10 Setembro 2008
A massificação das informações que envolvem o meio ambiente tem feito com que amplos setores da sociedade repensem a questão ambiental, incorporem atitudes sustentáveis e revejam os formatos de produção e consumo. Aliás, é o consumo que atinge diretamente a sociedade civil. Campanhas e movimentações têm sido realizadas para que a forma como consumimos seja transformada. Para a socióloga Fátima Portilho, “a adesão à causa ambiental e à transformação em práticas concretas de consumo sustentável dependem das variáveis culturais”, ou seja, em certos espaços da nossa vida será preciso mudar conceitos e atitudes. Já em outros basta uma redução no consumo para que tenhamos uma atitude pró meio ambiente. A técnica ambiental Eliana Saraiva afirma que “precisamos pensar em mudar nossos modos de produção. Não precisamos voltar ao passado, mas pensar em como os problemas devem podem ser minimizados hoje. E não apenas os governantes precisam pensar nisso. Toda a sociedade precisa rever o seu papel”. As duas concederam por telefone à IHU On-Line a entrevista que publicamos a seguir.
Maria de Fátima Ferreira Portilho é mestre em Psicossociologia das Comunidades e Ecologia Social, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e doutora em Ciências Sociais, pela Universidade Estadual de Campinas. Pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, obteve o título de pós-doutora. Atualmente, é professora da UFRJ.
Eliana Saraiva, por sua vez, é coordenadora do curso Técnico Ambiental da Escola do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial – SENAC, de São Paulo.
Confira as entrevistas.
IHU On-Line - Sobre o aquecimento global, são divulgadas principalmente notícias que se referem às conseqüências globais. Já que existe uma grande confusão sobre o que é correto ambiental e socialmente, não seria melhor trabalharmos primeiro as questões locais?
Fátima Portilho – Com a ampla divulgação da questão ambiental, o que chamamos de ambientalização da sociedade, todos os setores da sociedade se ambientalizam no sentido de que incorporam e percebem a questão ambiental como algo importante, ou seja, ela chega finalmente à esfera do cotidiano. Nessa esfera cotidiana, rotineira, as pessoas compreendem e buscam participar e contribuir para resolver os problemas ambientais, entre eles o aquecimento global, a partir do consumo. Se isso vai ter efeito ou não, é outra questão a que talvez os economistas possam responder. O fato é que eu traduzo a minha preocupação ambiental nessas atitudes cotidianas, dou concretude à minha preocupação ambiental via esse tipo de consumo. A forma que encontro para participar das questões ambientais é prestar mais atenção no meu consumo.
Eliana Saraiva – Exatamente. Essa opinião está de acordo com a Agenda 21, ou seja, você deve começar localmente, para ver os resultados gerais. Mas, ainda assim, devemos nos unir globalmente, pois muito dos problemas locais têm resultados globais. Por isso, volto a repetir, a solução está em repensar as nossas formas de produção.
IHU On-Line – A ONU tem feito uma grande campanha pelo menor consumo de carne no mundo. É necessário uma reeducação alimentar, ou seja, é uma questão de cultura. Como trabalhar essa questão tão íntima das pessoas, mas que, ao ser assumida pelo coletivo, pode mudar o rumo do aquecimento global?
Fátima Portilho – Eu acho que a tradução da preocupação ambiental em práticas de consumo correto é muito interessante, mas ao mesmo tempo limitada. Um dos limites está ligado à questão cultural que você citou. O consumo, seja ele alimentar, de roupa ou de qualquer outra coisa, não é simplesmente uma atividade que visa satisfazer nossas necessidades de uma forma biológica. Ninguém se alimenta de uma maneira aleatória, simplesmente pelo valor dos nutrientes. A alimentação está ligada a um aspecto cultural, à escolha do que se pode ou não comer. A formação do gosto, afinal, é cultural. Cada cultura define o alimento adequado para si. Embora a campanha da ONU seja interessante, é preciso considerar o significado da alimentação para as diversas culturas. Talvez, falar para não comer carne a uma determinada cultura em que a carne não tem um valor muito importante seja uma idéia interessante e tenha de fato bons resultados. Agora, o caso brasileiro é diferente.
Por exemplo, para o gaúcho, a carne é um dos itens mais importantes em sua alimentação. Ou seja, talvez falar para ele não comer carne não tenha tanto sentido quanto falar para um integrante de outra cultura. O consumo cumpre determinadas funções sociais. Ele tem uma função de construir e fortalecer a nossa identidade cultural. Através do consumo, eu digo quem eu sou e a posição na hierarquia social que ocupo. Isso acontece em qualquer cultura e não apenas na capitalista moderna. O consumo cumpre uma função de marcação de fronteiras, de identidades. Então, é complicado pedir simplesmente para que alguém pare de consumir aquilo que é importante para sua formação e para a construção da sua identidade.
As campanhas relacionadas a um consumo mais sustentável devem considerar as funções sociais do consumo. Agora, independente disso, o que tenho notado é que surgiu uma nova função social para o consumo, ou seja, as suas práticas têm sido usadas pelas pessoas como forma também de participação política, como forma de dizer do que cada um gosta e o que se quer politicamente para a sociedade e para o mundo. Então, através das minhas escolhas, além de marcar identidade, eu posso usar como forma de afirmar a forma como quero viver. Então, eu passo a usar o consumo também como forma de ação política.
IHU On-Line – Devemos caminhar, para amenizar os problemas ecológicos que estamos enfrentando e que ainda vamos enfrentar, para uma redução ou modificação na forma de consumo?
Fátima Portilho – Os dois. Não há como diferenciar. Por exemplo: eu posso pensar numa redução da quantidade de carne, mas em relação a outros itens eu posso pensar numa modificação, como a troca da geladeira atual por uma mais eficiente. Ou seja, não vou deixar de ter geladeira, mas vou trocá-la por uma ecoeficiente. Existe um programa do governo federal, que me parece muito interessante, sobre uma troca de geladeiras nas cidades do interior, especialmente no Nordeste. Foi feita uma política pública de subsídios para que as pessoas possam comprar geladeiras melhores e mais eficientes. Isso tem um impacto no gasto de energia naquelas regiões. É muito ingênuo pensar que as pessoas vão, de uma hora para outra, em nome do verde, da população mundial, coisas tão abstratas, modificar seus hábitos culturais, seu conforto, sua segurança, seus prazeres. Até que ponto a preocupação ambiental de fato se materializa em atitudes concretas? Isso não tem como se saber; é uma questão longa e complexa que envolve uma série de variáveis culturais. Se uma determinada coisa é valorizada num grupo social, eu tenho mais chance de aderir à causa. Agora, se isso não é importante dentro do grupo por onde circulo, a probabilidade de eu aderir a essa causa é muito pequena. A adesão à causa ambiental e a transformação em práticas concretas de consumo sustentável dependem das variáveis culturais.
IHU On-Line - O governo brasileiro está realizando medidas para diminuir o desmatamento na Amazônia, ao mesmo tempo em que investe na construção de hidrelétrica para aumentar o padrão de energia no país. Como a senhora vê essas contradições?
Fátima Portilho – No dia-a-dia, o consumidor enfrenta dilemas. Um deles é: quem é o responsável por isso? Sou eu quem deve deixar o carro na garagem, reduzir ou modificar meu consumo e enquanto isso o governo e as empresas fazem nada pela causa? É importante lembrar que o consumidor enfrenta esses dilemas e nesse momento já está refletindo sobre o assunto, mesmo que não modifique a sua prática. Isso é muito proveitoso. Além do dilema sobre quem é o ator responsável, mesmo que eu defina também uma pessoa responsável por fazer alguma coisa, vou enfrentar uma série de conflitos e dificuldades nessa ação ambientalmente correta, porque as ações entrarão, em alguns momentos, num dilema em relação aos meus desejos individuais, à minha cultura, aos meus valores. Isso gera novos questionamentos em relação as minhas atitudes. Se eu não percebo que minhas ações cotidianas têm significado concreto na melhoria ambiental, eu tendo a não fazer.
Além disso, o consumidor ainda enfrenta as controvérsias científicas. Muitas vezes, ele precisa fazer escolhas e tomar decisões de compra que envolvem decisões extremamente técnicas. Ao mesmo tempo, essas decisões técnicas são motivo de discórdia mesmo entre os cientistas. Em quem o consumidor vai acreditar, em quem vai se basear para fazer a escolha correta? O que eu quero dizer é que o uso do consumo como forma de ação política pró meio ambiente é bastante limitado por conta desses dilemas. Esses são os limites da ação política para o bem do meio ambiente.
Eliana Saraiva – Aí começa a confusão. Muitas pessoas ainda não têm consciência. Por isso, quem tem domínio da palavra possui um papel importante nessa mudança. Essas pessoas podem contribuir pensando, no início, em minimizar. Precisamos pensar em mudar nossos modos de produção. Não é necessário voltar ao passado, mas pensar em como os problemas devem podem ser minimizados hoje. E não apenas os governantes devem refletir sobre isso. Toda a sociedade precisa rever o seu papel.
IHU On-Line – Como a senhora analisa os limites e possibilidades da politização do consumo?
Fátima Portilho – A questão que eu trabalho em relação a este assunto é, em primeiro lugar, tentar entender quando, porque e como o meio ambiente passou a ser inscrito nas práticas de consumo. Isso porque, até então, a questão ambiental estava restrita à esfera da produção. Era nas indústrias que os problemas ambientais aconteciam. Não se falava muito dos impactos ambientais a partir do consumo. A partir mais ou menos da década de 1990, cresceu a percepção de que as práticas de consumo têm também um impacto ambiental grande. Não que a produção e o consumo sejam esferas separadas, pelo contrário, elas são interdependentes. Uma não existe sem a outra. Existem impactos ambientais na esfera da produção que devem ser resolvidos nessa esfera. Mas há também impactos ambientais causados na esfera do consumo que devem ser resolvidos com conscientização, com campanha, com politização do consumo, ou seja, tornar o consumo um ato político. A participação política é trazida para dentro do supermercado, por exemplo, assim como para dentro da minha casa. É o que eu chamo de agenda política da cozinha. Por que não pensar nessa agenda que serve para a vida diária, para a vida privada?
IHU On-Line – O discurso ambientalista mundial mudou nos últimos anos. De que forma a senhora vê a participação desse discurso na construção social?
Fátima Portilho – Uma das mudanças no discurso ambientalista foi justamente a mudança discursiva da produção para o consumo. Não que os ambientalistas não se preocupem com a poluição na produção, mas têm se preocupado mais com o impacto ambiental na esfera do consumo. Esta foi uma mudança importante no discurso ambientalista. Por conta disso, diversas políticas ambientais também mudaram. O rodízio de carros em São Paulo é um típico exemplo de política ambiental na esfera do consumo. Quando ele foi decidido, a idéia era que o governo deveria estimular, fiscalizar e punir de maneira com que menos carros fossem colocados nas ruas por dia, fazendo com que a qualidade do ar melhorasse na cidade.
IHU On-Line – Como a senhora compara a visão que a sociedade tinha dos profissionais do lixo – garis e catadores – e a que tem hoje?
Fátima Portilho – Os profissionais do lixo sempre foram estigmatizados. O lixo é associado à morte, e as profissões ligadas à morte são bastante estigmatizadas. Ninguém quer ficar perto de um catador ou gari. O que acontece é que, com a ambientalização da sociedade, os resíduos sólidos passam a ser considerados de valor. Aos poucos, a nossa visão vai mudando em relação a esses profissionais do lixo. Mas isso não é algo tão simples e romântico, pois, como disse, eles ainda são estigmatizados. Grande parte dos programas de coleta seletiva ainda não aproveita o catador, pois é preciso pensar em dar melhores condições de vida e trabalho para esses profissionais. O Brasil comemora uma estatística boa em termos de reciclagem de materiais, mas, por outro lado, não há o que comemorar em relação à qualidade de vida dos catadores. A melhoria ambiental e social ainda está distante uma da outra.
IHU On-Line – O que devemos mudar nos nossos hábitos de consumo para que possamos contribuir para diminuir os efeitos do aquecimento global?
Eliana Saraiva – Devemos considerar o ciclo de vida de um produto do momento em que é concebido até sua destinação final. Por isso, o ideal é que pensemos desde o momento da concepção, ou seja, precisamos pensar bem antes de produzir ou consumir. Precisamos cuidar, no dia-a-dia, dos nossos alimentos, no que diz respeito à escassez, ao preço. É preciso que mudemos muitos hábitos e isso deve fazer parte da educação. Devemos iniciar com as crianças, porque para nós, adultos, essa mudança de hábito talvez seja um pouco difícil. Por isso, existe tanta confusão em relação ao que devemos ou não mudar, se podemos ou não nos valer das novas tecnologias. É um começo difícil, mas é a solução para as mudanças.
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Consumo e cultura: Agenda política da cozinha. Entrevista especial com Fátima Portilho e Eliana Saraiva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU