22 Novembro 2008
“A intimidade tem se convertido numa espécie de cenário no qual devemos montar o espetáculo de nós mesmos”, constata Paula Sibilia, pesquisadora do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Com a revolução tecnológica da informação, o proliferamento da internet, o aumento de blogs e sites de relacionamento, o significado de intimidade mudou radicalmente, criando uma vida espetacularizada. Em entrevista à IHU On-Line, por e-mail, Paula diz que as novas tecnologias correspondem também a um novo modelo de vida social, e que “usamos essas ferramentas para responder às demandas de um universo cada vez mais distante daquela cultura oitocentista que incentiva a escrever diários verdadeiramente ‘íntimos’”.
Nessa nova perspectiva, a vida e as relações ganham um novo sentido e a pessoa só existe se aparece para alguém. “Uma das principais manifestações dessa virada é um crescente desejo de ser visto, uma vontade de se construir como um eu visível, como um personagem que os outros podem ver e, graças a esse olhar reconfortante, confirmam a existência de quem se exibe”, analisa. Assim, o homem moderno tem uma personalidade alterdirigida ou orientada para o olhar dos outros. “Isto não acontece apenas na Internet, é claro, mas nas diversas práticas contemporâneas onde impera esse desejo desesperado de que os demais nos enxerguem e nos observem para que possamos existir”, explica.
Maria Paula Sibilia é graduada em Ciências da Comunicação, pela Universidade de Buenos Aires (UBA), mestre na mesma área, pela Universidade Federal Fluminense (UFF), e doutora em Saúde Coletiva, pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente, é professora no Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Autora de O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002), Paula acaba de lançar seu novo livro O show do eu (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que transformações na subjetividade humana são apresentadas no seu novo livro O show do eu? Como elas interferem ou modificam a forma de “ser e estar” no mundo?
Paula Sibilia – A inquietação inicial, que motivou a escrita deste livro foi o surgimento dos blogs. Ou seja, esses “diários íntimos” que de repente começaram a ser publicados na internet. A pergunta era a seguinte: até que ponto e em que sentido eles podiam ser considerados íntimos, se eram expostos tão publicamente na web? Durante as primeiras etapas da pesquisa, enquanto tentava formular corretamente e inclusive responder a essa pergunta, começaram a surgir outros fenômenos nos quais se dava o mesmo paradoxo: os reality-shows na televisão, os fotologs e videologs, as redes de relacionamentos como o Orkut, o MySpace e o Facebook, certos usos do YouTube e das webcams etc.
Então, achei que se tratava de sintomas de uma nova época: todas essas novidades eram sinais de que algo tinha mudado radicalmente no que entendemos por intimidade, bem como no que é público e no que é privado hoje em dia. Por tudo isso, creio que essas novas formas de expressão e comunicação que agora proliferam, de fato, nada mais fazem do que amplificar certas tendências que também estão presentes fora da mídia, pois algo muito semelhante ocorre em nossa vida espetacularizada de todos os dias. Por isso, apesar da ênfase nas novas práticas presentes na Web 2.0, eu tendo a afirmar que se trata de um fenômeno bem mais amplo: usamos essas ferramentas para responder às demandas de um novo tipo de sociedade, um universo cada vez mais distante daquela cultura oitocentista que incitava a escrever diários verdadeiramente “íntimos”.
Uma das principais manifestações dessa virada é um crescente desejo de ser visto, uma vontade de se construir como um eu visível, como um personagem que os outros podem ver e, graças a esse olhar reconfortante, confirmam a existência de quem se exibe. Mas por que será que isso tudo acontece logo agora? A minha hipótese é que no mundo contemporâneo estão se transformando os modos em que se constrói esse eu que fala e que se mostra sem pausa, justamente porque necessita se exibir para ser alguém.
A conclusão é, portanto, que está acontecendo um deslocamento histórico do eixo em torno do qual se constrói o que é cada sujeito, e esses novos fenômenos tão presentes na Internet atual seriam um indício dessa mutação. Pensemos que naqueles tempos modernos que já começam a ficar envelhecidos — um período cujo auge ocorreu no século XIX e na primeira metade do XX —, esse eixo se edificava em torno da “interioridade” de cada indivíduo, em volta de algo que se acreditava hospedado “dentro” de cada um e que guarnecia sua essência pessoal. Nos últimos anos, parece que esse eixo tem se deslocado em direção à superfície do corpo e, inclusive, cada vez mais, verte-se avidamente nas telas e em outras vitrines midiáticas.
IHU On-Line – Em que sentido a especularização da intimidade se relaciona com o desejo de “ser alguém”? Como isso está acontecendo, na contemporaneidade?
Paula Sibilia – O que se procura, nessas novas práticas “exibicionistas” e “confessionais” não é mergulhar no mais obscuro de si mesmo para ter acesso às próprias verdades, como acontecia na escrita do diário íntimo tradicional ou no relato vital da psicanálise, por exemplo. Agora se persegue a visibilidade e, em certo sentido, também a celebridade. Ambas como um fim em si mesmo, não como um meio para atingir outra coisa e nem como uma conseqüência de algo maior. Uma via para poder “ser alguém” na sociedade atual.
De modo que não se trata mais daquele gesto introspectivo que consistia em se afundar “dentro” de si mesmo, mas tudo o contrário: aqui são exercidos movimentos para “fora”, que buscam a valiosa possibilidade de ter um público assistente diante do qual se exibir. Embora os espectadores que constituem esse auditório sejam limitados, o importante é conquistar alguma porção de visibilidade, porque após ter se perdido aquela âncora que sustentava o que se era no interior de si mesmo, só quando alguém nos olha e nos vê, podemos ter garantias de que realmente existimos. Eis uma das premissas da nossa “sociedade do espetáculo”, tal como a definira Guy Debord (1) em seu manifesto de 1967.
IHU On-Line – O que essa necessidade de exposição revela sobre os seres humanos e o atual momento que estamos vivendo?
Paula Sibilia – É evidente que a intimidade tem deixado de ser o que era. Naquele outro contexto histórico dos “velhos tempos modernos” — isto é, aquele denso período que abrangeu todo o século XIX e a primeira metade do XX —, cada um devia resguardar sua própria privacidade de qualquer intromissão alheia, não só por meio de paredes opacas e portas fechadas, mas também mediante todos os rigores e pudores da antiga moral burguesa.
Agora, ao contrário, a intimidade tem se convertido numa espécie de cenário no qual devemos montar o espetáculo de nós mesmos: a vitrine da própria personalidade. E esse show do eu tem que ser visível. Porque se esses pequenos espetáculos intimistas se mantivessem dentro dos limites da velha privacidade — aquela que era oculta e secreta por definição — ninguém poderia vê-los e, portanto, correriam o triste risco de não existir. É por isso que hoje se torna tão imperiosa essa necessidade de tornar público algo que supostamente deveria permanecer protegido no silêncio do privado; porque mudaram os modos de construção do eu e os alicerces em cima dos quais se sustenta esse edifício.
IHU On-Line – Por que o ser humano sente que precisa “aparecer” para “ser alguém”?
Paula Sibilia – Porque nesse novo modo de vida que tem se tornado hegemônico neste início do século XXI, só é aquilo que se vê. Portanto, é necessário se construir como uma subjetividade visível para que o olhar alheio possa confirmar que existimos. O importante é que cada indivíduo seja capaz de produzir um personagem visível para se mostrar e se vender, e que os outros se ocupem de confirmá-lo com seu olhar. Por isso, estas novas práticas denotam a configuração de novos tipos de subjetividades, formas eminentemente contemporâneas de se auto-construir, cada vez mais distantes do “homem moderno” que brilhou no século XIX.
Para utilizar o vocabulário do sociólogo norte-americano David Riesman, trata-se de modos de ser que não são mais introdirigidos ou orientados para “dentro” de si mesmo, ali onde residia o “caráter” do homem moderno ou o núcleo do que era cada um. Em vez disso, agora somos personalidades alterdirigidas ou orientadas para o olhar dos outros. E isto não acontece apenas na Internet, é claro, mas nas diversas práticas contemporâneas onde impera esse desejo desesperado de que os demais nos enxerguem e nos observem para que possamos existir.
IHU On-Line – Como a senhora percebe, nesse contexto, a crescente exteriorização do “eu”? O que isso significa e revela sobre o comportamento humano?
Paula Sibilia – Acredito que estes fenômenos de crescente “exteriorização” do eu são compatíveis com o projeto de mundo no qual vivemos. Refiro-me a que são manifestações históricas, e não é mero acaso o fato de que tenham se popularizado logo agora, até se tornar um verdadeiro fenômeno. Porque estas novas práticas respondem a certas demandas dos sujeitos contemporâneos e permitem satisfazer determinadas exigências da nossa sociedade. Assim como o diário íntimo, as cartas, os romances realistas e inclusive a psicanálise eram compatíveis com aquele outro projeto de mundo que se afasta cada vez mais de nós. Os homens e mulheres dos séculos XIX e XX recorriam a essas ferramentas porque delas precisavam para se construir como sujeitos à altura da sua época, assim como agora necessitamos esses outros instrumentos que a Internet nos oferece.
O mundo contemporâneo não solicita introspecção, mas ele pede aos gritos visibilidade, celebridade, habilidades comunicativas e marketing de si mesmo. Por isso, cada um deve aprender a se administrar como uma empresa, posicionando sua marca no mercado das aparências. E essas ferramentas de exposição multimídia e interativas nos ajudam a consegui-lo, além de nos capacitar para termos sucesso nessas arenas.
Podemos dizer que se trata de um projeto histórico comparável ao do capitalismo industrial dos séculos XIX e XX, e que sem dúvida dele provém, embora várias das suas premissas e objetivos foram mudando nas últimas décadas. Essas transformações extremamente complexas, ocorridas tanto nos níveis econômicos e políticos como sociais e culturais, levam a pensar que em boa medida esse projeto mudou, e que o mundo ocidental agora precisa de outro tipo de sujeitos para poder funcionar corretamente. Precisa de gente como nós, que usamos estas ferramentas e somos com elas compatíveis, assim como estamos deixando de ser perfeitamente afinados com todo aquele instrumental típico da modernidade industrial que hoje nos parece tão antiquado.
IHU On-Line – A senhora percebe uma mudança de paradigma no que se refere à subjetividade? Por que em alguns aspectos o ser humano ainda é extremamente reservado e em outros, pelo contrário, bastante liberal?
Paula Sibilia – Sim, o que aconteceu — ou ainda está ocorrendo — pode ser considerado uma mudança de paradigma. Porque na segunda metade do século XX começou a se configurar uma nova torção nesse panorama, que agora se consuma neste curioso fenômeno de exibição da intimidade que tanto nos surpreende. Mas o que está ocorrendo é bastante complexo.
Por um lado, protegem-se cuidadosamente certos dados pessoais, especialmente de índole financeira e comercial, contra as temidas invasões da privacidade. Essa preocupante possibilidade é cada vez mais propiciada pelos modos de vida contemporâneos e pela atual economia empresarial, que se baseia em sistemas eletrônicos de monitoramento e de marketing direcionado.
No entanto, por outro lado, algo bem diferente é a evasão da intimidade, isto é, a própria exposição voluntária na visibilidade das telas globais daqueles aspectos da existência que antes concerniam à intimidade pessoal mais recôndita de qualquer um e que, por tal motivo, deviam ser decorosamente protegidos entre quatro paredes.
IHU On-Line – Pode nos explicar o que são homo psychologicus e homo privatus? De que maneiras ambos se manifestam nos seres humanos, atualmente?
Paula Sibilia – Trata-se de um tipo de subjetividade historicamente localizada, que se tornou hegemônica ao longo de todo o século XIX e boa parte do XX, e que hoje estaria em crise. Para tentar compreender do que se trata, vale lembrar que a separação entre o âmbito público e a esfera privada da existência é uma invenção histórica, una convenção que em outras culturas não existe ou se configura de modos diferentes. Inclusive nas sociedades ocidentais, essa distinção é relativamente recente: a esfera da privacidade só passou a ganhar certa consistência na Europa do século XVIII, como uma repercussão do desenvolvimento do capitalismo industrial e dos modos de vida urbanos engendrados pela modernidade.
Naqueles tempos já remotos, começou a surgir um espaço de refúgio destinado a cada indivíduo e à família nuclear burguesa. Nesses ambientes privados que convidam à introspecção, os sujeitos modernos podiam encontrar aquilo que tanto ansiavam: um território a salvo das exigências e dos perigos que começavam a vigorar no âmbito público das grandes cidades. Trata-se, justamente, do espaço privado: o território por excelência onde transcorre a intimidade — ou, pelo menos, onde ela costumava transcorrer. Ou seja: um abissal universo particular, que para poder ser cultivado e prosperar requeria silêncio, solidão e uma nevoa de segredos.
Assim, a partir do século XIX, para poder desenvolver e burilar o próprio eu, era fundamental dispor de “um quarto próprio”, como apregoara a escritora britânica Virginia Woolf em uma série de conferências pronunciadas a princípios do século XX que se tornaram um verdadeiro emblema das reivindicações feministas. Ou seja, um espaço separado do âmbito público e da intromissão alheia por meio de sólidos muros e portas fechadas. A privacidade e a intimidade eram necessárias para poder ser alguém, para se tornar um sujeito moderno e estar em condições de produzir a própria subjetividade.
Como contrapartida, esse redobrar-se na privacidade do lar, na intimidade e na interioridade psicológica de cada um, motivou também o surgimento de uma atitude de crescente passividade e indiferença com relação aos assuntos públicos e políticos. Certa estigmatização desse espaço “exterior” e um desinteresse por todo esse universo, que era paralelo à gradativa concentração no espaço privado e nos conflitos íntimos de cada um.
Nota:
1.- Guy Debord (1931-1994): filósofo e sociólogo francês, autor de A sociedade do espetáculo - Comentários sobre a sociedade do espetáculo (Rio de Janeiro, Contraponto, 1997) e fundador da Internacional Situacionista (IS). Sobre ele, confira ainda a autobiografia Panégyrique (Paris: Éditions Gérard Lebovici, 1989). (Nota da IHU On-Line).
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Show do eu: a vitrine da própria personalidade. Entrevista especial com Paula Sibilia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU