16 Abril 2009
Segregação, apartarão, divisão? Ou seria apenas uma forma de conter a expansão das favelas em relação à Mata Atlântica? Os muros que estão sendo construídos em torno das favelas da Zona Sul do Rio de Janeiro, mais do que gerarem debates, estão levantando dúvidas importantes. O prefeito fala, inclusive, em remoção das favelas, mas o projeto usa como justificativa a preservação ambiental. A questão é que os muros já estão sendo levantados, e os problemas sociais também já estão surgindo. Quem analisa o projeto dos muros e os problemas causados por ele é o sociólogo Ignácio Cano, em entrevista à IHU On-Line. Realizada por telefone, a conversa traz dados relevantes sobre a questão. Ele acredita que, se o projeto é mesmo de contenção de território, isso deveria ser feito de forma menos agressiva e, portanto, defende uma fiscalização rigorosa para conter a expansão urbana para áreas de proteção ambiental.
“Eu acho que é justificável pelo controle da expansão, sem dúvida alguma, quando falamos em áreas de proteção ambiental. Agora, é bom que se saiba que a expansão não acontece só nas favelas da Zona Sul. Acontece, sobretudo, na Zona Oeste. Então, a lógica de controlar a expansão nessas áreas não nos levaria diretamente a construção de muros nas favelas da Zona Sul. Isso introduz mais uma dúvida: qual é a lógica por detrás disso?”, questionou Cano.
Ignácio Cano é sociólogo graduado pela Universidad Complutense de Madrid, na Espanha. Nesta mesma universidade, realizou o doutorado em Sociologia. Fez pós-doutorado pela University of Michigan, pela University of Arizona e pela Lancaster University. Atualmente, é consultor do Observatório das Favelas e do Governo do Estado de Minas Gerais. Coordena pesquisa na Ong Conectas e na Fundação Heinrich Böll. Também é professor do curso de Sociologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Socialmente falando, o que explica e implica com a construção dos muros em torno das favelas cariocas?
Ignácio Cano – A proposta dos muros não é recente, já existe há algum tempo e se situa numa certa ambiguidade. Por um lado, há uma agenda ambiental, de proteção de áreas protegidas da Mata Atlântica, e de controle na expansão (até agora descontrolada) de territórios urbanos. Por outro lado, há uma agenda de segurança pública e de controle das populações que moram nesses territórios. No passado, quando a proposta foi lançada, ela gerou uma resistência muito grande em função dessa estigmatização, dessa associação entre moradores de favela e gueto. A ideia dos muros se assemelha, como Saramago já falou, à ideia dos muros de Berlim e da Palestina. Dessa vez, o governo lançou a ideia com base na proteção ambiental, que de fato é urgente.
É preciso regular a situação dos territórios e preservar as áreas de Mata Atlântica. No entanto, há uma suspeita de que a lógica desses muros não é simplesmente uma lógica de proteção ambiental, mas também inclui uma linha de segurança pública. Nós defendemos que o mesmo objetivo de demarcação de território poderia ser conseguido com uma intervenção menos agressiva, que demarcasse de alguma outra forma que não tivesse um custo econômico tão alto, nem um impacto paisagístico tão forte. Além disso, não deveria associar os moradores de favela a essa ideia de gueto. Afinal de contas, o controle da expansão de territórios depende mais da fiscalização do que da construção de limites. Acredito que isso poderia ter sido feito de uma forma mais simples e menos agressiva.
IHU On-Line – A construção dos muros influencia de que forma a violência gerada neste espaço?
Ignácio Cano – Ela pode ser usada como uma estratégia de contenção, por exemplo, quando há uma operação policial nas favelas. É relativamente comum que membros de grupos criminosos fujam para as áreas do mato. Os muros poderiam ser usados para fechar esses acessos. Então, poderiam haver operações, de forma que não pudesse haver uma fuga das comunidades. Mas, se os muro forem usados com esse intuito, sem dúvida alguma sofrerão ataques, desmontando em alguns locais. A manutenção para esse tipo de muro será muito alta e será um plano inviável. Então, acredito, se eles forem usados de fato como uma ferramenta para segurança pública, irão sofrer ataques e acabarão sendo destruídos num prazo relativamente breve.
IHU On-Line – Os muros em torno das favelas cariocas podem ser ambientalmente justificáveis?
Ignácio Cano – Eu acho que é justificável pelo controle da expansão, sem dúvida alguma, quando falamos em áreas de proteção ambiental. Agora, é bom que se saiba que a expansão não acontece só nas favelas da Zona Sul. Acontece, sobretudo, na Zona Oeste. Então, a lógica de controlar a expansão nessas áreas não nos levaria diretamente a construção de muros nas favelas da Zona Sul. Isso introduz mais uma dúvida: qual é a lógica por detrás disso?
Para alguns setores da sociedade, de classe média, a ideia de contenção das favelas, historicamente, era, na verdade, de remoção. Isso foi feito, em parte, pelo regime militar, de uma forma muito autoritária. Hoje em dia, não há uma viabilidade política ou econômica para essa política da remoção, mas a ideia de contenção vai de encontro ao imaginário de parte da população, ao invés de conter as favelas.
Na verdade, trata muito mais de planejamento urbano e, portanto, de evitar a expansão descontrolada em todo o território. Acredito que isso possa ser feito com outras ferramentas, sobretudo com fiscalização, que não exigirão a construção de muros que tenham as desvantagens que apontei inicialmente.
IHU On-Line – A construção dos muros pode ser considerado uma forma de apartação?
Ignácio Cano – Essa é a questão, ou seja, quando você constrói um muro de três metros de concreto está colocando um de um lado e outro do outro. É preciso evitar que a população se expanda, o que, do ponto de vista do planejamento urbano, pode ser razoável. No entanto, há uma outra associação em relação às pessoas que moram lá dentro, o que é muito negativa para elas. O governo está negando, por enquanto, essa associação, mas há suspeita de que, além da agenda ambiental, há essa outra agenda que é negativa para as pessoas dessas comunidades.
IHU On-Line – Por que apenas os jornais cariocas e internacionais estão debatendo essa questão?
Ignácio Cano – Acho que o Brasil tem debatido até certo ponto. Tenho recebido ligações de revistas e jornais de outros estados. É claro que é um problema tipicamente carioca, mas é um problema nacional. O governo está ciente dessa polêmica e das controvérsias. Por isso, está tentando frisar essa lógica ambiental e que os muros não irão cercar totalmente as favelas. Penso que o governo está ciente que as significativas geram uma certa resistência.
IHU On-Line – Conter a expansão das favelas é necessário?
Ignácio Cano – Mais do que conter, existe a questão do planejamento urbano. Pode haver uma certa expansão, mas não pode ser descontrolada. Na favela, a grande vantagem é que podem construir para cima. Isso tem acontecido de forma sistemática, mas é preciso também respeitar normas de segurança para as pessoas que moram lá. Mais do que conter, a ideia é planejar o tecido urbano de forma que a expansão não seja descontrolada. Isso vale para todo o território, pois, como falei antes, a grande expansão hoje não acontece nas favelas da Zona Sul, acontece nas áreas da Zona Oeste.
IHU On-Line – Que problemas sociais esses muros começam a gerar?
Ignácio Cano – Começam a gerar essa sensação de gueto e de cercamento de comunidades, que já existe, porque de fato vivemos numa sociedade dividida. Até certo ponto é segregada, onde, por exemplo, moradores das áreas novas de classe média não podem ir livremente às favelas e os moradores das favelas não podem ir livremente em outras favelas, muitas vezes. Então, os direitos básicos de locomoção já estão limitados e o grau de segregação urbana é bastante grande. A particularidade do Rio de Janeiro também é que essas áreas segregadas são de uma dimensão muito reduzida, então existem pessoas ganhando um ou dois salários mínimos por mês morando muito perto de pessoas que ganham 20, 30 salários mínimos. Essa microsegregação é muito característica do Rio de Janeiro, mas ela já existe. Os muros vêm contribuir simbolicamente com essa imagem de separação, divisão entre as populações.
IHU On-Line – Todas as favelas que serão cercadas ficam na Zona Sul. O que isso significa?
Ignácio Cano – Isso pode ser interpretado de várias formas. A mais óbvia é que o Poder Público dá atenção basicamente ao que acontece na Zona Dul. A violência, por exemplo, que acontece na Zona Sul tem muita repercussão, gerando política pública, mobilização social, além de muitos artigos e matérias na imprensa. E o que acontece nas favelas, sobretudo da Zona oeste, apenas gera impacto social. Então, isso vale para a violência, para investimento urbano, para tudo. Nossa sociedade é muito desigual do ponto de vista individual, territorial, e o Poder Público presta uma atenção especial ao que acontece, então, na Zona Sul. Essa é a primeira leitura.
A outra leitura é: na medida em que existe essa outra agenda de segurança pública, ela também irá tentar privilegiar a segurança das populações da Zona Sul. Por exemplo, num debate que aconteceu recentemente, o prefeito voltou a colocar o termo remoção, quase banido do debate público, o que gerou um debate que tem provocado bastante controvérsia. O prefeito afirma que preciso mesmo haver debate. Mas, mais uma vez, os argumentos usados foram, por exemplo, que a Lagoa Rodrigo de Freitas, entre outros lugares, tiveram favelas removidas pelo regime militar. Os argumentos são sempre referidos ao que acontece na zona nobre da cidade.
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Muros nas favelas do RJ. Segregação, apartação, divisão? Entrevista especial com Ignácio Cano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU