05 Setembro 2010
"A produção de metano é outro problema ambiental grave que pouco se discute. A hidrelétrica vendida com energia limpa e renovável é na verdade uma falsa solução para o combate as mudanças climáticas, pois produz grandes quantidades de metano devido a massa verde submersa pelo lago e sedimentos carreados pelo rio e depositados no fundo do lago. As hidrelétricas podem ter o mesmo grau de poluição de uma termelétrica", afirmam Bruna Cristina Engel e Lucia Ortiz, da Organização Não-Governamental Amigos da Terra Brasil, em entrevista, por email, à IHU On-Line.
Confira a entrevista.
Como os Amigos da Terra Brasil definem hoje a política de construção de hidrelétricas no Brasil e no RS, principalmente na região do Alto Uruguai?
Uma política atrasada que prioriza os interesses do setor industrial sem avaliar outras dimensões senão a econômica. Enquanto o setor elétrico apresenta supostas novas estratégias de comunicação e de opções técnicas, como as tais “usinas plataforma”, os projetos são os mesmos inventariados que lotearam os rios brasileiros na ditadura militar e são impostos com o mesmo autoritarismo que desconsidera outras opções e demandas por melhores condições de vida por parte das populações regionais.
Segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), o setor industrial foi responsável pelo consumo de 46,1% da energia elétrica em 2008, enquanto o setor residencial por apenas 24%. Este desbalanço na distribuição de energia deve-se ao fato da concentração no Brasil dos setores industriais eletronintesivos, voltados à exportação de alumínio, ferro, aço, celulose e a produção de cimento, que tem na água e na energia barata uma fonte de lucro. Obviamente as indústrias são o principal consumidor de energia no país e batem constantemente seus recordes de consumo: No mês de julho consumiram 15.915 GWh (Gigawatts hora), 13,7% a mais que o mesmo período do ano passado.
Dados da EPE revelam também que a demanda total por energia elétrica cresceu 8,5% comparado com igual período do ano passado. A leitura que pode ser feita desses dados é o aumento do poder de consumo da atividade industrial, e o resultado disso são mais investimentos em construção de hidrelétricas. Para o Brasil crescer, precisamos de mais energia! Essa é a frase que ouvimos durante décadas e que caracteriza um sistema de crescimento econômico atrelado a processos industriais altamente dependentes de grande quantidade de energia e bens naturais que não vêem na destruição dos rios um limite para o seu crescimento.
Com financiamento público através do BNDES (principalmente fundos de pensão), licenciamento ambiental feito a toque de caixa, audiências públicas de fachada e atropelo da legislação ambiental, grandes grupos industriais como a Votorantin Cimento, Alcoa Alumínio S.A., Vale, Gerdau, CPFL Energia, GDF Suez, CSN, Camargo Corrêa, Andrade Gutierres, Bradesco e outros são considerados os donos do rio Uruguai. As hidrelétricas são projetadas e construídas sem respeito pela população local e sem objetivar o seu abastecimento energético. A energia gerada e lançada no SIN – Sistema Interligado Nacional – atende a demanda de indústrias instaladas em todo o Brasil. Ou seja, se a Alcoa está precisando de energia para transformar a bauxita lá no Pará e é oportuno construir uma hidrelétrica aqui no sul, ela o faz e joga a energia produzida no SIN e paga um valor subsidiado muito inferior ao MWhora que pagamos os cidadãos e cidadãs brasileiros.
A região do rio Uruguai não é diferente do resto do país. O rio Uruguai é um rio de corredeiras encalhado na serra da mata atlântica, entre os estados do RS e SC e com alto potencial elétrico, 12.816 MW ou 5,1% do potencial nacional, dos quais 5.186MW já foram aproveitados e o restante está inventariado. As sete usinas já instaladas geram aproximadamente R$3,2bi anuais de lucro para os consórcios que possuem a concessão das usinas. As hidrelétricas são obras gigantes, de lucros vultuosos e estão totalmente atreladas a um modelo explorador e exportador que nada tem a ver com o desenvolvimento equilibrado e eqüitativo das regiões do país.
Como entender a desenfreada expansão de hidrelétricas no Brasil e no RS? O que está na origem disso?
Ainda na época do regime militar o Brasil iniciou-se uma abertura aos investimentos internacionais e a colonização da região norte do país. Para atender a demanda crescente por energia que as mineradoras precisavam, o Estado inventariou os rios brasileiros de forma a aproveitar cada MW em potencial existente. Exemplo dessa política são as megarepresas de Tucuruí e Itaipu. Muitos daqueles projetos hidrelétricos foram arquivados por serem inviáveis tecnicamente, ou polêmicos demais, como as dezenas de hidrelétricas projetadas para o coração da Amazônia que hoje estão sendo impostas goela a abaixo com a justificativa do crescimento do país.A partir dos anos 90 com a privatização do setor elétrico houve, além do aumento do desemprego e da precarização do trabalho, um período de ausência do planejamento energético por parte do Estado que levou à crise de energia de 2001, quando se iniciou uma nova onda de retomada de antigos projetos de aproveitamento hidrelétrico projetados no regime militar. Um planejamento setorial voltado a apresentar oportunidades de negócios, desvinculado de uma projeto de futuro para o país.
A usina de Barra Grande no rio Pelotas é um exemplo disso, com histórico de irregularidades e mobilizações que não foram suficiente para barra-la. Outra é a UHE Garibaldi, no rio Canoas, ambas nas cabeceiras do rio Uruguai. A UHE Garibaldi, com LP emitida pela FATMA – SC, está locada dentro do PAC e visa atender a demanda crescente por energia principalmente na região sudeste do país onde se dá a maior concentração de indústrias eletrointensivas.
Que relação podemos estabelecer entre a construção de hidrelétricas e o agronegócio?
A construção de hidrelétricas está mais relacionada à fabricação de insumos como fertilizantes agrícolas. A partir da liberação da exploração mineral em todo território nacional para fabricação de fertilizantes, encabeçada pela Vale, a produção de energia precisa acompanhar o crescimento do setor do agronegócio que, ao contrario do modelo da agroecologia, é altamente intensivo em energia, consumida na fabricação destes insumos bem como no uso de maquinário pesado e na logística ineficiente de distribuição globalizada.
Outra demanda é a produção e exportação de celulose, também um setor eletrointensivo que tem crescido sua autoprodução de energia utilizando resíduos madeireiros e carvão mineral nos seus processos industriais, mas também investido em projetos conjuntos de geração hidrelétrica. No RS onde o Pampa está sendo dizimado por monoculturas de árvores exóticas para atender a demandas das plantas de produção de celulose, estas se erguem como gigantes famintos de energia, água, terras, madeira e mão de obra barata.
Como as hidrelétricas impactam especificamente a realidade social e ambiental do RS?
O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) aponta que aproximadamente 60 mil pessoas já foram atingidas por empreendimentos hidrelétricos no RS e no máximo 30% dessa população foi indenizada e reconhecida como atingida por barragens. Um estudo da Universidade de Passo Fundo - UPF aponta que após alguns anos de implatanção de uma hidrelétrica na região do alto rio Uruguai, os indicadores de desenvolvimento mostram queda de aproximadamente 40%. Por exemplo a produção (-40%), o comércio (-43%), o emprego (-43%), produção agropecuária (-36%), as relações sociais e culturais (-40%), as relações de amizade e familiares (-71%), meio ambiente natural em geral (-31%). Isso mostra que a chegada de um empreendimento hidrelétrico está longe de promover o desenvolvimento local ou aquecer a economia a nivel regional. Outros estudos feitos pela Comissão Mundial de Represas, na década de 90, apontam para o mesmo cenário de retrocesso e desestruturação das relações sociais, culturais e econômicas que chegam com as barragens independente da região do globo.
O impacto no ambiente natural talvez seja mais grave devido às proporções do impacto social associado. Pegando o caso de Barra Grande, onde foram inundados mais de 6000 ha de matas de araucárias, se deu a migração de animais para regiões habitadas nos campos de cima da serra. O aparecimento de animais silvestres em sítios e cidades da região tem deixado os moradores preocupados com a segurança de crianças, por exemplo. Esses animais agora perambulam em busca de um lar e alimento e por conta disso acabam atacando animais domésticos e pessoas.
A região do Alto Uruguai, característica por ter solos férteis, rios ricos em peixes e uma economia baseada na agricultura familiar corre o risco de mudar drasticamente o perfil econômico e sofrer forte impacto ambiental nas cabeceiras, como está ocorrendo no rio Canoas, onde mais de mil famílias de pequenos agricultores que são atores da economia local e vivem com qualidade de vida nas margens do rio estão ameaçados de serem deslocados. Os projetos hidrelétricos Garibaldi, Pai Querê e Passo do Cadeia, se implantados podem iniciar um processo de morte do bioma Mata Atlântica na região. A área do Alto Uruguai rica em espécies endêmicas corre o risco de desaparecer por causa dos lagos artificiais que impedem a passagem de animais de uma margem a outra isolando populações, além da modificação rápida e radical do ambiente aquático que afeta não só a população de fauna e flora aquática mas toda a cadeia trófica inclusive o modo de subsistência de populações humanas que dependem do rio para sobreviver.
A produção de metano é outro problema ambiental grave que pouco se discute. A hidrelétrica vendida com energia limpa e renovável é na verdade uma falsa solução para o combate as mudanças climáticas, pois produz grandes quantidades de metano devido a massa verde submersa pelo lago e sedimentos carreados pelo rio e depositados no fundo do lago. As hidrelétricas podem ter o mesmo grau de poluição de uma termelétrica.
Quais as principais questões políticas que envolvem a construção de barragens no RS?
São empreendimentos que da mesma forma que a construção de estradas, dão votos porque vendem a falsa idéia de desenvolvimento. Atualmente políticos e empresas renovaram o discurso na tentativa de vender a idéia da sustentabilidade, sem mudar a sua lógica de exploração da natureza. Os governos têm ajudado na organização e concentração dos atores do grande capital, planejando, promovendo e financiando com dinheiro público as grandes obras das mesmas grandes indústrias que financiam as campanhas eleitorais, de direita ou de esquerda.
A concentração da produção de celulose, o aço da Gerdau, o Pólo Petroquímico... assim como o parque industrial da região sudeste, exigem alta produção de energia. Apesar da pressão da sociedade por fontes alternativas, a falta de políticas de incentivo e planejamento para a produção descentralizada segue uma forma de criminalizar como cara as fontes mais sustentáveis de energia. Por outro lado, políticas publicas subsidiam energia cara e suja de termelétricas a carvão e nuclear e fortalecem a indústria das hidrelétricas.
Como os órgãos públicos responsáveis e os governos do estado têm lidado com a questão das hidrelétricas ao longo da história?
Quando no regime militar os governos eram totalmente favoráveis as Hidrelétricas, os órgãos públicos responsáveis tinham pouca autonomia para barrar o processo de expansão da oferta. Atualmente, em regime democrático, a situação não mudou quase nada. O Estado, ao promover políticas desenvolvimentistas, com programas de aceleração do crescimento (os PACs), afeta a demanda por energia abrindo mercado para expansão da oferta. O PDE 2010 aponta aumento da produção de energia de 3.333 MW anuais para acompanhar as taxas de crescimento econômico. O desmonte e enfraquecimento dos órgãos públicos tem se intensificado na medida em que os investimentos em projetos de alto impacto ambiental aumentam. Casos de demissão semanas antes da emissão das licenças ou a troca de técnicos para outros setores são comuns em época de falta de diálogo entre os políticos, pesquisadores e a sociedade civil.
O exemplo da Fepam, que alertou antecipadamente o IBAMA sobre a fraude da UHE Barra Grande em 2004, nos últimos anos foi gritante: de um órgão público ambiental exemplar para todo o Brasil em termos de qualificação dos seus técnicos e de transparência na obtenção de informações por parte da sociedade, virou um balcão de atendimento prioritário às empresas com casos de emissão de licenças previas ao recebimento e análise dos estudos de impacto ambiental para a construção de barragens, onde os técnicos passaram a ser perseguidos e afastados dos processos de licenciamento ou de formulação de políticas como as que se discutem no Consema-RS.
Quais os principais danos que as hidrelétricas podem provocar à biodiversidade gaúcha?
A bacia do rio Uruguai se caracteriza por altas taxas de endemismo nos vales formados nas cabeceiras, no Alto Uruguai. A construção de lagos provoca a morte de populações de animais, a extinção de espécies endêmicas e a conseqüente perda da biodiversidade. A região abriga uma das maiores populações de araucárias, o pinheiro brasileiro, que está em risco eminente de extinção. O Salto do Yucumã, maior queda longitudinal do mundo e símbolo cultural pode desaparecer com a construção de usinas como a de Itapiranga e Garabi, esta ultima com 2800MW, projetada para o rio Uruguai entre o RS e a Argentina, outro
projeto da época do regime e que voltou um pouco reformulado mas como o mesmo potencial de destruição que o anterior. Não se sabe ainda qual a exata localização da usina, sabes-se que está entre as províncias de Corrientes e Missiones do lado argentino e Garruchos do lado brasileiro. Só em solo argentino estima-se cerca de 30000 pessoas serão atingidas pela obra. A projeção da área de alagamento é de 730km². As pessoas que vivem na terra manejam e resguardam agrobiodiversidade que pode ficar sob as águas em regiões importantes do nosso território.
Quais as possíveis consequências de uma alteração na sensibilidade ambiental do clima gaúcho em função das hidrelétricas?
A mudança no clima pode ocorrer em escala regional, o lago pode aumentar a umidade relativa e alterar o regime de chuvas da região. O conjunto de lagos pode também tornar-se um corredor de ventos fortes e aumentar a vulnerabilidade regional a eventos climáticos extremos, como tornados e vendavais. Os rios sofrem alterações no fluxo onde a conseqüência pode ser desde o assoreamento até diminuição da fertilização das margens, afetando diretamente a agricultura tradicional. Estudos da Secretaria Estadual de Saúde demonstram também o aumento de vetores de doenças, como a proliferação de ratos e mosquito, devido às alterações climáticas e ambientais locais no entorno das barragens do rio Uruguai.
Qual deveria ser a postura do BID e outros bancos em relação ao financiamento dos leilões de construção de hidrelétricas?
Se antes os principais atores financeiros eram bancos internacionais Multilaterais como o BID e o BIRD, hoje o BNDES atua como principal banco de fomento e chega a financiar 80% das obras de hidreletricidade para depois entregar todos os lucros ao capital privado. São investimentos de alto risco ambiental e social em expansão no Brasil e fora de forma autoritária para alavancar o país a qualquer preço, mesmo que seja pra destruir com a diversidade biológica e social dos territórios.
Segundo levantamento da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multialterais, de 2004 a 2009, quase 70% dos desembolsos do BNDES para a região Sul do país foram para a construção de hidrelétricas, o equivalente a R$ 4.672.617.910,00 (4,67 bilhões de reais).
Ao contrario das instituições internacionais mencionadas, o BNDES não tem uma política de informação sobre seus investimentos públicos no exterior e não apresentou à sociedade sua política de salvaguardas ambientais, enquanto que muitos empreendimentos financiados pelo banco são denunciados na justiça pelo descumprimento das leis ambientais e princípios da administração pública, como é o caso das usinas do rio Madeira e Belo Monte no Xingu, ou da condenação do banco pela propaganda tendenciosa dos financiamentos para o setor de celulose no RS. A iniciativa da Plataforma BNDES é que disponibiliza as informações sobre os financiamentos públicos do banco no Brasil, assim como um mapa onde os casos controversos podem ser denunciados por organizações da sociedade civil.
O que é desenvolvimento sustentável para os gaúchos hoje, quando pensamos, por exemplo, na questão das hidrelétricas no estado?
A produção de energia no estado não se sustenta. Uma mega barragem que impede o fluxo natural de um rio, provoca a morte e extinção de espécies,desestabiliza os sistemas sociais e quebra com a economia local não pode ser considerada sustentável. Além do mais essa energia é produzida principalmente para atender a demanda industrial eletrointensiva extrativa, uma cadeia produtiva altamente concentradora de lucros, comparativamente a outros setores menos geradora de empregos, poluidora e que põem em risco a biodiversidade e a qualidade de vida da população.
A hidroeletriciade pode ser considerada sustentável, talvez, se produzida de forma decentralizada, com controle social para atender a demanda local. Deve-se ter muito cuidado ao apoiar iniciativas de pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), as quais se reproduzem em projetos de autoprodução das mesmas industrias que investem nas UHEs, pelo risco de essas usinas minarem a calha de um rio, desviarem as águas, secar trechos à jusante e impedir a reprodução de peixes. O que vemos hoje é a proliferação de PCHs em escada num único rio, inclusive em áreas na bacia do rio Uruguai para onde populações afetadas pelas grandes barragens já foram reassentadas, sendo vendidas como uma solução às grandes hidrelétricas, novamente uma falsa solução.
A sustentabilidade de uma sociedade não se encontra apenas na busca de alternativas de fontes de energia para suprir seus modos de vida, mas sim no questionamento das causas e dos valores que levam a sociedade a destruir a natureza da qual faz parte e depende para viver. Este questionamento é o que pode gerar maior criatividade, soluções e mudanças estruturais no caminho da construção de sociedade sustentáveis.
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Grandes grupos industriais são donos do Rio Uruguai. Entrevista especial com Bruna Cristina Engel e Lucia Ortiz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU