21 Agosto 2008
Uma importante reflexão acerca do papel da Igreja hoje na vida das pessoas é o que faz Paulo Suess na Entrevista do dia de hoje. Suess foi conferencista do evento De Medellín a Aparecida: marcos, trajetórias e perspectivas da Igreja Latino-americana e foi entrevistado pessoalmente pela IHU On-Line. Durante quase uma hora de conversa, ele analisou também a Teologia da Libertação, o espaço ocupado por Deus na sociedade atualmente e sobre a campanha da Fraternidade do próximo ano. O teólogo falou ainda sobre a revisão da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, e Fernando Lugo, que acaba de assumir a presidência do Paraguai. “Eu vejo a Venezuela, a Bolívia, o Equador e o Paraguai como Dom Quixotes lutando contra os moinhos de vento, ou seja, eles estão lutando com suas lanças contra um muro muito forte e, embora pareça que não vão conseguir quebrá-lo, suscitam uma esperança de que é possível através das rachaduras fazer com que esse muro caia um dia”, disse ele.
Paulo Suess nasceu na Alemanha. Em seu país, obteve o título de doutor em Teologia Fundamental pela Universidade de Münster. Desde 1979 é Assessor Teológico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Em 1987, fundou o Departamento de Pós-Graduação em Missiologia em São Paulo. Atualmente, é professor na Pós-graduação em Missiologia do Instituto São Paulo de Estudos Superiores (Itesp) e membro da Equipe Executiva do Conselho Missionário Nacional.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Numa análise do percurso da Igreja da Conferência de Medellín aos dias de hoje, o que o senhor destaca como os principais marcos?
Paulo Suess – Temos muitos setores diferentes dentro da Igreja Católica, portanto é difícil analisá-la, neste momento, como um todo. Cada setor caminha segundo a sua sina. Em Aparecida [1], isso ficou muito claro: havia cinco setores católicos bem diferentes. Então, como eu disse, cada um se desenvolveu segundo a sua sina, a partir de pastorais de libertação, da opção pelos pobres, com as comunidades de base etc. É importante que todos esses setores sejam guiados pela cruz, mas no próprio documento de Aparecida nenhuma vez apareceu a palavra cruz, só na quinta edição é que ela esteve presente. No entanto, já no primeiro documento, a palavra alegria foi escrita quase 40 vezes. Alegria sem a cruz não tem como acontecer. A cruz é o eixo mais importante.
Alguns setores estão crescendo mais porque têm o povo ao seu lado. O processo de conscientização do povo leva tempo e é doloroso. E, como a realidade é difícil, muitos dizem que querem esquecer a realidade e por isso vão à Igreja do Padre Marcelo Rossi [2], por exemplo, para cantar, ser abençoado com a água benta e ver um padre “bonito”. Outros setores estão mais preocupados em fazer a sua carreira, fazem articulações com Roma e acreditam que é mais importante fazer o que Roma quer do que fazer o que os pobres precisam. Há também os bons pastores que sabem o que os pobres precisam, mas não têm coragem de dizer, porque não têm essas articulações intelectuais. Então, todos esses setores caminharam de uma certa maneira e estão aí o tempo todo. Às vezes, um que era minoritário se tornou mais hegemônicos, como os movimentos. O que era hegemônico da Teologia da Libertação se tornou minoritário, mas todos estão aí.
IHU On-Line – A Teologia da Libertação [3] é muito forte aqui na América Latina [4], fazendo sua opção pelos pobres. Como o senhor acha que a Europa e os Estados Unidos, que são países mais ricos, vêem a Teologia da Libertação?
Paulo Suess – Aqui, de uma certa maneira, se segmentaram algumas coisas básicas da Teologia da Libertação, como a opção pelos pobres e com os pobres, mas a participação dos pobres na Igreja foi uma coisa que não cresceu. Na Europa não existe uma voz. Lá, nós temos muitos setores solidários que vieram peregrinar aqui no Brasil para respirar, para ver a Igreja mais perto do povo. Aqui encontraram setores que estão mais articulados com o povo e com o trabalho social e assim puderam voltaram para sua Igreja renovados. Então, a Europa tem pequenos grupos que estão conosco no Fórum Mundial Social [5], por exemplo. Tem muita gente, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, que acredita que outro mundo é possível e está trabalhando para isso.
IHU On-Line – O que o senhor considera como desafios principais para a Igreja latino-americana de hoje?
Paulo Suess – Acho que precisamos perder o medo. A Igreja tem medo. A primeira palavra que Jesus disse é: “Não tenhas medo”. É aí que todos os problemas estão se concentrando, pois a Igreja tem medo dos pobres, medo de que os pobres entrem na Igreja e assumam o poder. Ela tem medo dos índios também. Nós precisamos de um pluralismo nas celebrações, de um pluralismo de teologias, de um pluralismo de pastorais para os diferentes grupos. Precisamos construir uma Igreja Pentecostal que responda a isso, precisamos descentralizar a cultura, mudar os ministérios para atingir todos os grupos.
Ela tem medo também em relação à questão da mulher na Igreja e ainda em relação à questão da sexualidade. Há um sedentarismo por parte da Igreja que fica lá sentada numa sede. Ora, Jesus nunca falou em sede. Tudo o que nos afasta, de certa maneira, de Jesus e do Evangelho está relacionado ao medo. Por um lado, a Igreja diz: não se constrói uma comunidade senão em torno da eucaristia. Mas, por outro lado, ela não cria condições para isso. As comunidades não têm eucaristia por causa dessa estrutura ministerial. Ela precisa ser assim? Não precisa ser assim; pode-se mudar, mas não querem. Em Aparecida nem se falou desses ministérios que precisam de transformação, porque Roma não quer falar disso. Assim, as seitas estão crescendo, estão invadindo as periferias. Eu digo às vezes que Jesus Cristo está hibernando nas seitas porque na Igreja Católica não tem espaço.
Estamos nessa situação um pouco difícil, porque algumas instâncias acham que essa é uma crise momentânea e que depois a Igreja vai crescer novamente e teremos ministérios suficientes. Mas eu duvido muito, porque mudou toda a estrutura familiar também. Não vamos mais ter dez filhos por casal, que, por sua vez, separa três para a vida religiosa. Não é mais o caso. Este pessoal que tinha tantos filhos vivia no campo e hoje vive na favela, lutando para sobreviver e não tem mais condições dessa vida regrada.
IHU On-Line – Diante dessa nova realidade, qual é o espaço que Deus ocupa na nossa vida?
Paulo Suess – Deus ocupa o espaço que nós lhe damos, Ele entra onde nós abrimos as portas. Ele está nas frestas do capitalismo e do neoliberalismo. De certa maneira, Deus está em tudo, em todas as situações, mas concretamente só entra onde nós o deixamos entrar. Nós não percebemos os sinais do tempo que Ele falou. A primeira grande crise foi o terremoto em Lisboa que aconteceu em 1755, quando cem mil pessoas morreram e as Igrejas caíram, mas os prostíbulos ficaram em pé. O terremoto aconteceu no dia 01 de novembro, ou seja, dia de todos os santos. Então, esse negócio da providência ficou muito abalada a partir disso. Depois tivemos as grandes matanças do século XX...
Então, onde está Deus? Ele não está presente para intervir onde nós atuamos mal. A pergunta de Jó continua e nós cristãos ainda temos perguntas a fazer a este Deus. O niilismo [6] e o ateísmo não têm mais nem perguntas, assim como não têm ajuda um para com o outro. Em nome das perguntas que nós mantemos em aberto apoiamos os pobres, corremos atrás para sanar o sofrimento. Eu prefiro ter perguntas, então. Os niilistas e ateístas estão cada um cuidando de si, criando sociedades anônimas em busca de lucro para existirem para si mesmos.
IHU On-Line – A CNBB propôs como tema da Campanha da Fraternidade 2009 a “Segurança Pública” e como lema “A paz é fruto da Justiça”. Como o senhor vê esta proposta?
Paulo Suess – Eu vejo de forma positiva. Precisamos fazer essa justiça e reconheço que hoje é muito difícil fazer justiça porque estamos todos dentro de um sistema injusto. Parte da violência que existe é fruto da injustiça. E isso não é uma questão apenas para ser tratadas com os pobres, há muitos ricos envolvidos também. É a violência que faz crescer o medo. Precisamos criar uma nova ética, pois sem ela não conseguiremos criar justiça e cada um pensará na sua própria vantagem. O pessoal de 1968 dizia: “Para nós nada, para o povo tudo”. Essa é uma visão verdadeiramente evangélica. Hoje, o pensamento vigente é: para nós tudo e para o povo um pouquinho. A ética tem muitas dimensões: cultural, política, regional universal... Precisamos que a ética se desenvolva em várias dimensões pensando numa justiça universal. Os indígenas [7] resolvem seus problemas de forma local, mas precisam configurar a sua ética de forma universal, porque precisam configurar sua ética de forma compatível com outros grupos.
IHU On-Line – E, falando em índios, como o senhor vê a problemática da homologação de terra indígena Raposa Serra do Sol? Qual é a maior dificuldade para demarcá-las?
Paulo Suess – Essa questão estava decidida. Há 30 anos, os índios lutaram e encaminharam tudo dentro do seu direito. De repente, aparece um pequeno grupo de quatro pessoas que se apropriaram dessa terra e colocaram os índios numa situação injusta e criaram uma justiça que não é de direito. Agora, eles mobilizam a opinião pública, dizendo que utilizam as terras para produzir enquanto os índios não estão produzindo, que há muita terra, que existe problema de fronteiras. Ou seja, estão inventando coisas para legitimar a sua ilegalidade. Um juiz que tem pouca experiência antropológica afirma, com isso, que a terra é realmente muito grande, que seria melhor formar ilhas. Querem fazer em Raposa Serra do Sol o que fizeram no Mato Grosso do Sul com os Kaiowás-Guarani, onde há ilhas, há suicídio e há miséria social. Um grande problema foi criado com essas ilhas que não sustentam ninguém.
Há uma certa incompreensão histórica por parte dos militares, pois eles vieram todos um pouco na linha do positivismo. Então, o índio para eles devem ser civilizados, ou seja, os militares acreditam que não devem matar os índios, que devem protegê-los, no entanto crêem também que o índio não tem futuro como índio e, desta forma, precisa ser civilizado, precisa se tornar como nós e se inserir na sociedade. Esse é o grande erro.
IHU On-Line – Neste mês, o Supremo Tribunal Federal (STF) poderá julgar a ação que questiona a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Como o CIMI está influenciando nesta decisão?
Paulo Suess – Nós não temos acesso aos juízes e à justiça, mas acompanhamos esse processo durante todos esses anos. Sofremos com esses índios. Tenho admiração por eles, porque há 30 anos tomaram uma decisão: a terra deles já tinha sido invadida e eles eram cooptados pela cachaça. O invasor distribuía cachaça e conseguia tudo o que queria dos índios. Um dia, esse povo decidiu que não aceitariam mais a cachaça em seu território. Foi algo extraordinário. Alguns índios queriam continuar e não permitiram. A ética e a moral contribuíram para a decisão, mas o mérito é da cultura deles. A Igreja ajudou muito lá em Roraima, inclusive entregou seus bens para os índios administrarem. Nós acompanhamos esse processo e sofremos muito. Finalmente obtiveram êxito e agora esse juiz se coloca a favor dos invasores. Esse é o mesmo juiz que acabou de soltar esse mega ladrão, Daniel Dantas [8]. O mínimo que posso ter em relação a ele é suspeita, pois não há muita objetividade nessa decisão sobre Raposa Serra do Sol.
IHU On-Line - Recentemente, numa decisão histórica, o papa Bento XVI concedeu uma dispensa especial do ministério sacerdotal ao bispo e presidente eleito paraguaio, Fernando Lugo [9], devolvendo-lhe a um estado laico. O que significa isto para a Igreja católica com relação aos ministérios ordenados?
Paulo Suess – Cada situação é uma situação. Eu conheço o bispo Lugo dessa caminhada. Ele é um herói, porque depois de 40 anos desse Partido Colorado [10] no poder alguém quebrou este monopólio ditatorial. Lugo os derrubou com um partido com poucos recursos, com autoridade moral, se articulando a partir da esperança do povo e por esse motivo é considerado um herói. Há situações que estão fora de certas normas burocráticas, pois normalmente não é para o bispo se tornar presidente. No entanto, há situações como esta, em que Lugo foi o único que conseguiu quebrar esta ditadura. Ele precisou se unir ao único partido de oposição aos colorados, mas é um partido de direita. Creio que ele não vai vencer as batalhas que tem que enfrentar de uma forma fácil, mas quebrar essa ditadura já foi um ato heróico.
IHU On-Line – A partir da experiência de Lugo junto à Igreja, o que podemos esperar de seu governo?
Paulo Suess – Ele entende a América Latina, não apenas o Paraguai. Ele vem de uma família ligada tradicionalmente à política. Ele não usará seu cargo para enriquecer. Lugo tem ética. Se ele vai conseguir controlar seus subordinados é outra questão. Porém, é preciso colocá-lo nessa dimensão história de quebrar o monopólio para utilizá-lo como exemplo. De um dia para o outro, não se cria uma armada ética, mas o povo quer as coisas de imediato, por isso ele precisa mostrar alguma coisa em um período curto. Eu vejo a Venezuela, a Bolívia, o Equador e o Paraguai como Dom Quixotes lutando contra os moinhos de vento, ou seja, eles estão lutando com suas lanças contra um muro muito forte e, embora pareça que não vão conseguir quebrá-lo, suscitam uma esperança de que é possível através das rachaduras fazer com que esse muro caia um dia.
Notas:
[1] Sobre a Conferência Episcopal de Aparecida, a Revista IHU On-Line dedicou a edição 224, de 20-06-2007, intitulada Os rumos da Igreja na América Latina a partir de Aparecida. Uma análise do Documento Final da V Conferência.
[2] Marcelo Mendonça Rossi é formado em Educação Física e sacerdote católico brasileiro que tornou-se um fenômeno de mídia no final dos anos 1990. Ficou muito conhecido pela forma como adota danças e coreografias típicas da Renovação Carismática Católica (RCC) e pela publicidade dos trabalhos (CDs, DVDs, cinema e televisão).
[3] Teologia da Libertação é o título da edição 214 da Revista IHU On-Line de 02-04-2007.
[4] Quatro edições da Revista IHU On-Line foram dedicadas à América Latina: a edição 25, de 08-07-2002, teve como tema Os Jesuítas e a América Latina; a edição 176, de 17-04-2006 teve como título América Latina: um giro à esquerda?; América Latina e o pós-neoliberalismo foi o nome da edição 180, de 15-05-2006; e, em 26-03-2007, a edição 213 foi nomeada como América latina em movimento. algumas notas.
[5] Três edições da Revista IHU On-Line trataram o Fórum Social Mundial. São elas: edição 17, Repercutindo o II Fórum Social Mundial, de 13-05-2002; edição 89, Fórum Social Mundial Sinais, desafios e contradições do outro mundo possível, de 12-01-2004; e a edição 129, Fórum Social Mundial: Indagações de um novo século, de 02-01-2005.
[6] A edição 197, de 25-09-2006, teve como tema de capa A política em tempos de niilismo ético.
[7] Em busca da terra sem males: os territórios indígenas foi o título da edição 257, de 12-05-2008, da Revista IHU On-Line.
[8] Daniel Valente Dantas é um banqueiro brasileiro. A Polícia Federal prendeu de forma preventiva, no dia 8 de julho de 2008 na operação denominada Satiagraha que começou a investigar desdobramentos do caso mensalão, mas que se estendeu a fatos anteriores, vindos desde o Governo Fernando Henrique Cardoso. Daniel Dantas, dono do grupo Opportunity, foi preso pela Polícia Federal cerca de três meses depois de ter vendido suas participações na Brasil Telecom e Telemar (Oi) por cerca de 1 bilhão de dólares, num dos maiores negócios do mercado de telecomunicações brasileiro, tendo nesse negócio simultaneamente conseguido fazer um acordo com os fundos de pensão que o livrou de todos os processos então que existiam contra ele. Sobre o caso, você pode acessar as entrevistas que a IHU On-Line realizou: Operação Satiagraha e Gilmar Mendes: `Ele não tinha competência para decidir aquele habeas corpus`. Entrevista especial com Douglas Fischer, de 23-07-2008; Fascismo: moralismo faz a política ficar de fora da discussão. Entrevista especial com Luiz Werneck Vianna, de 20-07-2008; e `Gilmar Mendes não tinha condições para ser Ministro do Supremo Tribunal Federal`. Entrevista especial com o jurista Dalmo Dallari, de 17-07-2008.
[9] Fernando Armindo Lugo de Méndez é um bispo católico, ex-ativista político e presidente do Paraguai. Em 1970, ingressou no noviciado dos Missionários do Verbo Divino. Paralelamente, realizou seus estudos superiores na Universidad Católica Nuestra Señora de la Asunción, na capital do país, onde se licenciou em Ciência da Religião. Foi ordenado sacerdote católico em 1977 e posteriormente transferiu-se para o Equador a fim de trabalhar como missionário na diocese de Bolívar, com o monsenhor Leonidas Proaño (1910-1988), um dos expoentes da Teologia da Libertação. Foi membro da Conferência Episcopal Paraguaia e da equipe de Reflexão Teológica do Celam – Conselho Episcopal Latino-americano. Em 2004, sem divulgar as razões, a Igreja o aposentou do cargo – hoje seu título é o de "bispo emérito". Muitos no Paraguai acreditam que isso se deva à sua militância política.
[10] Asociación Nacional Republicana, mais conhecido como Partido Colorado, é um partido político paraguaio de tendência conservadora e nacionalista fundado em 11 de setembro de 1887.
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"Deus ocupa o espaço que nós lhe damos, Ele entra onde nós abrimos as portas". Entrevista especial com Paulo Suess - Instituto Humanitas Unisinos - IHU