos interesses dos empresários, visando redução de custos, mas fazendo isso a custa dos trabalhadores, porque as margens de lucro se mantêm bastante elevadas. “Então, o que vemos é um favorecimento dos empresários, que conseguem ter mais acúmulos de poder, rentabilidade e lucratividade, em detrimento dos trabalhadores, que empobrecem”, afirma.
Ana Tércia Sanches possui graduação em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, é mestre em Ciências Sociais pela mesma instituição e especialista em Economia do trabalho e Sindicalismo pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. É doutoranda do Programa de Pós-Graduação da Universidade de São Paulo – USP.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais os desafios que se apresentam ao mundo do trabalho hoje, considerando principalmente a questão da terceirização e da precarização?
Ana Tércia Sanches –Considerando todas as mudanças que aconteceram no mundo do trabalho nos últimos anos no Brasil, percebemos que a terceirização é a forma mais agressiva com relação à retirada dos direitos. Então, se pensarmos nos sindicatos, que foram constituídos há muitos anos, e nas categorias profissionais organizadas, estas últimas levaram anos para conquistar direitos que se diferenciam mais e melhor com relação à Consolidação das Leis do Trabalho – CLT. Quando a terceirização chega, ela consegue derrubar tudo isso, porque esses trabalhadores vão praticamente ter rasgado todo o conjunto de direitos que os sindicatos levaram anos para tentar conquistar. Portanto, a terceirização pode ser vista como um dos principais desafios, na medida em que ela significa uma reforma completa, às avessas do que nós gostaríamos, uma vez que os sindicatos trabalhistas querem melhorar e ampliar os seus direitos. Ademais, esta política da terceirização consegue fazer ruir todo esse processo social e, portanto, eu diria que ela é o principal desafio e o principal problema que os trabalhadores e as categorias organizadas têm vivido nos últimos anos.
IHU On-Line – O que deveria fazer parte de uma reforma trabalhista no Brasil?
Ana Tércia Sanches – A pauta da reforma trabalhista é patronal, não tem tido uma demanda do ponto de vista dos trabalhadores, como já foi em outros momentos. Os sindicatos se preocupam com o emprego. Apesar de o Brasil viver uma fase de crescimento, de geração de postos de trabalho, essa é uma preocupação constante dos sindicatos. Então, eles têm feito uma defesa pela aprovação da Convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho – OIT. O Brasil não é signatário da convenção 158. E ela prevê a não demissão imotivada. Ou seja, para o empregador realizar qualquer processo de demissão, ele deveria justificá-la socialmente, informando s; se a empresa está em regime de falência etc. Algo parecido com o que acontece nos países da Europa, já que muitas nações são signatárias dessa Convenção da OIT. Então, atualmente existem alguns temas, tais como a liberdade e autonomia sindical, que preservam os espaços de negociação, tanto no setor privado como no público. E a agenda do sindicato é pautada por itens que compõem uma reordenação no mundo do trabalho que possa, de fato, trazer e levar os trabalhadores a um patamar civilizatório mais moderno, no sentido de tratá-los com respeito, de trazer conquistas para eles. Ou seja, nós sabemos que o capital consegue acumular e promover novos investimentos. Agora, os trabalhadores não. Estes últimos normalmente recebem reposição da inflação, um aumento real muito tímido. A vida econômica do trabalhador é normalmente pautada por algo muito contido. Ele não consegue dar um salto de qualidade em sua vida, isso quando não observa retrocesso do ponto de vista da retirada dos seus direitos.
IHU On-Line – Em que sentido a CLT, promulgada em 1943, necessitaria de uma revisão? Em que aspectos ela está mais defasada?
Ana Tércia Sanches – A nossa crítica à CLT tem a ver com elementos que fazem o sindicato ter uma relação muito forte com o Estado. Nosso entendimento é que o sindicato tem que se organizar livremente, porque assim os interesses dos trabalhadores podem ser colocados da melhor forma possível. Ademais, existem elementos na CLT que os sindicatos não questionam, porque foram direitos constituídos. Mas, quando pensamos na CLT, não estamos falando em derrubar o décimo terceiro salário, as férias, esses direitos que foram constituídos ao longo dos anos. Estamos questionando muito mais essa relação corporativa que os sindicatos, desde a época de Getúlio Vargas, foram impelidos a se vincular ao Estado, fruto de um recolhimento como é o imposto sindical, o qual atrela a atividade sindical a um consentimento que o Estado tem em relação aos empresários. A nossa crítica é nesse sentido.
Porém, é diferente da crítica do empresariado que pretende fazer uma revisão na CLT, retirando direitos. O discurso empresarial diz que o custo Brasil e o do trabalho, portanto, é um custo elevado, porque ele é fixo e o que os empresários querem é a flexibilidade total. Ou seja, se for possível, concede férias no patamar que a CLT prevê; se possível, paga o décimo terceiro salário no patamar que a CLT vê; se for o caso, recolhe os encargos para a previdência social também no modelo que a CLT antecipa. Então, temos diferenças muito claras de perspectivas de revisão da CLT. A nosso ver, não é uma revisão que busque retirada de direitos. Do ponto de vista do empresariado, é uma revisão, sim, que prevê retirada de direitos.
IHU On-Line – Qual sua opinião sobre o projeto de lei n. 4330, de autoria do deputado Sandro Mabel, do PMDB-GO, que regulamenta a terceirização em quase todos os setores da economia brasileira?
Ana Tércia Sanches – O projeto do Mabel representa, de fato, uma ameaça aos direitos que os trabalhadores construíram ao longo desses anos, que foi consolidado tanto na CLT como também nos acordos coletivos de trabalho que as categorias mais organizadas conquistaram. É certeza que, se nós tivermos uma lei que prevê a terceirização em qualquer tipo de atividade, seja ela fim ou meio, vamos conseguir fazer ruir esse processo. Se nós quisermos ser mais rigorosos, podemos dizer que esse projeto do deputado Mabel destrói a CLT. Vou dar um exemplo: os trabalhadores terceirizados trabalham em empresas, em que a taxa de rotatividade é extremamente elevada. Ela consegue ser o dobro ou o triplo do que se vê em rotatividade de outras empresas que são constituídas nos diversos setores da economia. Isso significa dizer que o trabalhador terceirizado está a todo o momento alterando seu posto de trabalho, pois ele precisa de emprego. E, muitas vezes, o que acontece é que ele trabalhou em uma empresa, mas não conseguiu gozar férias e acaba automaticamente entrando em outra empresa, porque ele precisa se manter empregado. Quando faz isso, ele deixa de exercer o direito que possuía, que era o de férias. Além disso, abandona o direito de recolher os encargos para o fundo de garantia e perde o do décimo terceiro salário. Então, esse é um problema nítido que podemos detectar quando a CLT começa a ser corroída, não porque houve uma reformulação completa, anunciada, pelo governo e pelos veículos de comunicação. Mas, na prática, no dia a dia, a terceirização consegue corroer os direitos fundamentais, pois os que estão na CLT são os mais básicos.
No entanto, se vermos a categoria dos bancários, por exemplo, um trabalhador terceirizado ganha um terço do que ganha a Convenção Coletiva de Trabalho, que é assinada por um setor patronal, um setor financeiro. Isso significa dizer que nós estamos promovendo uma completa desregulamentação dos direitos a partir de um projeto de lei que se anuncia como de terceirização, mas na prática mexe em toda a estrutura das relações de trabalho no Brasil.
IHU On-Line – Em que sentido esse projeto de lei pode ser considerado uma “reforma trabalhista às avessas”, como sugerem os sindicalistas?
Ana Tércia Sanches – Os empresários, toda vez que pensam em terceirização e na revisão da CLT, usam um falso discurso, que é o da modernidade. Esse discurso normalmente vem acoplado à ideia de que a terceirização gera emprego. Tudo isso é mentira e não se sustenta nem técnica nem empiricamente, tampouco pelas estatísticas. Essa é uma reforma trabalhista às avessas porque é o contrário do que os empresários dizem, de que é moderna, que gera mais empregos. Na verdade, é uma reforma que, pelas medidas que podem ser tomadas pelas empresas e pela forma de gerir o capital (fazer gestão das organizações através da terceirização), consegue atender aos interesses dos empresários, visando redução de custos, mas fazendo isso a custa dos trabalhadores, porque as margens de lucro se mantêm bastante elevadas. Então, o que vemos é um favorecimento dos empresários, que conseguem ter mais acúmulos de poder, rentabilidade e lucratividade, em detrimento dos trabalhadores, que empobrecem.
IHU On-Line – Que cenário podemos esperar caso seja aprovada a regulamentação da terceirização para os outros setores da economia?
Ana Tércia Sanches – Trata-se de evidências da perda para todos os trabalhadores, em todos os segmentos. Se analisarmos empresas fortes, como é o caso da Petrobrás, por exemplo, veremos que ela possui um volume elevado de trabalho terceirizado. Só que quando avaliarmos estatísticas de morte da Petrobrás, iremos observar que mais de 83% dos casos de óbito são relacionados ao trabalho terceirizado. Então, vemos um cenário de piora, de deterioração, nas relações de trabalho no Brasil com a terceirização. Ela está relacionada à precarização, à ampliação das doenças ocupacionais e de mortes no trabalho. Se a terceirização visa, em primeira instância, reduzir custos e a força de trabalho é o componente mais relevante da composição do custo de um produto e de um serviço, são os trabalhadores que irão sair perdendo.
Regulamentação da terceirização: perda para toda a sociedade
Além disso, gostaria de deixar claro que, se for aprovada a terceirização, nós também teremos um cenário ruim, que não é apenas para os trabalhadores. É para a sociedade em seu conjunto, porque se são rebaixados os custos da composição de um produto e de um serviço pela força de trabalho, também será atingida a qualidade dos serviços ofertados. Então, os clientes irão perceber que a terceirização tem um custo que vai se reverberar na qualidade do serviço que é ofertado. Esse é um problema que deve ser pensado por toda a sociedade. E, se for aprovada uma lei como essa, o cenário é muito triste, em um país onde o Produto Interno Bruto – PIB cresce e que caminha para ser a quinta maior economia do mundo. Pensar uma nação que tem um PIB elevado, que tem uma riqueza interna imensa, não pode ser um país que pensa nesse avanço concentrando riqueza nas mãos dos empresários, que almejam fazer isso em detrimento dos trabalhadores e da força de trabalho.
IHU On-Line – Em que medida a terceirização contribui para a concentração de renda no país?
Ana Tércia Sanches – Quando analisarmos as empresas que mais terceirizam, chegaremos nessa explicação da concentração de renda. Quem mais terceiriza no Brasil não são os pequenos empresários e nem as pequenas empresas. São as grandes corporações, que têm lucros bilionários, algumas delas estrangeiras, que enviam divisas para fora do país. Essa é uma matemática simples de perceber. Veremos que os trabalhadores terceirizados recebem salários ínfimos, perdem direitos, e quem se beneficia desse trabalho, quando observamos a cadeia produtiva, são as grandes corporações, que têm aumentado seus lucros. Essa é a sociedade que se desenha.
IHU On-Line – Como a terceirização se relaciona com as transformações do capitalismo contemporâneo?
Ana Tércia Sanches – A terceirização é parte das reestruturações capitalistas que aconteceram na Europa a partir dos anos 1970. Nos anos 1990, chega ao Brasil com mais força e a terceirização é um pilar fundamental para a reestruturação produtiva que aconteceu. Ela vem acompanhada de inovações tecnológicas, fusões e aquisições que ocorreram no ambiente corporativo. Essas transformações foram marcadas por novas formas de organização do trabalho.
Terceirização como eixo fundamental
A terceirização é um pilar forte dessas transformações que aconteceram no mundo do trabalho, e é por isso que ao longo dos anos 1990 observamos o seu crescimento e a necessidade patronal de tentar aprovar uma lei que desse legitimidade a essa forma de terceirização. Hoje, se formos considerar as outras instâncias que estão abaixo do Tribunal Superior do Trabalho – TST, que é a maior, que julgam os duelos trabalhistas, veremos que existem milhões de ações de trabalhadores questionando os processos de terceirização e os direitos que não são recebidos. Portanto, a terceirização foi fundamental nessa reestruturação produtiva, que no Brasil ganhou força nos anos 1990, mas ainda não terminou. Essa reestruturação é algo que vem acontecendo de forma contínua ao longo desses últimos 20 anos e a terceirização foi eixo fundamental.
IHU On-Line – Como o governo Dilma e o Ministério do Trabalho têm se posicionado em relação às transformações no mundo do trabalho no Brasil?
Ana Tércia Sanches – Vale a pena fazer uma diferenciação entre os governos de Dilma e Lula com aquele veio antes. As principais formas de reestruturação e de flexibilização, medidas que foram flexibilizando o mercado de trabalho brasileiro, surgiram na década de 1990, em especial nos anos do governo Fernando Henrique Cardoso. Então, vimos nascer a criação do banco de horas, a regulamentação do trabalho aos domingos etc. Além disso, foram flexibilizadas as formas de contratação e outros mecanismos que o governo auxiliou, do ponto de vista da flexibilização dos direitos. Nesse momento, houve a reestruturação capitalista das empresas no Brasil.
Governo Dilma
O governo Dilma atualmente tem recebido uma pressão constante por parte dos empresários para aprovar um projeto de lei que regulamente a terceirização no Brasil com o viés deste grupo, que busca garantir a terceirização geral e oferecer a segurança jurídica a eles. Então, o governo da presidenta recebe a pressão patronal, mas também tem dialogado e recebido o setor que representa os trabalhadores. O que ela tem dito em reuniões públicas é que em seu governo não haverá aprovação de nenhuma lei que vise flexibilizar direitos. Sabemos que há uma disputa e um tensioamento social entre as forças políticas e os representantes dos trabalhadores. Mas nós esperamos que a palavra de Dilma seja mantida e que não exista nenhuma lei que retire os direitos dos trabalhadores.
IHU On-Line – Você concorda que o emprego no país é marcado por alto nível de informalidade, baixos salários e empregos precários?
Ana Tércia Sanches – Preciso ainda concordar com isso. Se observarmos as negociações das diversas categorias, veremos que elas tiveram reposição da inflação e aumento real de salário. Isso é um dado e precisamos identificar. Mas o Brasil ainda tem um nível de informalidade muito elevado. Porém, isso é algo que diminuiu nos últimos anos por conta do avanço do emprego com carteira assinada. Há um estudo do Pochmann, que trabalha com isso, e algumas pesquisas do Dieese que dizem que esses empregos novos gerados são de baixos salários e com baixa qualificação. Portanto, temos que ter cautela para olhar tudo isso.
Precisamos comemorar o avanço da formalização, mas devemos perceber que tipo de emprego está sendo gerado. Nesse sentido, o que vemos é uma migração dos empregos que estavam vinculados às categorias profissionais organizadas, que se liga ao tema da terceirização. Ou seja, o crescimento do volume de empresas terceirizadas é o que explica o nível de formalização com baixos salários. A terceirização é uma explicação para isso. Mas, se o país cresce e a lucratividade das empresas é satisfatória, faz-se necessário manter o crescimento de empregos, porém pagando os salários que possam ser considerados justos, que sejam pensados do ponto de vista do bem-estar dos trabalhadores.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
"Afirmar que a terceirização gera emprego é um mito". Entrevista especial com Ana Tércia Sanches - Instituto Humanitas Unisinos - IHU