04 Novembro 2010
Por onde vão Dilma e Lula neste novo governo eleito no último domingo? Rudá Ricci esteve no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, na tarde desta quinta-feira, para falar sobre o lulismo e o protagonismo dos movimentos sociais e a IHU On-Line aproveitou para conversar com o sociólogo sobre suas expectativas em relação ao governo Dilma. E, segundo ele, este já nasce com problemas internos de política institucional com muita força e peso. Ricci diz que esse problema tem nome: Lula. “Se alguém imagina que o Lula não vai governar com Dilma ou disputar o governo desconhece, totalmente o que é essa liderança nacional. Tanto é claro isso que ele já indicou vários ministros para Dilma”.
O professor fala sobre como Dilma deve conduzir este governo e como sua personalidade pode ser um empecilho para os planos de Lula. “Quando ela deu uma entrevista, um ou dois dias depois de eleita, e falou ‘eu quero nomear pessoas que tenham esse perfil’ ali Dilma começou a dar as cartas”, contou. Ricci também falou sobre como deve se dar a articulação dos movimentos sociais e organizações populares com este novo governo e, assim, apontou: “O que me preocupa não é o campo da esquerda, mas o da direita. Creio que vai surgir no Brasil, a exemplo do que ocorre nos EUA e na Espanha, um movimento de classe média ultraconservador que já apareceu no final do primeiro turno”.
Rudá Ricci é graduado em Ciências Sociais pela PUC-SP. É mestre em Ciência Política e o doutor em Ciências Sociais pela Unicamp. Atua como consultor no Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal e do Instituto de Desenvolvimento. É diretor do Instituto Cultiva e professor da Universidade Vale do Rio Verde e da PUC Minas.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que o senhor espera do governo Dilma?
Rudá Ricci – É um pouco complexo responder a essa pergunta pelo seguinte: esse governo tem, logo de início, quatro ou cinco desafios internos de política institucional. Esses problemas internos têm nome: Lula. Se alguém imagina que o Lula não vai governar com Dilma ou disputar o governo, desconhece totalmente o que é essa liderança nacional. Tanto isso é claro que ele já indicou vários ministros para Dilma. Ele pediu para o Mantega ficar, indicou o Palocci como uma espécie de primeiro ministro dele no governo Dilma. Tanto é verdade que o Zé Dirceu já ficou muito irritado com essa proeminência que o Palocci vai ter. Lula também já indicou o Haddad para ficar em qualquer ministério. Lula será uma figura de muito destaque no governo Dilma. Obviamente isso cria problema para uma pessoa com a personalidade de Dilma. Esse é o segundo problema interno: como Dilma vai se relacionar com uma pessoa com a popularidade de Lula, conhecendo muito bem como Lula joga. Para se ter uma ideia, na montagem do último ministério de Lula, em 2006, no momento em que já se sabia quantos ministérios ficariam com o PT, como é o caso do Ministério do Desenvolvimento Agrário, Lula ficava estimulando várias correntes internas do partido para disputar o ministério. Eu participei efetivamente dessa disputa e foi muito pesado o jogo. O que as pessoas não sabem? É que o ministro eleito já vinha com a posição junto a ele. E foi isso que fortaleceu muito Lula. Lula é um gênio político. As pessoas ainda perguntam: “mas será que não são os assessores?”. Não, é ele, Lula é um gênio mesmo. Nós temos que nos acostumar a ver que depois de Getúlio Vargas, o grande líder que o Brasil criou é o Lula. As pessoas não querem acreditar nisso porque não conhecem os bastidores. Ele joga muito pesado.
O terceiro problema é o PMDB que pode ser multiplicado por dez. O PMDB do Requião não é o PMDB do Sarney que não é o, possivelmente, do Kassab (prefeito de São Paulo, do DEM, mas com possibilidade de ir para o PMDB). Há uma negociação em curso que grande parte dos Democratas vai entrar no PMDB até o início do próximo ano. Imagine que o partido que mais atacou Dilma pode se aliar ao governo.
Um quarto problema é o próprio PT. Neste caso, a liderança que está tentando galvanizar uma ação do PT para ocupar mais espaço é o José Dirceu. Mas ele é só uma ponta do iceberg. Por exemplo: há uma série de setores vinculados a serviços da área economia, que estão hoje sindicalizados, que vem negociando já com Palocci. Este não foi nem nomeado ainda ministro, é o braço direito de Lula e está negociando cargo e ações. Então, imagine como será a disputa interna do PT.
E, finalmente, tem o problema dos aliados. São 11 partidos e alguns jogam pesado também, como o PP que entrou agora no segundo turno. Esse problema será gravíssimo e acho que teremos um ano de grande tensão. Minha aposta é que Dilma se alia com o PMDB e com Lula neste ano para tentar conter o avanço das outras forças, como o PP. E no segundo ano, que terá eleições municipais, veremos qual é, afinal, o interesse de Dilma.
IHU On-Line – E do ponto de vista econômico?
Rudá Ricci – Destaco como mais importante a bolha de consumo. Nós temos dois grandes problemas na economia. Um é o câmbio, que é um problema gravíssimo e, com isso, estados como o Rio Grande do Sul têm dificuldade de exportação. Já tivemos aqui no RS uma dificuldade imensa no setor de calçados quando se abre para aqueles sapatos da China, bem como o setor de brinquedos. Nós poderíamos, embora estejamos vendendo muito, estar vendendo muito mais e o governo vai ter que resolver isso.
IHU On-Line – E o que este governo vai fazer para resolver isso?
Rudá Ricci – Cortando gasto público. Mas como cortar gasto público se o que deu projeção ao Lula foi justamente isso? Aí está o problema.
IHU On-Line – E qual é o segundo problema?
Rudá Ricci – Nós tivemos um grande estímulo ao consumo e no lulismo não tivemos uma inserção social pela política, como imaginávamos na Constituição, nós tivemos pelo consumo. Acontece que as pessoas estão comprando demais. Os dados que temos revelam que 60% da população brasileira está endividada. Destes, 40% não sabe como pagar suas contas e, para piorar, continuam fazendo crediário em até 60 vezes. Isso é dado do Ipea. Por que eles continuam comprando? Como essa população estava na classe D e começou a ascender para a classe C, principalmente em função do aumento real do salário mínimo, as pessoas contam todo ano com o aumento. É por isso que a Dilma falou, depois de eleita, que vai estudar uma solução para continuar tendo aumento real do salário mínimo. Ela vai ter que cortar gastos sociais. Ela tem que cortar. Isso é consenso no governo federal. Todo mundo do governo já sabe disso.
IHU On-Line – Por que ela tem que cortar esses gastos sociais?
Rudá Ricci – Porque, se ela cortar, conseguirá manejar o mercado financeiro e baixar a taxa de juros. Com isso, não há tanto atrativo para a entrada de dólares no Brasil e, se não entra tanto dólar, o real cai e, então, conseguiremos exportar mais. Esse é o jogo. Se Dilma estancar o aumento real do salário mínimo, esses crediários vão estourar em três ou quatro anos. Então, temos que ter uma lógica de crédito para não continuarmos com essa inflação de consumo. E isso é muito difícil, porque estamos falando de uma população que sempre foi pobre. Agora, pela primeira vez, como foi nos anos 1950 nos EUA, as pessoas estão comprando o que a classe média está comprando. Eu vejo esse problema em casa: há uma senhora que trabalha na minha casa que acabou de colocar a filha num curso de informática e a matrícula custou 450 reais. O que eu falo para ela? “Cuidado, você está gastando muito dinheiro numa matrícula!”. Mas, poxa, ela está dando para a filha um futuro. Esse é, portanto, um problema do governo Dilma.
IHU On-Line – Se essa bolha estourar em três ou quatro anos, como o senhor disse, nós geramos uma crise...
Rudá Ricci – E no meio da Copa do Mundo no Brasil, ou um ano depois. As projeções que estão sendo feitas para o Brasil dão conta de que, possivelmente, em 2015 nossa bolha de crédito vai explodir. Inclusive, no setor imobiliário.
IHU On-Line – Mas a crise acontece nas mesmas proporções da crise que atingiu os EUA?
Rudá Ricci – É menos grave, mas o mecanismo é o mesmo. O Brasil é o segundo país mais rico da América. Já somos mais ricos do que o Canadá. Os brasileiros não se deram conta disso. Citando algumas ações muito recentes: Nós compramos a Budweiser, que é a segunda cerveja mais consumida nos EUA; compramos a segunda rede de fast-food dos EUA, que é o Burger King; compramos os dois principais frigoríficos dos EUA, através da Friboi; compramos todos os grandes frigoríficos e grandes cervejarias da Argentina e Uruguai; os principais bancos de crédito do Uruguai e outros países da América Latina são brasileiros; 18% da economia da Bolívia está nas mãos da Petrobras. Nós somos uma potencia mundial, temos o 7º maior PIB do mundo em 200 países. Por isso o Obama disse que o Lula é o cara, na verdade ele quis se referir ao Brasil. Se nós entrarmos em crise, despedaçaremos a América Latina.
Porém, nós não vamos entrar em crise. A questão é que vamos ter que fazer um ajuste e este ajuste é o inverso do que sentimos na segunda gestão do Lula. Quero ver como a Dilma vai administrar isso. O problema econômico do Brasil é eminentemente político. Como é que ela vai manejar isso? Daqui a dois anos teremos eleições municipais e os partidos aliados vão vender caro essa fatura. Eles não querem estar num governo que têm baixa popularidade e aí vai entrar nosso amigo Lula. Com certeza, ele vai voltar.
IHU On-Line – Como o senhor avalia o perfil de Dilma?
Rudá Ricci – Ela pode dizer que nasceu em Minas, mas ela é gaúcha. Ela faz política assim. Dilma foi do PDT, o que não é qualquer coisa. Ela sabe e vai mandar e aí vamos ver como será a acomodação desse governo. Ela aprendeu isso com o Brizola e vem da Polop (Política Operária). Esta organização clandestina surgiu no pior período do regime militar e era a mais intelectualizada de todas e totalmente baseada em estudos. Não é à toa que Theotônio Dos Santos, Paul Singer, Sônia Draibe, ou seja, a alta intelectualidade atual do Brasil vem de lá. Eles já eram assim. A Dilma tem uma formação importante em sua origem. Uma pessoa que fazia parte de uma organização clandestina tem que ser muito disciplinada e tomar decisões muito rápidas. Essa vida de você correr riscos faz com que a pessoa não fique discutindo muito em assembleias, ela toma decisões muito precisas. Ela já tem uma personalidade dura, tem essas características da vida pessoal e por ter tido essa tradição política junto com o Brizola... isso não é pouco. Essa pessoa pode ser tudo, mas dócil ela não é.
IHU On-Line – Como o senhor vê agora a reinserção de Palocci e José Dirceu no governo?
Rudá Ricci – Só para se ter uma ideia de como vai ser o governo, Palocci praticamente despejou Fernando Pimentel da campanha. Vamos voltar ao passado novamente: Depois de um tempo, Dilma saiu da Polop e entrou numa outra corrente que era resultado de um racha da Polop. Depois, ela entrou numa terceira organização que era composta pelas duas outras organizações que romperam antes. Se falarmos da genealogia das organizações, você poderá entender esses inúmeros rompimentos. De qualquer maneira, a Dilma, na segunda organização que ela participou, foi companheira do Fernando Pimentel, que foi prefeito de Belo Horizonte. O Fernando Pimentel é, portanto, uma pessoa de confiança da Dilma. Ele entrou na campanha para comandar até que veio a história dos dossiês, que começou pelo grupo de Minas contra o Serra e ele teria se apropriado. O Lula colocou o Palocci no comando da campanha e este tirou o Fernando Pimentel da coordenação. Então, ele não entrou no final da campanha. Palocci é uma pessoa que também joga pesado.
Quem está tentando entrar agora pelas beiradas é o Zé Dirceu. E aí mora o perigo. O Zé Dirceu em público é um desastre, mas na penumbra ele é uma das pessoas mais habilidosas que eu já vi na minha vida. E ele é muito charmoso. Ele tem uma capacidade de agregação muito grande. E, por isso, ele também consegue desagregar facilmente.
IHU On-Line – Como será a articulação do governo Dilma com os movimentos sociais?
Rudá Ricci – Vamos tentar definir melhor, pois eu não chamaria de movimentos sociais, mas organizações populares. Isso porque grande parte não é movimento social. É o caso das pastorais sociais. Elas se articulam, mas não são movimentos sociais. As organizações populares hoje no Brasil podem ser divididas em dois grandes blocos. Umas são as organizações populares com uma concepção mais à esquerda. Estas são, talvez, 80% das organizações populares do Brasil, incluindo aí alguns movimentos sociais, como é o caso do movimento ambientalista. Essas organizações populares mais à esquerda podem ser divididas em dois campos: a primeira tem uma relação muito tencionada com o lulismo. As pastorais sociais ligadas à Teologia da Libertação têm uma dificuldade muito grande de se relacionar com o governo Lula. Ao mesmo tempo, por terem um compromisso mais à esquerda, no momento de crise eles acabam apoiando o governo, mas as relações do dia a dia são muito conflitivas por parte dos dirigentes que dizem que o Lula rasgou os compromissos históricos. Neste caso, vai ser como foi com o governo Lula.
O segundo bloco vive do financiamento público. Em tese, não é nada que deponha contra eles. O que ocorreu é que nos anos 1990 nós tivemos um fortíssimo corte de financiamento externo para as organizações populares no Brasil, o que vai continuar, e houve uma busca de estratégia de sobrevivência. E aí todos os governos entraram. O Kassab, por exemplo, contratou um monte de Ongs para terceirizar serviços. E grande parte dos técnicos contratados pelas Ongs hoje nem fala em política, falam em profissão.
O que me preocupa não é o campo da esquerda, mas o da direita. Creio que vai surgir no Brasil, a exemplo do que ocorre nos EUA e na Espanha, um movimento de classe média ultraconservador que já apareceu no final do primeiro turno. Nós já temos o discurso e a liderança e, por isso, é bem provável que no final do governo Dilma apareça um movimento social deste tipo. A Igreja ultraconservadora voltará a ter força no Brasil.
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"As eleições manifestam a emergência de um movimento ultraconservador no Brasil". Entrevista especial com Rudá Ricci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU