25 Janeiro 2009
O último mês de dezembro foi agitado para o professor Giuseppe Cocco. Ele foi o coordenador do Seminário Mundo Vix, realizado nos dias 10 a 12 de dezembro, na Universidade Federal do Espírito Santo e organizou, juntamente a Ivana Bentes, o Fórum Livre do Direito Autoral: O Domínio do Comum, realizado nos dias 15, 16 e 17 de dezembro de 2008, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em ambos os eventos, Cocco esteve ao lado de grandes intelectuais de renome internacional, dentre
eles Antonio Negri, Michael Hardt, Christian Marazzi e Yann Moulier Boutang. E é sobre os temas que esses autores debatem e sobre o que foi discutido nos dois eventos mencionados que a IHU On-Line entrevistou o professor Giuseppe Cocco por telefone.
Ele explica a ideia do comum e defende que "a verdadeira alternativa está na capacidade que nós teremos ou não de construir uma esfera política adequada à nova qualidade do trabalho. As transformações desses
últimos 30 anos mudaram a própria natureza do trabalho. Trata-se de um trabalho que é cada vez mais ligado à produção de conhecimento, a sua dimensão linguística e comunicacional, portanto, social, intelectual e afetiva, ao mesmo tempo. É um trabalho que está dentro das relações sociais, integrando produção e consumo, em um processo de valorização que está dentro da circulação".
Para Cocco, mais do que pensar a relação entre o local e o global, "temos que pensar a relação entre a dinâmica constituinte debaixo e as instituições e os governos. A América do Sul, apesar de todos os seus
problemas e limites, é um terreno privilegiado de renovação dos processos constituintes". Ele acredita que a crise atual aparece não como a crise do capitalismo financeiro, "mas como a crise do capitalismo
contemporâneo". E explica que "todo o sistema do crédito, que pretendiam estar ligado a uma racionalidade matematizável, é na realidade baseado exatamente no crédito, na confiança, na crença e, portanto, em última instância, na relação social".
Cocco é graduado em Ciências Políticas, pela Université de Paris VIII, e em Scienze Politiche, pela Università degli Studi di Padova. Cursou mestrado e doutorado em História Social, pela Université de Paris I. Docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o pesquisador é membro do corpo editorial da revista francesa Multitudes, da revista Lugar comum e Global Brasil. Cocco é autor de diversos livros entre os
quais citamos Trabalho e Cidadania - Produção e direitos na era da globalização (São Paulo: Editora Cortez, 2000) e Biopoder e luta em uma América Latina globalizada (Rio de Janeiro: Record, 2005), em parceria com Antonio Negri.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O senhor esteve na companhia de Toni Negri e Michael Hardt, nas últimas semanas. Que temas debateram nesses dias? Quais as novidades e avanços nos estudos dos pesquisadores?
Giuseppe Cocco – Estar na companhia deles foi uma coisa bastante normal, na medida em que eu, tenho com eles um intercâmbio que dura quase 30 anos. Com relação ao Brasil, trata-se de uma relação que acontece na Rede Universidade Nômade. O próprio Negri esteve aqui em 2003, 2005 e 2006. Esta é a quarta vez que ele vem. O Michael Hardt também veio aqui várias vezes e agora está voltando para o Fórum Social Mundial, participando de mesas em Belém e no Rio de Janeiro.
Com relação aos temas que discutimos nos eventos de Vitória e do Rio de Janeiro, podemos dividi-los em dois eixos. O primeiro é a discussão sobre a crise global do capitalismo, a chamada crise financeira e, por
outro lado, esta discussão sobre o conceito de comum, que quer dizer a definição de uma esfera que permita pensar a política, o governo e a propriedade para além da falsa oposição entre Estado e mercado; entre privado e público. Digamos que estes se confrontam com mais um eixo implícito neste tipo de evento que reuniu intelectuais e militantes brasileiros, latino-americanos e europeus, que é a relação entre Governo e movimentos, a relação entre Norte e Sul. A questão é a passagem da dependência para a interdependência e o desenvolvimento de uma política Sul-Sul.
IHU On-Line - Em que consiste a política do comum? Como ela pode contribuir para resolver os problemas sociais e econômicos da sociedade?
Giuseppe Cocco – A ideia da política do comum é, em primeiro lugar, a de que uma alternativa entre Estado e mercado é uma falsa alternativa. Uma maneira para entender isto é a discussão sobre a crise financeira atual. Se analisarmos o que está acontecendo, de maneira muito nítida vemos que, depois de quase 30 anos de hegemonia do discurso neoliberal sobre o mercado como o espaço de racionalidade embasado na lógica do individualismo egoísta, da competição e da concorrência, depois de décadas de privatização, desregulamentação e flexibilização, quando se dizia que o mercado era o único horizonte e que, na firmação desse horizonte, a história tinha acabado, o que assistimos agora é que por trás do mercado e da moeda, há o Estado. Todo o sistema do crédito não é ligado a nenhuma racionalidade matematizável, mas é baseado exatamente no crédito, na confiança, na crença e, portanto, em última instância, na relação social. Por trás do mercado há o Estado que, atualmente, aparece de maneira maciça dando dinheiro para os bancos e tentando impedir a precipitação sistêmica da crise.
O Estado que intervém hoje aparece como pano de fundo do mercado e o mercado como pano de fundo da intervenção estatal, na medida em que, atualmente, ela não é vinculada por nenhum modelo alternativo. Estado e mercado andam juntos, e a moeda é uma relação social. Não adianta discutir volume de moeda e de investimentos, a não ser em termos de significação e de democracia, de investimento social e de relações de força. Todo o dinheiro que faltava para os programas sociais, para a proteção de um trabalho cada vez mais precarizado, para proteger ou mobilizar a vida fora das dinâmicas da sua exploração agora aparece. Acho fundamental que esse dinheiro seja mobilizado e impresso pelas máquinas de um banco central norte-americano. Ao mesmo tempo, pensar a política do comum é dizer que nós precisamos ir além disso, o que significa que a verdadeira alternativa está na capacidade que nós teremos ou não de construir uma esfera política adequada a nova natureza do trabalho. Um trabalho que é cada vez mais ligado à produção de conhecimento, a sua dimensão linguística e comunicacional, portanto, social, intelectual e afetiva, ao mesmo tempo, é um trabalho que está dentro das relações sociais que integram produção e consumo, em um processo de valorização que está dentro da circulação.
Os caminhos para a nova política
Construir o comum significa reconhecer que o conflito entre capital e trabalho é um conflito entre essa gestão estatal e privada das relações de trabalho – pela manutenção artificial de uma separação entre a esfera da política e da economia - e a recomposição possível dessas duas esferas a partir de uma organização política e produtiva da sociedade. Significa reconhecer que há um conflito fundamental entre um sistema de mobilização do trabalho que, por um lado, desmonta a relação salarial, as conquistas sindicais e os movimentos sociais, e, por outro lado, mantém as instituições características da relação salarial, que têm discursos ideológicos, em termos de funcionamento da despesa pública e políticas sociais, característica do período anterior (industrial). Ou seja, apenas reconhece-se o trabalho quando é um trabalho assalariado. E não reconhece-se o fato de que, hoje em dia, o trabalho corresponde e diz respeito à vida como um todo. Portanto, sua mobilização diz respeito à qualidade da vida, em geral. O reconhecimento dessa dimensão produtiva da vida passa fundamentalmente pelo fato de que é preciso instaurar uma renda universal, algo que configura exatamente uma política do comum. Uma política do comum em termos de organização de luta significa, por exemplo, dentro da crise, insistir sobre a necessidade de não limitar as políticas públicas à mera defesa dos níveis de emprego (embora isso seja
naturalmente necessário) mas que é preciso ampliar as políticas sociais. Um exemplo é o Bolsa Família: é preciso aprofundá-lo e desenvolvê-lo ainda mais, de forma a torná-lo menos condicional, mais valorizado e
ainda mais massificado.
IHU On-Line - Qual é o papel da metrópole na revolução do comum?
Giuseppe Cocco – A metrópole tem um papel fundamental, na medida em que constitui o que era a fábrica no período industrial. A metrópole é hoje o espaço de produção. Então, a revolução do comum diz respeito à constituição democrática das redes produtivas que desenham a metrópole e que a metrópole, por sua vez, desenha, como, por exemplo, o acesso universal ao transporte público, com todas as suas implicações do que diz respeito à crítica ao modelo da circulação individual, como o automóvel. Falo aqui de todas as implicações em termos de qualidade de vida, questões que dizem respeito a outro modelo de relação com a natureza. Mas também, é na metrópole que podemos construir as condições de acesso universal e gratuito à internet, que os municípios podem propor o acesso sem fio para todo mundo como um direito que, ao mesmo tempo em que é humano e social, é um novo instrumento de mobilização produtiva. O acesso à educação também é fundamental. Há uma nova correlação entre funções habitacionais, de negócios e produtivas, que tem que ser cada vez mais integradas, ou seja, a integração metropolitana, em termos sociais e metropolitanos, é o elemento fundamental que define a capacidade produtiva de um determinado território . E esta integração depende de uma construção democrática desses territórios, quer dizer de uma recomposição entre o social, o econômico e o político.
IHU On-Line - Como é possível pensar os desafios globais a partir de uma realidade local?
Giuseppe Cocco – É possível na medida em que a realidade local é, ao mesmo tempo, global, e a própria dinâmica da globalização define essa interdependência entre o local e o global. A dinâmica da democracia
dentro do processo de globalização, algo que antes parecia ser utópico e impossível, hoje em dia, devido à própria crise sistêmica dos mercados, aparece como ultra-necessário e inevitável. O que vai ter que acontecer para que os planos e as tentativas de enfrentar a crise sejam eficazes é uma renegociação, em âmbito mundial, da dinâmica da globalização. Apesar de todos os limites que, eventualmente, Obama terá, apesar do fato que com certeza não poderá manter todas as promessas, a sua própria eleição anuncia a abertura de um novo horizonte, inclusive pata para o Brasil e a América do Sul negociarem sua inserção na globalização. Mais do que pensar a relação entre o local e o global, temos que pensar a relação entre a dinâmica constituinte desde baixo e as instituições e os governos. A América do Sul, apesar de todos os seus problemas e limites, é o terreno privilegiado de renovação dos processos constituintes.
IHU On-Line - Ainda a partir da crise financeira, como podemos pensar em novas dimensões no mundo do trabalho e na instituição do comum?
Giuseppe Cocco – O interessante é retomar um pouco o que se diz respeito às características dessa crise financeira. Muitos achavam os problemas e desequilíbrios fossem gerados pela existência de uma esfera fictícia, meramente financeira, separada do capitalismo do que seria um capitalismo industrial. A realidade da crise é outra, porque, por um lado, ela tem um impacto generalizado profundo, e a cada dia parece ser
mais dramático. Por outro lado, não tem nada a ver com uma separação do que seria a finança da indústria. Pelo contrário, no Brasil a crise chegou pelos grandes conglomerados industriais, como Aracruz, Votorantim, Sadia, etc. Então, a crise aparece não como a crise do capitalismo financeiro, mas como a crise do capitalismo contemporâneo. Este capitalismo contemporâneo, na realidade, é um capitalismo que
precisa explorar as redes sociais, ou seja, a própria vida. E isto deve começar a ser feito por um duplo mecanismo de transformação, uma máquina que se alavanca com dois elos fundamentais. O primeiro é a difusão social do trabalho e o outro é a integração produtiva do consumo. Isto significa que é um capitalismo que não investe mais apenas o trabalho na sua organização separada, como uma economia da vida baseada na divisão fundamental entre o tempo de vida e o tempo de lazer ou entre o tempo de
vida e o tempo de trabalho, mas investe na vida como um todo. Um mecanismo fundamental dessa nova dinâmica, da importância nova do capitalismo financeiro como nova forma de ser do capitalismo em geral,
diz respeito aos fundos de pensão.
Os fundos de pensão e o impacto na crise
Quando os fundos de pensão se tornam, no mundo todo, fatores fundamentais no processo de financeirização é importante salientar que isso leva a uma outra economia da vida. Isto significa que uma parte da renda dos trabalhadores, ligada a aposentadoria, é mobilizada para a gestão das despesas que, até então, eram despesas públicas e que, hoje em dia, se tornam reguladas sob uma dinâmica privada no mercado das ações e das obrigações. Ao mesmo tempo, essa criação monetária que não é mais operada pelo Estado, mas pela intervenção dos fundos de pensão nos mercados, tem outra consequência que é aquela de fragmentar a composição social do trabalho na medida em que, por um lado, vai ter aqueles que
têm um fundo de pensão para investir e, por outro lado, aqueles que não têm nada para investir e são objetos dessas políticas. Esta fragmentação se desdobra em outra que tem a ver com a própria figura dos
trabalhadores: ou seja, por um lado, o trabalhador, enquanto poupador e detentor de um fundo de pensão, tem interesse que os títulos do seu fundo de pensão tenham um retorno financeiro importante e, por outro
lado, esse mesmo trabalhador vai ser o objeto das conseqüências (com a flexibilização de seus direitos) dessa pressão para que haja retornos importantes dos investimentos financeiros.
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Política do comum. Uma alternativa à crise econômica mundial? Entrevista especial com Giuseppe Cocco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU