04 Novembro 2008
Apesar de ser considerado um país em desenvolvimento, com crescimento econômico relevante, cerca de 14 milhões de pessoas sofrem de fome e desnutrição no Brasil. Crianças, idosos e mulheres compõem o grupo que mais tem problemas para se alimentar. O Brasil é um país muito grande, que abrange inúmeras culturas, que produz muito alimento e que não sabe distribuir e respeitar a democracia alimentar. Mesmo tido por sua própria população como um “estado diferente”, intelectualizado, o Rio Grande do Sul não foge à regra e enfrenta, também, o problema da fome. A IHU On-Line conversou, por telefone, com a presidente do Conselho de Segurança Alimentar do Rio Grande do Sul, Marisa Formolo e, pessoalmente, com a coordenadora do Curso de Nutrição da Unisinos, Maísa Pedroso, para debater a questão da fome no estado gaúcho. Para Marisa, dizer que a fome não chegou ao Rio Grande do Sul é prova de que não se conhece a realidade gaúcha. “Infelizmente, a governante do Rio Grande do Sul não tem a conduta de uma mulher sensível, responsável e comprometida com a luta contra a fome dos gaúchos”, afirmou. Já a professora Maísa acredita que só a inserção da questão da nutrição no âmbito da educação pode mudar os índices de subnutrição e anemia que afetam o sul do Brasil.
Marisa Formolo é deputada estadual pelo PT, presidente da Comissão de Educação, Cultura, Desporto, Ciência e Tecnologia e membro da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos.
Maísa Beltrame Pedroso é graduada em Nutrição, pela Unisinos e especialista em Medicina Desportiva e Saúde Escolar, pela PUCRS. Na Unisinos, realizou também o mestrado e o doutorado em Educação.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como a senhora analisa essa questão da cultura gaúcha que diz que no estado não há fome? O Rio Grande do Sul realmente não sofre desse mal?
Marisa Formolo – Dizer que não há problema de fome no Rio Grande do Sul é não conhecer a realidade gaúcha. Os dados do Bolsa Família no Estado são uma prova concreta de que nossos governantes estaduais não estão preocupados com a questão da fome e que o governo federal está sendo o grande responsável pela redução da fome no Rio Grande do Sul. No ano passado, mais de 400 mil famílias foram atendidas pelo Bolsa Família, sem contar outro programas federais. Porém, o orçamento do governo do estado para 2008 previa para o programa Implantação do Centro de Referência em Segurança Alimentar 463 mil reais e nada foi aplicado até agora. Outro programa que também está no nosso orçamento de 2008 é o Consórcio de Segurança Alimentar e Desenvolvimento, que tinha uma previsão de 50 mil reais, mas nada foi investido. Logo, temos um governo federal comprometido com uma política pública que está servindo de exemplo para muitos países e um governo do estado omisso e irresponsável. Eu, como política, mãe, educadora e presidente da Comissão de Segurança Alimentar, acho lamentável e tenho vergonha de dizer que esta é a conduta do governo do estado. Infelizmente, a governante do Rio Grande do Sul não tem a conduta de uma mulher sensível, responsável e comprometida com a luta contra a fome dos gaúchos.
Maísa Pedroso – Desde a época de Josué de Castro, o conceito de fome é bastante difundido e pouco discutido. Desde então, sabemos que, no Brasil, não há uma falta de alimento, mas sim uma falta de nutrientes. Nós temos, hoje, uma péssima condição nutricional. Estamos passando por uma transição nutricional, pois tínhamos um problema sério de desnutrição – na realidade, o termo mais correto seria subnutrição – e passamos para o caso da obesidade. Só que isso não significa que as pessoas estejam bem nutridas. Elas têm excesso de calorias, mas a qualidade nutricional ainda está deixando muito a desejar. Nós temos, hoje, no Rio Grande do Sul, ainda concentrações de fome, como, por exemplo, entre a população indígena, que vive numa situação bastante preocupante. Há alguns anos, vivemos esse drama em Tenente Portela e hoje estamos passando por esse problema em Viamão. Recebi essa notícia ontem, sem muitos detalhes, mas sei que envolve a população indígena. Esses segmentos da população ainda são muito descuidados, descobertos. Num todo, se falarmos em índice de mortalidade infantil em decorrência da subnutrição, teremos números baixíssimos. Mas nós temos fome sim, temos crianças subnutridas e casos bastante sérios de anemia. Precisamos atacar esse problema. As crianças podem, inclusive, estarem obesas e anêmicas. Esse é um tipo de fome que temos de reavaliar, pois se trata de um problema bastante sério, uma vez que a anemia provocará conseqüências na criança, como, por exemplo, um baixo rendimento escolar. Isso não é muito trabalhado. O Ministério da Saúde sabe disso e lançou, há alguns anos, o Programa Nacional de Suplementação de Ferro, mas este projeto está com grandes dificuldades de ser implementado no Rio Grande do Sul.
IHU On-Line – E por que há essa dificuldade?
Maísa Pedroso – Por falta de adesão dos profissionais da saúde. Isso é causado por falta de formação e de visão em relação a esse contexto.
IHU On-Line – E como o problema da fome é tratado dentro das universidades, dentro dos cursos da área da saúde?
Maísa Pedroso – Essa é uma grande questão na qual nós estamos trabalhando e batalhando muito: a formação do nosso profissional. Nós mudamos a forma de tratar a fome. Hoje, estamos trabalhando muito a questão da obesidade. No entanto, olhamos muito mais a doença e esquecemos a promoção da saúde. Acho que temos de mudar esse paradigma.
IHU On-Line – Qual a situação atual do problema da fome no estado? Podemos traçar um mapa da fome no Rio Grande do Sul, de forma a definir se há locais em que a situação é mais grave?
Marisa Formolo – A população mais pobre do Rio Grande do Sul e que tem o menor índice nutritivo é formada pelos povos indígenas. São esses que primeiro precisam de atenção para suprir a nutrição. Depois dos povos indígenas, sofrem desse mal as populações das periferias das grandes cidades, assim como os integrantes de alguns quilombos. Parece estranho, mas a população da área rural sofre desse problema pela pobreza que aumentou, principalmente nos municípios de economia agrícola onde não há políticas locais de desenvolvimento do sistema de produção. A capital, Porto alegre, é a região onde temos o maior número de pessoas que recebem o Bolsa Família e essa é uma expressão da fome e da pobreza gaúcha. Mesmo sendo uma das cidades mais ricas do estado, Caxias do Sul tem mais de 5% da população passando fome. Essas medidas da governadora Yeda, em nome da redução de despesas, estão tirando oportunidades para aqueles que menos têm. Apenas quem perdeu a esperança na vida quer depender de ajuda do governo para sempre. As outras pessoas querem oportunidades para ascender na vida. Quando se fecham escolas e se demitem mais da metade dos professores da universidade estadual, é visível que não há um compromisso com o mapa da fome.
Maísa Pedroso – Não tenho um mapa pronto, mas é certo que há regiões que sofrem mais desse mal do que outras. Onde isso ocorre há um baixo desenvolvimento econômico. A fome não está desvinculada do crescimento econômico. Em relação aos casos de anemia, a região sul do Estado é uma das mais afetadas. Nessa área, há também uma maior concentração da população indígena. Acho que devemos criar políticas públicas que venham ao encontro da promoção de saúde. O crescimento econômico propicia isso, mas é necessário aproveitá-lo para criar políticas públicas que venham em beneficio dessa população. É preciso sair do modelo assistencialista, para pensarmos num modelo que pensa no cidadão. Isso não está, também, desvinculado da educação. Só haverá um indivíduo saudável quando tivermos uma educação forte, na medida em que um povo educado tem mais condições de buscar seus direitos e uma saúde melhor.
IHU On-Line – Como a senhora relaciona a questão da fome com a educação aqui no estado?
Marisa Formolo – A questão da fome e da educação passa não apenas pela educação escolar, mas também pela educação alimentar. A Pastoral da Criança é um dos grandes aliados, inclusive, para a formação da população brasileira no sentido de nutrirem-se mais e de terem uma educação alimentar. Só que o governo estadual, mais uma vez, não trabalha a educação alimentar e está tirando a educação formal, fechando estas instituições. Isso evidencia que o Rio Grande do Sul tem um governo que não assumiu a política de combate à fome direta, com medidas concretas através de alimentação e de uma nutrição adequada. Ele não assumiu o problema da educação também como uma forma de superar o problema da fome, quer seja através da educação alimentar ou quer seja para a educação escolar. A governadora não quer gastar o que a lei exige que o estado invista em saúde, e afirma que o déficit é zero quando ainda falta educação e saúde. É um ato pecaminoso, de omissão e de irresponsabilidade, retirar recursos da saúde e da educação para dizer que há um déficit zero. Haverá, sim, um déficit social muito maior do que aquele que temos hoje por irresponsabilidade política deste governo.
IHU On-Line – Qual a importância da merenda escolar para a qualidade da alimentação das crianças gaúchas? A senhora pode nos falar um pouco sobre como a problemática em relação às merendas no Rio Grande do Sul tem afetado a questão da fome?
Marisa Formolo – A questão da alimentação escolar tem a ver com os programas federais, porque as escolas recebem recursos para a compra de merenda escolar através de recursos federais. Além disso, há os recursos municipais que devem ser aplicados na merenda. Isto faz com que muitas escolas públicas tenham uma merenda de boa qualidade. Só que não há uma educação para a alimentação escolar como um compromisso das escolas, tanto que há instituições que fazem do bar das suas escolas uma fonte de renda, vendendo alimentos sem valor nutritivo. Mas o governo não está fiscalizando esses estabelecimentos, não está regulamentando para que, de fato, os bares das escolas sejam espaços nutritivos e que a merenda escolar sirva também para que as crianças aprendam o que é nutritivo para a saúde.
Se não bastasse isso, como foi visto na imprensa, temos políticos envolvidos com desvios de recursos da merenda escolar no Rio Grande do Sul, que deveriam ser usados para as crianças se alimentarem. Muitas dessas crianças têm na merenda escolar o maior e mais completo alimento dentro de uma programação de refeição diária. É muito triste ver esse desvio de dinheiro e ainda a não aplicação de recursos para a merenda em nome de um déficit orçamentário. Este é um ato de desumanidade que a política está protagonizando e que nos deixa com vergonha de pertencer ao estado onde ocorre esse tipo de ação.
IHU On-Line – Quais os maiores desafios para combater a desnutrição de crianças no Brasil?
Marisa Formolo – Nós temos que acatar programas de saúde que façam diagnósticos nutricionais através do SUS e, além disso, precisamos cuidar do complemento alimentar dos bebês através das unidades de saúde. Também precisamos trabalhar com os municípios, para que assumam, junto com o governo do estado, as políticas de educação às mães sobre a alimentação adequada, pois é fundamental que elas saibam a necessidade nutricional de cada idade infantil. Um quarto passo é que a escola se torne um centro de formação de educação alimentar e que os municípios, através dos seus sistemas locais de produção, e as políticas de estado, estimulem a produção de alimentos de qualidade. Com isso, é preciso que se estimulem mais pessoas para a produção desses alimentos, sem agrotóxicos e, por conseqüência, a venda desse tipo de produto. A geração de trabalho e renda precisa ser conduzida de forma associativa entre os produtores. É que a nossa universidade estadual qualifique e forme pessoas para esta área de produção de alimentação. Sem esses fatores, corremos o risco de aumentar ainda mais os índices de desnutrição de crianças e idosos, principalmente. A desnutrição e a fome não têm a ver só com a alimentação disponível, mas engloba a saúde e a educação alimentar, a produção de alimentos, a comercialização de produtos alimentícios e a capacitação das pessoas para cuidar das crianças, dos adolescentes e dos idosos dentro das suas necessidades nutritivas.
Maísa Pedroso – Os desafios são tantos... Mas a educação das crianças é o ponto principal, pois é um trabalho de longo prazo. Só mudando a percepção delas, podemos mudar essa realidade. Elas são da geração do fast food, da emergência, mas agora temos de parar e ensiná-las a viver o ócio, a alimentar-se melhor, a usar o dinheiro de maneira mais adequada.
IHU On-Line – O que mais revolta em relação à fome?
Marisa Formolo – A omissão do estado, a insensibilidade da governadora e dos órgãos de estado em assumir a fome como uma política pública. A fome é assumida pelo estado e alguns municípios como uma política simplesmente de caridade e, com isso, a relação continuará clientelista, fazendo dos pobres pessoas que não têm condições de ter dignidade e cidadania. Ficam subalternos, dependentes, subjugados porque dependem de alguém para matar a sua fome. Esse é um dos pecados da omissão dos políticos: não lutar por um direito básico, que é o direito de comer.
IHU On-Line – Por mais que exista uma cultura bastante tradicional e marcante, a sociedade rio-grandense é formada por outras culturas, como a indígena e os imigrantes europeus. Como a questão da segurança alimentar é trabalhada sabendo que, por exemplo, nas escolas primárias essas culturas convivem de forma muito próxima?
Marisa Formolo – Primeiro, é preciso reconhecer os produtos que são da cultura de cada etnia. Por exemplo, a cultura alimentar dos índios tem um perfil diferente da cultura dos europeus e dos quilombolas etc. Reconhecer a importância das diferenças culturais e a especificidade dos produtos e do sabor de cada cultura é respeitar a democracia alimentar, que é um termo pouco conhecido. A democracia alimentar faz parte do respeito às diferenças culturais e é por isso que devemos passar por uma educação de consciência das diferenças culturais para fazer um bom projeto de segurança alimentar.
IHU On-Line – Sobre a crise dos alimentos no mundo, muitos estudiosos dizem que não há falta de alimentos, mas má distribuição. O Rio Grande do Sul também sofre as conseqüências dessa crise?
Marisa Formolo – Nós nunca tivemos tantos alimentos guardados e, ao mesmo tempo, nunca tivemos tanta fome. Há vários estudos da FAO que provam esta questão. O problema é que os países ricos fazem grandes estoques para dominar o mercado alimentar no mundo e, com isso, nós não temos distribuição, mas uma concentração de alimentos. Enquanto não houver uma política para que todos no mundo tenham o direito de comer, nós teremos essa disputa por estoques para controlar mercado e não para suprir a fome no mundo.
Maisa Pedroso – Não existe falta de alimentos, mas má distribuição. Se pegarmos uma folha de balanço de alimentos e analisarmos a produção de alimentos com valor nutricional no mundo, veremos que é possível atingir a cota energética como um todo. O que falta é uma redistribuição.
IHU On-Line – Para onde está indo essa alimentação?
Maísa Pedroso – Há muito desvio e incentivo à produção de alimentos que não são adequados. Já tivemos políticas agrícolas no Brasil que, nutricionalmente, não eram adequadas. A produção de cana hoje é um exemplo disso. Que reflexo isso pode provocar? Daqui a pouco, não estaremos mais plantando soja, arroz e outros alimentos e, simplesmente, plantando cana, apenas porque rende mais. A população não tem, ainda, a dimensão disso. O mesmo aconteceu com o milho nos EUA. Hoje consumimos salgadinho porque alguém tinha de consumir o milho que foi produzido em excesso. Precisamos olhar o alimento sob todos os vieses. Antes não fazíamos isso.
IHU On-Line – Ao mesmo tempo em que existe a fome, cresce o número de pessoas obesas e mal nutridas. O que explica esse paradoxo?
Marisa Formolo – É a má qualidade nutricional das pessoas. Então, para resolver o problema da saúde, é preciso adequação alimentar, além de lazer e esporte, no intuito de buscar um equilíbrio dos hábitos alimentares. Esse paradoxo tem a ver com a qualidade alimentar e com a má educação alimentar.