21 Outubro 2008
Uma das áreas mais conservadas do Brasil está sob ameaça. O Pantanal vem sofrendo com a supressão da vegetação nativa, com a subdivisão das fazendas de gado que introduziram gramíneas exóticas na região, com o plantio de cana-de-açúcar que produz muito resíduo poluente, com a produção de carvão e com o incentivo de pólos industriais dentro da sua área. Débora Calheiros, doutora em Ciências, faz uma análise nesta entrevista sobre a situação atual do Pantanal, a influência da produção de agrocombustíveis na região e o que seus resíduos provocam neste meio ambiente e fala sobre os impactos dos pólos industriais nas bacias que formam a maior área inundável do mundo. “O ideal, se quisermos realmente conservar o Pantanal, é converter todos esses cultivos, presentes na parte alta principalmente, em sistemas de produção agroecológica”, sugere Débora, nesta entrevista, realizada por skype e por telefone, à IHU On-Line.
Débora Fernandes Calheiros é graduada em Ciências Biológicas, pela Universidade de São Paulo, onde também obteve o título de mestre em Engenharia Hidráulica e Saneamento e o doutorado em Ciências. Desde 1989, é pesquisadora na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que situação está a questão do desmatamento e da concentração de terra no Pantanal hoje?
Débora Calheiros – O Pantanal é a maior área inundável do mundo; não é como a Amazônia. Ele possui ainda certa conservação, embora esta esteja muito ameaçada, principalmente de uns dez anos para cá. Desde os anos 1970, vem sofrendo ameaças devido ao uso que tem sido feito do planalto. A planície pantaneira é circundada por partes mais altas de planalto, que estão sendo apropriadas pela agropecuária. Desde então, há muito desmatamento nessa parte alta onde nascem os rios que formam o Pantanal. Em geral, essas áreas sofrem com, além do desmatamento, o uso de pesticidas, erosão, assoreamento dos rios – como aconteceu com o rio Taquari, que foi assoreado pelo mau uso do solo na parte alta e aí se perdeu cinco quilômetros de área que hoje são permanentemente inundadas e não têm mais pulsos de inundação (ciclos de cheias e secas que regem a ecologia do Pantanal). Uma vez que você entope o rio, ele muda totalmente a sua dinâmica das águas. Mas na planície a conservação ambiental ainda é razoavelmente boa.
IHU On-Line – Mas o que ocorreu nos últimos anos?
Débora Calheiros – Na planície, como você tem esse ciclo das águas, ela inunda grandes extensões e as fazendas, em decorrência desse fenômeno, precisam ser grandes. Aqui existem fazendas de 60, 80, cem mil hectares. Dentro dessas fazendas, na época da inundação, há até dois terços dessa área inundada, dependendo da sua localização. São latifúndios, mas as fazendas têm essa função de manter áreas secas para o gado em época de inundação. No entanto, essas fazendas começaram a ser subdivididas entre as famílias, entre os descendentes, e a partir disso você não tem mais essa área para manejar o gado em época de cheias. No Pantanal, você tem o campo inundável, que em geral são gramíneas nativas, sazonalmente inundadas. E um pouco acima desse campo de gramíneas, cerca de 40 centímetros, você tem já uma formação arbórea porque essas áreas não são inundadas com tanta freqüência, o que é próprio para a formação de uma mata de cerrado. Então, com a subdivisão das fazendas, se começou a desmatar essas áreas de mata para ter área para o gado ficar na cheia e aí colocar gramínea exótica, que é a brachiaria (lê-se braquiária) – uma gramínea originária da África e muito utilizada na pecuária.
Antes, o manejo da pecuária estava mais relacionado com a dinâmica do Pantanal, ou seja, se manejava o gado para as partes altas e para áreas que não têm relação com a inundação dos rios e com os canais de drenagem e, por isso, não era necessário desmatar tanto. Agora, com essa subdivisão, o pessoal está desmatando mais e plantando gramínea exótica, ou seja, a biodiversidade está sendo mudada. Isso está se generalizando aqui no Pantanal. Outro problema é que as fazendas estão mudando de mão. As famílias tradicionais e seus descendentes não têm a relação com a terra como tinha o pantaneiro tradicional. Além disso, muitas pessoas de fora do estado estão vindo e comprando essas fazendas. Essas pessoas, por não conhecerem a realidade do Pantanal, estão trazendo o modelo de produção de São Paulo, Paraná etc. Esse é um problema sério porque aumentou muito o desmatamento, que hoje está em torno de 12% na planície. Parece pouco, mas o problema é que esse dado tende a aumentar. Agora, no planalto, a situação é bem problemática, porque nessa área a taxa está em entre 50 e 80% de desmatamento. Isso é muito problemático para a conservação dos rios que formam o Pantanal.
Nós precisamos ter uma visão de bacia hidrográfica. Segundo a lei de recursos hídricos, a unidade de gestão e de planejamento dos recursos hídricos e do solo precisa ser pensada a partir de bacias hidrográficas. As pessoas tendem a falar que o Pantanal será conservado, mas o planalto pode ter outro tipo de abordagem. Só que a bacia hidrográfica é composta por planalto e planície. Então, você não pode simplesmente pensar nas partes baixas, se os rios estão vindo da parte alta que está com problemas.
IHU On-Line – De que forma a produção de agrocombustíveis está afetando o meio ambiente da região?
Débora Calheiros – Na questão da cana, existe uma lei estadual e uma federal. Só que, de uns cinco anos para cá, pela questão do aumento da produção de álcool no país, alguns deputados aqui do estado estão querendo revogar essas leis. Existiu um movimento desses políticos com o interesse de que fosse permitido voltar a plantar cana na região da parte alta e também a criação de usinas. Houve, também, uma resistência por parte da sociedade civil, que se mobilizou para que isso não acontecesse, inclusive ocorreu a morte de um ambientalista a partir dessa luta. Ele foi uma das pessoas que, na década de 1970, ajudou a construir essas legislações e, com essa mobilização para revogação das leis se matou em praça pública, jogou álcool sobre o seu corpo e ateou fogo. Esse foi um ato extremo da parte dele, pois no dia seguinte seria votado essa questão da revogação das leis em relação ao plantio da cana. Sua morte gerou debates a favor e contra essa lei. No fim, seu ato reverteu a decisão. A então ministra do meio ambiente (Marina Silva) olhou para a questão do Pantanal, mas ainda há insistência por parte de alguns políticos em relação a essa questão.
O que se alega é que hoje em dia temos tecnologia suficiente para que o vinhoto (resíduo pastoso e malcheiroso que sobra após a destilação fracionada do caldo de cana-de-açúcar fermentado, para a obtenção do etanol) não afete o Pantanal. Só que a quantidade de produção de álcool e de vinhoto, por mais que se use este como fertilizante, pede uma série de questões técnicas, ou seja, não se trata de um uso simples. Seria difícil usar toda a quantidade produzida de vinhoto como fertilizante. Então, há várias questões polêmicas e técnicas que envolvem este assunto. A legislação é uma das poucas conquistas da sociedade para a conservação do Pantanal, que é considerado patrimônio nacional e reserva da biosfera pela Unesco. Então, a Constituição Federal do país prevê uma legislação específica para que se utilize os recursos naturais do Pantanal e a gente ainda não tem isso. No Brasil, só a Mata Atlântica tem essa lei, que levou 14 anos para ser aprovada. O resultado é que apenas 7% dessa mata ainda existe.
IHU On-Line – Segundo especialistas, a maior preocupação do Pantanal hoje é a contaminação do ecossistema pelos agrotóxicos utilizados nas plantações. De que forma as conseqüências do uso dos agrotóxicos já podem ser vistas sobre o meio ambiente do Pantanal?
Débora Calheiros – A questão dos agrotóxicos é um problema sério. Estamos realizando um estudo de contaminação e temos encontrado princípios ativos de pesticidas que afetam peixes e plantas aquáticas. Então, o ideal, se quisermos realmente conservar o Pantanal, é converter todos esses cultivos, presentes na parte alta principalmente, em sistemas de produção agroecológica. Existe uma tendência mundial para esse modelo. O planalto do Pantanal é um divisor de águas entre a bacia do alto Paraguai e a bacia do Paraná. Exatamente nesse ponto está a área de recarga do aqüífero Guarani. Então, esse uso de pesticidas e fertilizantes, somado à intensa mecanização desse tipo de lavoura, pode estar afetando o aqüífero Guarani.
IHU On-Line – Um dos problemas do Pantanal é também a produção de carvão...
Débora Calheiros – O Mato Grosso do Sul está fornecendo 40% do carvão do país a partir da sua mata nativa (cerrado), segundo dados do Ibama. Numa operação conjunta entre esta instituição e a Polícia Federal, as siderúrgicas foram multadas em milhões de reais e alguns fiscais e policiais rodoviários foram autuados. O código florestal manda que as siderúrgicas tenham carvão fornecido a partir de mata plantada, mas essas empresas nunca fazem isso, pois o carvão de mata nativa é mais barato...
Outro problema no Pantanal é a introdução de espécies exóticas de animais, como peixes amazônicos, mexilhões da China, mexilhões dourados etc. A inserção de espécies exóticas não tem controle natural de sua população. Assim, tornam-se uma praga sem controle provocando desequilíbrio ecológico a médio e longo prazo. Esses animais contribuem para a alteração das relações ecológicas com outras espécies nativas e também provocam problemas econômicos e sociais.
Mais um grande problema do Pantanal é a industrialização de Corumbá por pólos de indústria pesada que faz parte de um projeto de "desenvolvimento", mas não é sustentável. Querem implantar aqui na região pólos de produção de aço e de gás-químico para produção de plásticos e fertilizantes.
IHU On-Line – A ex-ministra Marina Silva diz que o ecossistema do Pantanal é extremamente frágil e que qualquer tipo de contaminação prejudica uma grande área. Como o uso da região do Pantanal para plantio de cana e cultura do gado está prejudicando essa região?
Débora Calheiros – Antes dessa questão da subdivisão das fazendas, podemos dizer que a relação homem e meio ambiente no Pantanal era sustentável. Apesar de que já nos anos 1970 o mau uso do solo era uma realidade no planalto. Na planície, o impacto do gado não é tão grande quanto é hoje a questão do desmatamento. Aliás, não podemos falar em desmatamento aqui, pois essa palavra é relacionada a matas, mas sim em supressão vegetal ou supressão da vegetação nativa, porque aqui é um cerrado com bastantes campos limpos, que são as savanas. Então, a supressão da vegetação nativa e a introdução dessa gramínea africana são os fatores que estão mudando muito a biodiversidade da região. A legislação proíbe a plantação de cana e usinas de álcool na região da bacia do alto Paraguai. Existe uma legislação federal e outra estadual sobre isso e essa lei deve ser seguida. Há discussão sobre a reversão dessa lei, mas eu penso que não deve ser realizada, pois é mais uma ameaça para a região.
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O Pantanal, reserva da biosfera, ameaçado. Entrevista especial com Débora Calheiros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU