06 Outubro 2009
O mais recente relatório sobre a desigualdade no Brasil, divulgado pelo IPEA, aponta que o país conseguiu atingir a primeira meta dos Objetivos do Milênio, que visa reduzir a pobreza em 25 anos, dez anos antes do prazo estabelecido. Ainda assim, há muita pobreza no país e, por consequência, muita desigualdade. Segundo Sergei Soares, que participou do debate realizado na apresentação do relatório, Brasília é o distrito mais desigual do Brasil. “Basicamente, porque tem muitos funcionários públicos bem pagos e muito bem qualificados também, não estou dizendo que é injusto, mas eles recebem salários muito elevados e são muitos. E, por outro lado, tem muitos migrantes pobres, que vão para Brasília em busca de oportunidade e não conseguem achar muita coisa. Então, a cidade tem um cinturão de miséria muito grande”, contou ele à IHU On-Line durante a entrevista que concedeu por telefone.
Sergei Suarez Dillon Soares é físico e trabalha como Técnico de Planejamento e Pesquisa no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). É um dos organizadores do livro Os mecanismos de discriminação racial nas escolas brasileiras (Brasília: IPEA, 2005).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Estudo recente do IPEA destaca que a desigualdade vem caindo no país. Em que quesitos ela caiu mais e em quais permanece forte?
Sergei Soares – Quando falamos que a desigualdade vem caindo, estamos nos referindo, exclusivamente, à questão da renda. Chamamos essa “conta” de domiciliar per capita, onde juntamos, em um domicílio, a renda de todos os membros e depois dividimos pelo número de pessoas na família. Porque não usamos a renda do trabalho? Porque queremos ver efetivamente uma medida de bem-estar. Então, se temos uma pessoa que ganha um salário mínimo, mas tem uma família muito grande, esta não está bem. Entretanto, uma pessoa sozinha que ganha um salário mínimo não está tão mal assim. Esta é a medida de renda que utilizamos, e que é a medida usada internacionalmente para comparações de desigualdade. Nesse sentido, temos uma queda que vem desde 2001 de modo extremamente estável. Perdemos mais ou menos a mesma quantidade de desigualdade a cada ano, eu diria que é um ritmo bom, mas, em outros aspectos da vida, como acesso a serviços públicos, ser proprietário de bens duráveis, educacionais e políticos, eventualmente, não está sendo medida com o mesmo cuidado. É claro que estas desigualdades contribuem para o bem-estar das pessoas, mas acho que quase qualquer um concordaria que se eu escolher uma como sendo a mais importante seria a desigualdade de renda. Dinheiro é muito importante em uma economia capitalista.
IHU On-Line – A desigualdade diminui de forma uniforme em todas as regiões do país?
Sergei Soares – Não. Ela vem diminuindo de modo uniforme no tempo. Medimos a desigualdade usando uma medida chamada de índice de Gini. Basicamente, ela vai de zero, que é a igualdade perfeita, inatingível, a um, que é a desigualdade perfeita, também inatingível, além de ser indesejável. Nossos índices de Gini, antes do início desta queda, situavam-se em torno de 0,6 ou, multiplicando por 100, 60. A desigualdade começou a cair em torno de 1999 e 2001, e vem caindo em torno de 0,7 ou 0,8 pontos de Gini ao ano, isto é um ritmo de queda que é equivalente ou melhor do que o ritmo dos países hoje desenvolvidos, principalmente europeus, enquanto estes mesmo construíam seus sistemas de bem-estar social. Então, se olharmos a queda de desigualdade na Inglaterra, entre 1880 e 1960, é um ritmo bem inferior ao nosso. A queda da desigualdade nos Estados Unidos, nos anos do Roosevelt, é um ritmo ligeiramente inferior ao nosso. Isto eu considero uma boa notícia, estamos indo em um ritmo bom, mas claro que estamos com um atraso entre 50 e cem anos em relação ao tempo que os outros levaram para construir sociedades com alto índice de igualdade.
IHU On-Line – Qual é o papel das políticas públicas na incidência da queda da desigualdade social?
Sergei Soares – A redução da nossa desigualdade tem sido muito saudável, no sentido de que é linear na distribuição de renda. Quanto maior a renda das pessoas, menor o crescimento dela ao longo dos últimos seis, sete anos. Então, se olharmos as pessoas que tem renda 1/10 superior, significa que a renda delas tem crescido algo em torno de 1% ao ano. Já as pessoas com renda de 1/10 inferior, o crescimento foi em torno de 7 ou 8% ao ano. É como se as pessoas mais ricas estivessem morando em um país como a Alemanha, relativamente rico, mas que cresce devagar, e as mais pobres em um país como a China, pobre, mas crescendo muito rápido.
Entre a classe média, também segue a tendência, é impressionante. As distribuições de renda não costumam ser tão “bonitinhas”, mas a incidência é uma linhazinha crescente com a renda. O que é uma coisa muito saudável. Mostra que estamos reduzindo a desigualdade para todo mundo, não é que em uma parte da distribuição de renda teremos uma grande redução, mas outros estão ficando para trás. O que está acontecendo é uma redução na desigualdade muito saudável, e igualmente repartida ao longo da distribuição de renda.
Distribuição de renda por regiões
Outra coisa: o regional. A desigualdade tem caído em todas as regiões, com exceção da região centro-oeste, que tem algumas peculiaridades. A região centro-oeste tem algo chamado Brasília. E Brasília é a unidade da federação mais desigual do Brasil. Basicamente, porque tem muitos funcionários públicos bem pagos e muito bem qualificados também, não estou dizendo que é injusto, mas eles recebem salários muito elevados e são muitos. E, por outro lado, tem muitos migrantes pobres, que vão para Brasília em busca de oportunidade e não conseguem achar muita coisa. Então, a cidade tem um cinturão de miséria muito grande. Tem, também, os estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul que são muito dependentes da soja, que não é uma cultura promotora de igualdade. Lá tem o grande proprietário da terra que ganha muito, e há os empregados que não ganham tanto dinheiro. Então, deve ser por isso que a região centro-oeste tem reduzido pouco, ou nada, a desigualdade. Agora, em todas as outras regiões, a redução foi bem razoável. Aconteceu na região sudeste, São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, na região sul, que já era a mais igualitária do Brasil, e na região nordeste, que era muito desigual e teve uma boa redução da desigualdade.
IHU On-Line – O que o país deveria fazer para acelerar a diminuição da desigualdade?
Sergei Soares – Diria que, mais importante que acelerar, é manter. A história está cheia de reduções de desigualdade que duram pouco tempo. É interessante uma comparação entre Estados Unidos e o Reino Unido. Se observarmos a desigualdade no Reino Unido, houve um momento em que caiu em torno de 0,3 pontos de Gini. Sei que isso parece um número meio difícil de interpretar, mas é só para comparação. Nos EUA, logo no final da grande depressão e no início da segunda guerra, ela caiu da ordem de 0,7, ou seja, bem mais rápido. Só que os americanos mantiveram a queda por pouco tempo, e os ingleses mantiveram a queda da desigualdade por quase um século.
Hoje em dia, a Grã-Bretanha é muito mais igualitária do que os EUA. Claro que mais rápido sempre é melhor, mas o nosso desafio principal é manter nossa desigualdade em queda por duas ou três décadas. Se mantivermos o ritmo que estamos, conseguiremos chegar em 22 anos ao nível de desigualdade do Canadá, que é um excelente paradigma de civilização, com uma distribuição de renda muito justa. Estamos aqui “soltando foguetes” e comemorando sete anos de redução, mas não podemos esquecer que temos que manter mais 22, e este é o principal desafio.
E, felizmente, temos muita coisa que podemos fazer para reduzir a desigualdade no Brasil, porque o país é absurdamente desigual ainda. Temos fortes desigualdades regionais, o que quer dizer que precisamos ter a renda no Piauí crescendo, a longo prazo, mais do que no Rio Grande do Sul, pois este é mais rico que o Piauí. Pode crescer em todos os lugares, mas deve crescer mais nos lugares mais pobres. A renda dos negros tem que crescer mais rapidamente que a renda dos brancos, pois temos que reduzir as desigualdades racionais.
Em termos de políticas, a tributária seria muito importante. Temos um esquema tributário extremamente desigual, no qual tem pouco imposto de renda e muito imposto indireto, como o CPMF e o ICMS, que são impostos muito regressivos. Temos que mudar o mix da tributação e começar a cobrar mais imposto de renda, imposto sobre veículos, IPTU, desses impostos diretos que são mais progressivos, e menos dos regressivos. É preciso investir muito em educação, pois tem uma relação muito forte com rendimentos e desigualdades no mercado de trabalho. Também temos que melhorar nosso sistema de transferências. O Bolsa Família e o crescimento do salário mínimo já foram muito importantes, mas, ainda, não é tão progressivo assim. Porque se por um lado se tem a aposentadoria rural, o piso do regime geral, o Bolsa Família, por outro lado, há as aposentadorias dos funcionários públicos que são muito regressivas. Embora, justiça seja dita, essa regressividade corresponde a políticas que não existem mais, que foram eliminadas no governo FHC e, principalmente, no governo Lula. Tem outras coisas ainda que podemos pensar, em reforma agrária, melhorias de acesso à credito, enfim, há muita coisa.
IHU On-Line – Esse relatório apresenta algum dado diferente dos documentos anteriores que avaliaram a desigualdade no Brasil?
Sergei Soares – Vem caindo há sete anos e estamos documentando nestes anos. Eu diria que a boa notícia do ano passado, de 2007 para 2008, é que a redução na desigualdade foi quase que exclusivamente consequência do mercado de trabalho. Isto é boa notícia porque, até 2007, a redução de desigualdade tinha sido mais ou menos igualmente distribuída entre o mercado de trabalho e as transferências. Se dependermos somente de transferência para reduzir a desigualdade, haverá um problema tributário, onde teremos que cobrar mais e mais impostos para dar mais e mais dinheiro para os pobres.
Eu seria até favorável que fizéssemos isso. Mas, o fato é que não é o mais tranquilo, ideal e politicamente fácil. O bom de 2007 para 2008 é que quase tudo veio do mercado de trabalho. E, se o mercado de trabalho se torna mais igualitário, isso quer dizer que devem ser cobrados menos impostos para a desigualdade cair. O Bolsa Família, por exemplo, não teve expansão, e o salário mínimo não subiu tão fortemente neste período.
IHU On-Line – Considerando o índice de Gini, como estamos em relação aos demais países da América Latina no tema da desigualdade?
Sergei Soares – Como falei, tínhamos um índice em torno de 60. Isto nos colocava, com tranquilidade, como país mais desigual da América Latina. Tirando alguns países africanos, nós éramos o mais desigual do mundo. Hoje em dia, certamente, não podemos mais ser chamados assim entre os países com certo desenvolvimento, que já têm uma economia de mercado. O país mais desigual do mundo, hoje, é a África do Sul. E, na América Latina, estamos com um índice de Gini em torno de 54, o que nos coloca mais ou menos igual ao Chile. O Brasil é, claramente, mais igualitário do que alguns outros países como a Colômbia, e outros muito pobres como Honduras, Haiti, cuja comparação não é a melhor possível.
IHU On-Line – O Brasil vai superar a desigualdade social?
Sergei Soares – Claro que eu espero que sim, que consigamos superar nossas desigualdades. O que posso dizer é que, em curto prazo, tudo parece estar se movendo bem, as notícias parecem as melhores possíveis. A distribuição educacional está cada vez melhor. A tendência, se olharmos no discurso de todos os candidatos, é reforçar o Bolsa Família. É quase impensável, nem que ganhe o PSDB na próxima eleição, que haja um retrocesso com relação ao Bolsa Família, a ideia de todo mundo é que isso é uma política que deu certo, inclusive transformá-la em direito, modificar para que vire um programa de renda mínima. Eu diria que nosso maior atraso, o que não é nenhuma crítica a nenhum ministro nem secretaria em particular, mas onde estamos patinando é com relação à educação. Nossos resultados estão melhorando com muita lentidão. Claro que a educação é uma coisa difícil, lenta, mas é o que mais me preocupa. É onde poderíamos fazer um esforço maior. Estamos gastando pouco com educação, em torno de 3,8% do PIB. Há vários países que gastam mais do que 6%. Com relação ao que éramos, estamos muito melhores, mas ao que poderíamos e deveríamos ser, ainda falta muito.
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"O país é absurdamente desigual ainda". Entrevista especial com Sergei Soares - Instituto Humanitas Unisinos - IHU