19 Janeiro 2010
Ao longo dos últimos anos, a América Latina não apenas vive uma revitalização religiosa, mas também está revertendo um processo histórico: agora é a América Latina que está enviando missionários ao resto do mundo. E grande parte deles são leigos.
Essa é a análise de Edward L. Cleary, sacerdote dominicano e professor do Providence College, nos Estados Unidos. Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, Cleary defende ainda a grande contribuição da Renovação Carismática nesse processo, questionando sua certa "invisibilização" dentro do contexto da Igreja. "Eles são o maior movimento dentro da Igreja Católica na América Latina, mas não tiveram nenhum participante escolhido para a Conferência de Aparecida do CELAM", critica.
Para o doutor em Ciências Sociais, a partir das contribuições da Teologia da Libertação e de alguns aspectos culturais como um "sentimento de comunidade" da América Latina, a Igreja latino-americana está mais perto dos leigos e também permite iniciativas dos setores médio e baixo da organização. "A evangelização e o trabalho missionário têm fomentado transformações mais profundas entre os católicos. Ou seja, eles têm ido além da mera filiação formal ao compromisso com a missão da Igreja", afirma.
Edward L. Cleary é sacerdote dominicano, mestre em Filosofia, doutor em Ciências Sociais e professor do Providence College, em Rhode Island, nos Estados Unidos. Nessa instituição, é diretor do programa de Estudos Latino-Americanos. Já lecionou nas universidades de Nova York, California, Pittsburgh e Yale. É presidente do Instituto Boliviano de Estudo e Ação Social (Ibeas), em La Paz, Bolívia. É autor do recente "How Latin America Saved the Soul of the Catholic Church" [Como a América Latina salvou a alma da Igreja Católica] (Paulist Press, 2010) e "Conversion of a Continent: Religious Change in Latin America" [Conversão de um continente: Mudança religiosa na América Latina] (Rutgers University Press, 2007), dentre outros. Mantém o sítio Religion in Latin American, www.providence.edu/las.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Já no título do seu novo livro, o senhor defende que a América Latina salvou a alma da Igreja Católica. Em linhas gerais, como e por que isso ocorreu?
Edward Cleary – "How Latin America Saved the Soul of the Catholic Church" [Como a América Latina salvou a alma da Igreja Católica, Paulist Press, 2010, sem tradução para o português] apresenta evidências para mostrar que a Igreja Católica, com poucas exceções nacionais, faz parte da revitalização religiosa que está ocorrendo na América Latina; um renascimento que também é evidente no neopentecostalismo (como a Igreja Universal do Reino de Deus – IURD, por exemplo), no pentecostalismo (como a Assembleia de Deus), nas religiões afro-brasileiras e indígenas. A Igreja Católica demonstrou uma vitalidade notável nos últimos anos, com 1,5 milhão de catequistas leigos, e 118.784 missionários leigos no ano 2000. (Nem todos os grupos religiosos estão florescendo, no entanto, já que grupos protestantes mais velhos estão estagnados ou diminuindo consideravelmente).
"A Igreja Católica faz parte da revitalização religiosa que está ocorrendo na América Latina, um renascimento que também é evidente nas demais religiões"
Outra evidência vem do Latinobarómetro [www.latinobarometro.org], através de suas pesquisas anuais em 18 países latino-americanos que têm mostrado que os católicos têm tido um nível consideravelmente elevado de confiança na Igreja Católica. Essa confiança tem se mantido ao longo de anos e em todos os países. As pesquisas do Latinobarómetro sobre a confiança na Igreja têm sido confirmadas pela Universidade de Vanderbilt e por outros estudos sobre a confiança nas instituições.
Essa vitalidade e esse nível de confiança têm ocorrido, penso eu, porque a Igreja latino-americana, mais do que qualquer outra Igreja regional, tem envolvido os leigos no trabalho e na missão da Igreja. Essa pastoral de conjunto tem sido a base de muitas decisões políticas apresentadas pelo CELAM [Conselho Episcopal Latino-Americano], desde a sua extraordinária Conferência de Medellín (1968). Os movimentos leigos da década de 30, como a Ação Católica, e movimentos de revitalização mais recentes, como a Renovação Carismática Católica, com seus 73 milhões de adeptos na América Latina, levaram muitos católicos à evangelização e ao trabalho missionário. Resumindo, a confiança na Igreja provém de sua responsabilidade compartilhada.
IHU On-Line – Nesse contexto, qual é o papel e a relevância da Teologia da Libertação hoje?
Edward Cleary – A influência da Teologia da Libertação está com certeza inserida nos documentos não apenas da Igreja latino-americana, mas também nas declarações políticas da Igreja dos Estados Unidos, nos níveis nacional e estadual, e em outros lugares do mundo. A Teologia da Libertação foi incorporada em vários aspectos pela teologia indígena, pela teologia afro-latino-americana e pela teologia feminista. A mística de reverência pela criação expande uma perspectiva de libertação. A opção pelos pobres foi adotada pelo Papa João Paulo II. Ele falou sobre a "opção preferencial pelos pobres" no Yankee Stadium e em outros locais de encontro.
Em segundo lugar, a herança da Teologia da Libertação está evidente nas vidas das pessoas que trabalham em organizações e movimentos da sociedade civil, especialmente aqueles dedicados aos direitos humanos. A Teologia da Libertação tem assumido, assim, outras formas de expressão desde a década de 70 e encontrou campos mais amplos para a sua perspectiva de justiça social.
IHU On-Line – Quais são as particularidades da Igreja Católica da América Latina comparadas com a dos EUA? Como o "estilo católico latino-americano" pode contribuir com a Igreja mundial?
Edward Cleary – Em contraste com os EUA, onde as principais questões públicas para a Igreja têm sido o aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e questões afins, a Igreja latino-americana tem enfatizado questões públicas, como o desemprego e o uso dos recursos naturais, como a água.
"Movimentos leigos da década de 30, como a Ação Católica, e movimentos mais recentes, como a Renovação Carismática, levaram muitos católicos à evangelização e ao trabalho missionário"
A Igreja latino-americana pode contribuir para o bem da Igreja global: 1) estando perto dos leigos e permitindo que participem da missão da Igreja, assim como fazem as centenas de milhares de catequistas; 2) incentivando os aspectos positivos da Renovação Carismática, como um desejo de rezar, louvar e curar as divisões das famílias e das sociedades; 3) promovendo uma orientação de justiça social por meio da educação formal e informal.
Não existe um estilo latino-americano. Há um impulso latino-americano para a solidariedade – de fazer as coisas juntos. Há um sentimento de comunidade muito maior entre os latino-americanos, creio eu. Por isso, há um impulso latino-americano para se expressar publicamente o que se sente, como na música e na dança. Como os chilenos mantiveram a fé em Iquique durante 70 anos sem padres? Eles cantavam e dançavam solenemente os mistérios do Natal e da Páscoa, instruindo dessa forma os jovens e louvando a Deus de uma forma que surgiu naturalmente, enquanto esperavam até poderem ter a Eucaristia e a pregação da Palavra de novo. Essas qualidades latino-americanas irão enriquecer outras Igrejas.
IHU On-Line – Como o catolicismo latino-americano tem reagido à crescente secularização e ao novo ateísmo, defendida por pensadores como Michel Onfray e Richard Dawkins?
Edward Cleary – A resposta à secularização tem sido amplamente indireta. A Igreja tem animado um amplo setor de leigos por meio de movimentos de revitalização que enfatizam um maior aperfeiçoamento pessoal e social, oração e ação. Os 400.000 catequistas indígenas deram grande força aos católicos indígenas nos países onde os índios têm grandes populações. Os 800.000 catequistas leigos que estão trabalhando com não-indígenas têm aumentado o conhecimento religioso dos católicos e têm os tornado menos propensos a mudar de filiação religiosa ou a deixar de crer.
Mas a ação direta para conter a secularização pode ser vista na nova extroversão dos católicos que querem compartilhar sua fé na evangelização e missão. Os exemplos de sacerdotes contemporâneos e leigos que evangelizam por meio da música e da pregação na rádio e na televisão, como no Brasil e na Guatemala, são parte dessa nova extroversão. Exemplo disso são os muitos artistas católicos – vários milhares hoje –, que se apresentam em festivais de música católica, shows, produzem CDs etc.
A evangelização e o trabalho missionário têm fomentado transformações mais profundas entre os católicos. Ou seja, eles têm ido além da mera filiação formal ao compromisso com a missão da Igreja.
"A herança da Teologia da Libertação está evidente nas vidas das pessoas, especialmente nos direitos humanos"
Nos 1.000 anos ou mais da história escrita do ateísmo, Dawkins e outros autores recentes parecem ser intelectuais "pesos leves", menos rigorosos do que muitos intelectuais não-crentes que os precederam. Ao longo dos séculos, a Igreja sempre teve necessidade de um setor de pessoas instruídas que estivessem prontas a responder a questões controversas de Dawkins ou de qualquer outra pessoa.
O crescente problema de pessoas "sem religião" tem que ser considerado e tratado por meio do alcance geral dos meios de comunicação e também por meio da Pastoral de Rua. Membros da Toca de Assis e muitos outros falam com pessoas em lanchonetes e pizzarias sobre Deus e Jesus. Franciscanos ministram aulas às crianças de rua, e assim por diante. Pregadores católicos leigos podem ser vistos nas numerosas "plazuelas" da Bolívia e do Peru.
IHU On-Line – Especialmente no Brasil, o movimento neopentecostal tem uma grande importância, como se pode ver a partir do surgimento de grandes Igrejas e templos multitudinários. Essa pulverização de novas crenças cristãs pode fortalecer o catolicismo?
Edward Cleary – A concorrência aumenta o desejo da Igreja pela revitalização dos seus membros. Movimentos leigos e a educação católica têm ajudado a animar centenas de milhares de evangelistas, catequistas, leigos e pregadores clericais.
Os católicos têm sido muito ativos no rádio e na televisão (eno cinema). A Canção Nova, no Brasil, e os Eventos Católicos, na Guatemala, são apenas dois grupos que respondem a esse desafio. Outro indicador da vitalidade tem sido a venda de Bíblias Católicas e o estudo de textos bíblicos nas comunidades carismáticas e em outras pequenas comunidades.
"Os católicos carismáticos são invisíveis? São o maior movimento da Igreja Católica na América Latina e adicionaram uma dimensão além das CEBs"
IHU On-Line – Como o senhor vê o papel das Conferências dos Bispos na América Latina? Elas ainda mantêm seu papel profético e político como no passado?
Edward Cleary – As Conferência dos Bispos da América Latina tem ajudado a definir a agenda para a ação pastoral da Igreja regional. Suas prioridades também afetam e comumente entram nos planos de três ou cinco anos das Conferências dos Bispos nacionais. A evangelização tornou-se um objetivo principal há já alguns anos, e acredito que os resultados positivos podem ser vistos na grande mobilização dos catequistas e missionários leigos. Além disso, em comparação com os EUA e a Europa, o número de sacerdotes, seminaristas e irmãs têm crescido notavelmente, e não diminuído.
IHU On-Line – Na Igreja da América Latina, os fiéis têm uma importância histórica, como podemos ver pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Mas esse movimento parece estar perdendo importância hoje, até mesmo desaparecendo em algumas regiões. Como o senhor analisa a relação entre as autoridades eclesiais e os leigos na América Latina?
Edward Cleary – Acredito que a sua pergunta olha muito para o passado. A Renovação Carismática Católica tem milhões de membros na América Latina. Na prática, todos os membros, em algum momento, pertenceram a uma pequena comunidade – grupos de oração. Há milhares de latino-americanos rezando, lendo, apoiando um ao outro, fazendo o bem uns aos outros nesses grupos de oração. Estas são pequenas comunidades cristãs, não? A grande maioria de carismáticos é de leigos, e o movimento, na maioria dos países – a Argentina provavelmente é uma exceção –, é um movimento leigo.
"Há um sentimento de comunidade muito maior entre os latino-americanos. Por isso, há um impulso para se expressar publicamente o que se sente"
A clericalização é retratada pelo padre Andrew Greeley, sociólogo, em seu recente livro, "Priests" [Sacerdotes], como sendo um problema central da Igreja Católica dos EUA, porque os bispos e padres não ouvem e não respondem aos leigos. Em contraste, a Igreja latino-americana está mais perto dos leigos e também permite iniciativas dos setores médio e baixo da organização. Novamente, a evidência de catequistas leigos e missionários leigos é uma prova disso. Então, olhando um pouco mais profundamente, encontra-se as Escolas de Evangelização Santo André em todo o mundo. Elas foram criadas por um leigo mexicano [José H. Prado Flores] que trabalha com milhares de leigos para evangelizar outras pessoas leigas.
Além disso, o movimento carismático tem adicionado uma dimensão acima e além de grande parte das CEBs. Muitos carismáticos fizeram profundos e longos compromissos formais de viver uma vida cristã e formaram comunidades de aliança. Essas comunidades estão fazendo mais em alguns aspectos do ministério do que os membros das CEBs jamais fizeram. As comunidades de aliança administram estações de rádio e televisão, compartilham suas vidas por um longo período de tempo e estão indo para outros países, a partir do Brasil e da América Latina, para revitalizar outras partes do mundo. Depois de centenas de anos recebendo missionários, a América Latina está enviando missionários. Muitos deles são leigos.
Os católicos carismáticos são invisíveis? Eles são o maior movimento dentro da Igreja Católica na América Latina, mas não tiveram nenhum participante escolhido para a Conferência de Aparecida do CELAM.
Notas do entrevistado:
(Reportagem de Moisés Sbardelotto. Tradução de Malcon Naor Voltz)
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Da América Latina para o mundo: o renascimento religioso. Entrevista especial com Edward L. Cleary - Instituto Humanitas Unisinos - IHU