21 Fevereiro 2009
O superior-geral da Companhia de Jesus, Pe. Adolfo Nicolás, visitou, entre os dias 30 de janeiro e 07 de fevereiro, a Província Jesuíta da Califórnia, nos Estados Unidos, por ocasião do seu 100º aniversário. Durante os nove dias, visitou 11 cidades e 30 locais diferentes, falando com uma ampla variedade de grupos, além de conceder uma grande coletiva de imprensa, no dia 04 de fevereiro, para os representantes dos meios de comunicação católicos, na Universidade de San Francisco (USF).
A coletiva ocorreu após a missa celebrada na Igreja de Santo Inácio e o almoço com quatro estudantes do St. Ignatius College Preparatory e outros quatro da USF. As questões foram enviadas previamente pelos jornalistas católicos locais, para permitir que Nicolás tivesse tempo para preparar suas respostas.
O provincial jesuíta da Califórnia, Pe. John McGarry, fez a abertura do evento, afirmando que a visita do Pe. Nicolás "elevou nosso espírito, ampliou nossa visão, aprofundou nossa fé e o nosso compromisso com Cristo e com a Companhia de Jesus, assim como com o nosso serviço à Igreja e ao mundo".
Nesta entrevista, que perpassa diversos temas relevantes da conjuntura atual, Nicolás aborda a importância dos leigos para os jesuítas e para a Igreja, o papel da educação superior, o eurocentrismo do Vaticano, as relações Jesuítas-Vaticano e os grandes desafios da cultura contemporânea para uma formação integral das pessoas.
A entrevista [1] foi publicada no sítio da Província da Califórnia dos Jesuítas, 13-02-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Confira a entrevista.
Quais são os maiores desafios e oportunidades na parceria leigos-jesuítas em um futuro próximo? O que o senhor fará para promover esse movimento?
Adolfo Nicolás – Uma das experiências mais encorajadoras que estou tendo na Califórnia é ver um maravilhoso treinamento profissional que envolve coração e mente entre as equipes de leigos que estão trabalhando conosco nas universidades, escolas e paróquias. Em resposta à sua pergunta, quais são as oportunidades? Eu diria todas – tudo está em aberto. Se temos essa qualidade de colaboração, então creio que a nossa missão se expande imensamente. Iniciar novas aventuras com os leigos, apesar do pequeno número de jesuítas, é uma possibilidade realista. Estou descobrindo pessoas muito ávidas por comprometer suas vidas com o serviço e com os ideais aos quais temos tentado nos comprometer. Nós, jesuítas, somos muito auxiliados, encorajados e apoiados [pelos leigos] não apenas em nossos ministérios, mas também para pensar a respeito de novas possibilidades. Isso tem sido muito encorajador.
O grande desafio que temos agora é este: como estruturamos essa colaboração? Precisamos de algum tipo de estrutura para termos grupos de leigos que compartilham a nossa visão e a nossa espiritualidade e que continuam se unindo a nós? Mesmo se o fizermos, gostaria que isso ocorresse com os leigos no centro, para que os jesuítas sozinhos não criem instituições para apoiar o nosso trabalho, mas trabalhem com os leigos como parceiros reais. De minha parte, eu farei tudo o que puder para apoiar as possibilidades significativas que trarão mais criatividade à nossa missão e ao nosso trabalho.
Há questões sociais ou educacionais comuns que se colocam aos jovens e que a educação jesuíta deveria pensar a respeito com relação ao futuro?
Adolfo Nicolás – Sim. Penso que os desafios reais que enfrentamos não são desafios jesuítas. Temos os mesmos desafios que você e a sociedade têm. É aí onde os jovens e as instituições de ensino devem entrar e incorporar os planos e programas educacionais das nossas instituições. Eles estão fazendo isso muito bem.
O que estou vendo na Califórnia é muito edificante. Inspirei-me muito com as duas escolas Cristo Rey com as quais tive contato. Esses são um dos programas mais criativos que eu já vi. Os colégios Cristo Rey são os mais significativos não apenas porque respondem a prioridades que temos em termos de serviço apostólico, mas também porque oferecem um programa realista e são imaginativos sem serem complicados. E eles podem se multiplicar. Eu escuto que os colégios Cristo Rey estão se multiplicando, e não necessariamente com jesuítas, mas com outros grupos, e acho que esse é o ideal. Quanto mais pessoas se envolverem nesse tipo de serviço criativo que essas instituições realizam, melhor para as pessoas, que é o objetivo de todo tipo de serviço. Outro plano interessante é ir ao encontro dos jovens onde eles estão como totalidade. Eu estou muito animado nesta manhã. A recém tive um encontro com pessoas muito importantes na direção das instituições de ensino daqui [estudantes do St. Ignatius College Preparatory e da USF]. Eles me contaram a respeito dos tipos de projetos que os levaram a diferentes partes do mundo para fazer com que experimentassem os desafios de como as pessoas vivem. Eles, então, fazem disso uma parte dos seus estudos. Isso é um indicador do ideal jesuíta de uma educação humanista que toca a pessoa como um todo. Envolve não apenas bons trabalhos em sala de aula com informações intelectuais, mas também uma educação do coração e da sensibilidade das mãos e dos pés.
Esses são programas realistas que estão influenciando os estudantes muito profundamente. No meu encontro com os estudantes, esse foi o ponto que mais se ressaltou. Eles sentem que essas experiências estão mudando-os. É maravilhoso quando rapazes e moças sentem que estão mudando. Essa é uma das coisas mais encorajadoras para um educador.
Com relação às vocações, quais as diferenças da ordem jesuíta hoje com relação a quando o senhor entrou? Qual o desafio para a Companhia de Jesus no sentido de promover vocações para as novas gerações?
Adolfo Nicolás – A Companhia de Jesus é diferente hoje com relação há 55 anos, quando eu entrei, assim como a Igreja é diferente e assim como o mundo é diferente. O mundo mudou imensamente nesses 55 anos. Pensem nos Estados Unidos e em San Francisco. Eu passei por San Francisco em 1961. E vim hoje e está diferente. O Vaticano II levou a uma mudança tremenda, assim como todos os eventos pós-Concílio. Somos diferentes porque somos frutos e filhos dos nossos tempos e da nossa Igreja.
Ao mesmo tempo, as mudanças continuam a ser as mesmas: como podemos ser fiéis e coerentes no seguimento de Cristo para responder aos desafios que Santo Inácio teve que enfrentar em seu próprio tempo, com relação ao discernimento, a olhar a realidade, servir e ajudar os outros a ser parte desse serviço? Continuamos sendo diferentes e, espero, continuaremos a mudar.
Estive lendo recentemente sobre o mestre budista mais importante da história japonesa, Dogen [2]. Ele escreve que a vida inteira é mudança. Olhem para as paisagens hoje, e amanhã verão-nas diferentemente. Se tudo muda, por que resistimos à mudança? Ele diz que a mudança é a essência da vida. Eu me inclino a concordar com isso. Porém, espero que as nossas mudanças sejam criativas em um processo dinâmico, bem discernidas e bem analisadas, para que não apenas mudemos sem direção. Como lemos ontem na Carta de Paulo aos Coríntios, precisamos mudar, mas com os nossos olhos em Cristo.
Quais as diferenças da relação entre a Companhia e o Vaticano com o Papa Bento e com o seu antecessor?
Adolfo Nicolás – Eu poderia responder quase da mesma maneira: é diferente assim como as pessoas envolvidas são diferentes. A personalidade de Bento XVI traz novos acentos e um novo estilo. João Paulo II era um homem que gostava de estar com outras pessoas. Ele quase nunca comia sozinho. Bento XVI gosta de comer sozinho porque ele é um pensador, e estes são tempos em que podemos pensar. Eu apenas espero que ele aproveite a sua comida.
Suas personalidades são muito diferentes, assim como as experiências que tiveram. Um vem da Polônia; o outro, da Alemanha, e as histórias pelas quais passaram são diferentes. Eu sou diferente de [Pe. Peter Hans] Kolvenbach [ex-superior-geral] assim como ele foi diferente do seu antecessor. As coisas continuam mudando.
Neste momento, minha relação com Bento XVI é muito aberta. É uma relação de confiança, mas não de mudança política. Muitas pessoas pensam que há uma mudança em vigor do Opus Dei para a Companhia de Jesus. Eu não acho isso. Este papa é muito perspicaz e se move por escolhas pessoais, com todos os riscos, mas também com todas as limitações, que isso traz. Essa não é uma escolha que cabe à Companhia de Jesus. Pelo contrário, é uma escolha para o Pe. Federico Lombardi [o diretor da Sala de Imprensa do Vaticano], em quem ele confia, e para o Pe. Luis Ladaria [secretário da Congregação para a Doutrina da Fé], em quem ele confia. Por isso, continuamos tendo um diálogo aberto e estando em uma relação que é a melhor. Não devemos ser nem muito próximos nem muito distantes. Pertencemos à Igreja. Somos uma parte dela.
Alguns críticos dentro e fora da Igreja dizem que ela ainda é muito eurocêntrica e dominada pela cultura ocidental. Com sua experiência no Extremo Oriente e em outras culturas, como o senhor se sente com relação a isso? Como a Igreja pode verdadeiramente se tornar mais multicultural? Ou ela deveria se tornar?
Adolfo Nicolás – Essa é uma questão que tem uma relevância especial para a Califórnia. Aqui, vi um multiculturalismo expressado muito visivelmente de uma maneira bem integrada e dinâmica. É um truísmo dizer que a Europa é eurocêntrica. O Vaticano está na Europa, portanto é eurocêntrico. A questão não é a localização, mas a mentalidade.
Estar na Europa e ter uma longa história da Europa como centro e praticamente o único ponto de referência para grandes questões até o século XVI – isso tem um peso, especialmente em uma instituição como a Igreja, que é talvez a instituição mais constante na Europa. Todo o resto mudou. As fronteiras mudaram. Mas o Vaticano está lá há muito, muito tempo. Como ele pode se tornar mais universal, mais aberto a outras culturas, a outras tradições e a outros países?
A única maneira é por meio de encontros. Certamente, estamos ansiosos e felizes em ajudar a Igreja a produzir e a fazer o melhor nesses encontros. Teorias ou artigos de livros sobre universalidade da Igreja não irão mudar Roma, que tem um peso como o das suas pedras. E há muitas pedras em Roma, muitas feitas de um mármore duro.
A mudança vem por meio de encontros, e eu encorajo as pessoas em Roma a viajar o tanto quanto for possível para ver e para escutar, não apenas para falar, e para se misturar com outras pessoas e se dar conta de que Deus tem estado muito ocupado em trabalhar, enquanto em Roma estivemos dormindo. Como diz o Evangelho, a semente cresce à noite, quando o agricultor está dormindo. Enquanto em Roma estamos dormindo, Deus continua trabalhando na Ásia, na África, na América Latina e no resto do mundo. Eu espero que mais e mais de nós vejam isso.
Houve um esforço, mas um esforço muito europeu, um esforço lógico e mental para trazer os não-europeus para o Vaticano. Mas não é suficiente. Se não somos cuidadosos, iremos trazer asiáticos ou africanos que foram formados na Europa, e a tendência européia irá continuar. O que temos a fazer é trazer pessoas perigosas: pessoas que pensem diferentemente e que abram um novo diálogo internacional dentro do Vaticano.
Como isso irá ocorrer? Eu não sei. Eu acho que o Papa, em princípio, está aberto. A questão é: ele é capaz de canalizar essa conscientização por meio dos diferentes escritórios para que se torne realidade? Como jesuítas, ficaríamos felizes em contribuir e cooperar. O Pe. Jim Grummer [assistente regional do Pe. Nicolás nos EUA] e eu nos encontramos com alguns assessores no Vaticano que estão muito ansiosos para conseguir a nossa ajuda e, particularmente, dos jesuítas dos EUA que ensinam em universidades. Aqui, há uma riqueza de experiências que eles não têm.
Ao visitar as nossas instituições de ensino, o senhor viu alguma coisa inovadora ou interessante que lhe dá esperanças para o futuro?
Adolfo Nicolás – Por meio das bolsas de estudo e de outras formas de auxílio, a USF fez um grande trabalho de abertura da universidade a pessoas com renda inferior a 30 mil dólares anuais, o que é algo difícil para uma universidade fazer para ajudar essa população. Isso, por si mesmo, modifica a instituição. Também faz com que seja mais fácil que os migrantes de primeira geração estudem, consigam um diploma universitário e modifiquem o padrão das suas famílias. Estou também entusiasmado ao ver que os estudantes norte-americanos se encontram e trabalham com pessoas de fora dos EUA.
Os centros Cristo Rey, que servem a populações que, de outra forma, não poderiam ir para a escola, permite que os estudantes estudem de uma forma diferente, porque estão trabalhando um ou dois dias por semana. Eles estão vendo, ao mesmo tempo, o mundo dos livros e o mundo do trabalho real, assim como fazendo contatos e mudando o espírito do seu local de trabalho.
Essas são respostas criativas à nossa necessidade de mudar de uma educação exclusiva e elitista para uma educação mais ampla. A educação da elite sempre será necessária e irá continuar, mas as escolas Cristo Rey abrem as mentes e iniciam um processo de cooperação que enriquece a todos nós.
A educação real não ocorre na sala de aula ou na capela apenas. A educação real acontece em todo o campus e por meio de atividades externas. Levar a educação a uma perspectiva mais ampla é uma forma de expressar a espiritualidade inaciana como pedagogia. Isso nos permite ver como Deus trabalha na vida e permite que as pessoas cresçam por meio desses encontros. Incorporar tudo isso na educação é um processo muito criativo que eu vejo acontecendo, pelo menos na Califórnia.
Qual parte do mundo, mais do que qualquer outra, apresenta o maior potencial para dar forma ao futuro da Companhia?
Adolfo Nicolás – Depende de qual área você se refere. Por exemplo, na educação superior, certamente os EUA, sem dúvida, apresentam um grande potencial. Nos EUA, muitas coisas estão acontecendo, boas, ruins e intermediárias. Há juventude, frescor, riscos sendo assumidos e uma abundância de recursos que tornam os EUA uma parte do mundo muito criativa.
Mas eu hesitaria em dizer que os EUA apresentam a maior influência em toda a parte. A Índia tem muito a oferecer em termos de tradição e de profundidade desde outras perspectivas. A África tem muito a oferecer, que nós nem tocamos em termos de cultura e de integração da pessoa. A Ásia oriental também tem muitas possibilidades. Diferentes partes do mundo contribuem com diferentes coisas.
Um dos objetivos de uma visita como esta à Califórnia é conseguir descobrir quais são os pontos fortes e fracos de cada área. Os pontos fortes podem ser uma ajuda para o resto do mundo. Aqueles entre nós que estão em Roma precisam saber o que está acontecendo para que esse intercâmbio possa ser mais rico e mais produtivo.
Eu hesitaria em dizer que o país dominante é os EUA ou a China ou a África. Em algumas áreas, sim; em outras, não. Deus trabalha livremente. Ele não me consulta. Eu disse “ele”? Talvez não seria "ela"?
Como a Companhia de Jesus responde às mudanças climáticas?
Adolfo Nicolás – Há muito mais respostas do que eu pensava quando vi essa questão pela primeira vez. Eu perguntei ao homem que sabe disso, e ele me deu duas páginas de coisas que estão acontecendo.
Vivemos em um mundo em pedaços. Muitas pessoas têm publicado coisas a respeito da desertificação, das enchentes e das mudanças climáticas. Outros estão trabalhando no sul da Ásia na educação e na mobilização de dois milhões de estudantes em ações locais voltadas para o meio ambiente. Em 2008, 150 oficinas ocorreram no sul da Ásia.
Nas Filipinas, nós patrocinamos o Instituto de Ciências Ambientais para a Mudança Social. O padre encarregado está trabalhando com as mudanças climáticas e seus efeitos no país, como a desertificação.
Em Munique, temos o Projeto de Mudanças Climáticas e Justiça. Na Colômbia, dirigimos o Instituto Mayor Campesino, que oferece treinamento em agricultura e outras áreas. Nos EUA, temos o Earth Healing, liderado pelo Pe. Al Fritsch, S.J., que disponibiliza uma página na Internet com reflexões diárias com mais de 10 milhões de visitantes desde 2004. Na África, temos o Centro de Treinamento Agrícola Kasisi. Em todos os continentes, temos pessoas que estão envolvidas e trabalhando com esse tema.
Obviamente, esse é um desafio. Meu assistente nesse assunto também indica que enfrentamos os desafios do crescimento da conscientização e da divulgação de informações erradas e preconceitos. Ambos caminham juntos. Temos que pedir que as universidades e os cientistas jesuítas estabeleçam uma plataforma com sólidos fundamentos científicos. As universidades jesuítas precisam apoiar as novas redes sociais enquanto aprendem com outras redes e campanhas.
Temos que desenvolver uma espiritualidade que leve a sério a criação. Não é apenas uma questão de necessidade de sobrevivência e de necessidade de oxigênio. Precisamos nos questionar sobre como entramos e nos harmonizamos com o nosso meio ambiente. Nesse sentido, o Japão é muito mais consciente do que nós com relação ao significado da natureza. Minha recomendação vem do Mestre Dogen, que eu citei antes: sempre que você tiver uma crise, vá para a natureza, e a natureza irá ajudá-lo a superá-la. Há uma sabedoria do universo trabalhando por meio da natureza que nós precisamos. A natureza pode nos curar e nos aliviar, e também nos dar sabedoria.
Além disso – e isto surgiu em nossa última Congregação Geral –, precisamos repensar a nossa forma de vida mesmo dentro da nossa comunidade. Somos uma pequena porcentagem do mundo, mas precisamos simplificar nossas vidas. Parte do problema é que nós nos acostumamos a uma forma de vida que é muito prejudicial e não-sustentável. O nível de vida dos EUA não pode se tornar universal, ele não é sustentável. Se os chineses gastassem tanta energia quanto os norte-americanos, o mundo entraria em colapso muito rapidamente. Temos que abrir mão de muitos dos nossos privilégios e vantagens para que toda a Terra se torne mais humana, mais justamente organizada e, ao mesmo tempo, mais sustentável, para que a natureza possa continuar a ser a nossa irmã e o nosso apoio.
As instituições de ensino jesuítas hoje convidam os estudantes a ser contraculturais. Que aspectos da cultura mais ameaçam, e como as instituições jesuítas preparam os estudantes para um mundo que busca despojá-los de dignidade?
Adolfo Nicolás – Isso é algo que afeta o Japão, a Europa e a América de uma forma semelhante. Eu acho que os pontos em que todos nós, não apenas os estudantes, temos que ser contraculturais envolvem o culto ao sucesso. O sucesso é a maior tentação que temos. Nós, jesuítas, temos essa tentação. Cerca de 80% ou mais dos seres humanos não têm sucesso e experimentam o fracasso no casamento ou no trabalho ou no crescimento de seus filhos. Quando grande parte das pessoas do mundo fracassam ao cultivar o sucesso, isso não é muito humano.
Eu penso que temos que reduzir a mentalidade do sucesso. Teremos sucessos muitas vezes em muitas coisas, mas devemos ser muito livres com relação a esse sucesso. O sucesso nunca deveria ser um princípio para a competição. Isso é perigoso para todos nós. Nossos estudantes podem aceitar todos os valores [que ensinamos em nossas instituições], mas, no momento em que saírem das escolas ou das universidades, se cultuam o sucesso, irão esquecer todo o resto.
Às vezes, nas escolas mais elitistas que tivemos no passado, demos uma dupla mensagem sem nos darmos conta. Dissemos aos estudantes que fossem homens para os outros, mas, por meio do sistema, dissemos para eles correrem mais rápido do que os outros, senão não chegariam ao final. Essas duas mensagens não convivem muito bem. Quando uma crise surgir, eles irão se lembrar da mensagem de correr mais rápido.
Outro valor cultural que deve ser desafiado é o viver com pressa. Vivemos em um mundo repleto de "fast food", relacionamentos rápidos, aprendizado rápido, casamentos rápidos e divórcios rápidos. Tudo isso ameaça a capacidade humana de crescer. O crescimento real não é rápido. As coisas reais não são rápidas. Mestre Dogen indica que, quando comemos uma boa comida, ao ponto de, no meio da refeição, dizer “Nossa, isto é delicioso!”, então essa é uma experiência que nos prepara para a iluminação. É um momento não de pensamento, mas de pura sensação, quando você está aberto a qualquer coisa. As pessoas modernas não têm mais essa experiência. Não aproveitamos uma companhia silenciosa durante uma refeição. Se estamos com pressa, como poderemos mudar verdadeiramente alguma coisa?
Outro valor que precisa ser desafiado – e talvez vocês estão mais em risco do que na Ásia, porque as democracias asiáticas não são tão democráticas – é a determinação de valores pela maioria de votos. Isso é algo perigoso. Os valores nunca nascem pela maioria de votos. Os valores nascem do coração, do interior profundo, dos encontros com pessoas ou dos sofrimentos da vida. Se optarmos pela maioria de votos, então os valores rebaixam-se geração após geração, como experimentamos em muitos lugares. Esse é um valor cultural que deve ser desafiado.
No Ocidente, não apenas nos EUA, há uma falta de espaço para o silêncio, para a calma, para a relação pacífica e para a vida em conjunto nos bairros ou no centro da cidade. Tínhamos isso no passado, mas não temos mais. O espaço para o silêncio e a calma, o poder curador da calma e da paz é imenso, e o estamos perdendo. O único momento em que podemos ser curados é quando estamos dormindo, porque então não podemos falar. Mas mesmo isso está se tornando cada vez mais curto, exceto se eu me recusar a dormir menos. Precisamos de tempo para que o coração se recupere e possa se desenvolver.
Também precisamos desafiar a importância esmagadora dada no Ocidente ao pensamento em comparação ao sentimento. O pensamento é muito importante, mas, no Ocidente, racionalizamo-lo ao ponto de dizer que o pensamento é o melhor de todos os valores. Eu não concordo. O coração é o mais importante. O coração envolve tanto o pensamento quanto o sentimento. O coração é um dos órgãos mais importantes para o conhecimento, e isso é afirmado pela neurobiologia moderna. O coração é um órgão do conhecimento conectado ao cérebro. Isso é algo que as pessoas mais antigas sabiam, mas nós perdemos esse conhecimento. Descartamos o coração dizendo: “É apenas sentimento”, e colocamos a mente acima do coração, e a natureza prática e a eficiência acima da compaixão e a amizade.
Em sua opinião, qual é o papel da educação superior jesuíta no mundo de hoje? O que significa hoje ser uma universidade jesuíta?
Adolfo Nicolás – A educação superior é um dos sistemas que a humanidade criou com grande sabedoria para garantir que a sociedade cresça de uma forma racional. Se a educação superior pode ser integrada com a pessoa como um todo, com toda a humanidade e com uma filosofia melhor, então esse é provavelmente um dos melhores serviços que a sociedade pode oferecer a si mesma. A educação superior é fruto da sociedade que responde a suas próprias necessidades. A educação superior é absolutamente necessária para qualquer sociedade, e ela oferece um serviço de discernimento, de racionalidade e de integração que será cada vez mais necessário. Não podemos deixar a sociedade nas mãos de improvisadores ou de pessoas que pensam apenas em termos de ganho político ou econômico. Precisamos de um lugar em que as pessoas possam pensar e aprender e crescer.
Em nosso encontro capitular no ano passado, houve uma grande insistência sobre a importância do que chamamos de apostolado intelectual. Precisamos estar presentes onde a educação superior está ocorrendo, onde as pessoas estão pensando, para que, nesse pensamento, haja uma integração de toda a realidade junto com uma abertura a Deus e à transcendência, que não pode ser limitada apenas a um fato científico.
Estou lendo agora um artigo que diz que o grande erro da filosofia ocidental começou com Aristóteles. Ele foi um cientista e teve uma filosofia da ciência muito boa. O problema é que ele aplicou essa ciência aos seres humanos, que têm liberdade, um coração e uma vontade. Você não pode aplicar os princípios da ciência física a um ser humano, que sempre está em processo e em crescimento. Isso reduz o escopo da pessoa. Temos que estar conscientes disso e estar presentes precisamente para dar o que Inácio deu, que foi coração a todo o processo de aprendizagem, de serviço e de ministério aos outros.
Notas:
1. Um vídeo da coletiva e da missa
2. Dōgen Zenji (1200-1253), também conhecido como Dōgen Kigen ou Eihei Dōgen, foi um mestre zen-budista japonês nascido em Kyoto. Dogen fundou a escola Sōtō de Zen. Foi uma figura religiosa proeminente em seu tempo, bem como um filósofo importante. Dogen é mais conhecido pelo seu "Tesouro do Olho do Dharma Verdadeiro" ou Shōbōgenzō, uma coleção de 95 fascículos relacionados à prática budista e à iluminação.
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"Se tudo muda, por que resistimos à mudança?" Entrevista com Adolfo Nicolás, superior geral da Companhia de Jesus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU