04 Junho 2008
“Quando analiso a Veja, percebo que esse tipo de controle, surgido no fim do século XVIII, ainda está sendo exercido pelas grandes mídias”, conclui Elissandro Martins Inácio, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, sobre a análise discursiva que realizou do controle produzido pelas capas da Revista Veja. Elissandro faz uma retrospectiva da luta pela legitimidade dos jornais e traça um perfil sobre o discurso proferido pela revista mais polêmica e com maior número de assinantes no país. Como essa contradição se dá? Para ele, “a maior parte desses leitores, talvez, não perceba que a Veja produz seu discurso a partir da linguagem do espetáculo”. O professor fala ainda sobre o "dossiê Veja", produzido por Nassif. “No jogo do verdadeiro e do falso criado pelas denúncias de Nassif, expõe-se a fragilidade nas relações estabelecidas entre leitores e veículos encarregados de produzir informações. Essa fragilidade não é algo novo...”, diz.
Elissandro Martins Inácio é graduado em Letras, pela Universidade Federal de Goiás, e mestre em Lingüística, pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atua como professor da Fundação Universidade Federal do Tocantins.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como você analisa o controle discursivo feito tanto nas manchetes quanto nas imagens das capas da revista Veja?
Elissandro Martins Inácio – Durante a Revolução Francesa, a Modernidade, em sua aurora, assiste à luta revolucionária pela legitimidade nos jornais impressos. Nesse período, os jornais não se limitavam a ser apenas acessórios da Assembléia Nacional e nem muito menos a ser reflexo do ânimo do público. Tratava-se, afinal, de ver as matérias jornalísticas sobre a Assembléia como uma forma de controle que visava conduzir os deputados em seu trabalho e impedir resistências externas a essa Assembléia tanto pelo “povo” desinformado quanto pelas forças da reação aristocrática.
Quando analiso a Veja, percebo que esse tipo de controle, surgido no fim do século XVIII, ainda está sendo exercido pelas grandes mídias. Não se trata de ver atualmente nas mídias o mesmo tipo de controle do período revolucionário, mas de ver um controle muito semelhante àquele. Este controle presente nas grandes mídias ganhou nova forma. Trata-se, então, de descrever esse controle para resistir ao seu exercício pelos veículos de mídia. Quando começou a circular em 1968, a Veja surgiu dentro da “sociedade do espetáculo” discutida por Guy Debord [1]. Na sociedade do espetáculo, pode-se ver a forma do espetáculo investir em veículos de comunicação como a Veja para coordenar as relações de poder entre a revista e seus leitores. Penso o poder como microfísico na esteira de Michel Foucault [2].
Nesse sentido, a revista tem em seu horizonte conduzir as condutas de seus leitores, modificando o campo de informações deles, ou seja, produzindo saber. É importante deixar explícito que o leitor também exerce poder sobre a revista que deve produzir informações para seduzi-lo, pois não se pode deixar de pensar no fator econômico, ou seja, ela tem que ser vendida. Explico que a relação entre leitor e revista é mediada pela lógica do espetáculo. Ao estar imersa na sociedade do espetáculo, a Veja exercerá o controle por meio do espetáculo. A linguagem do espetáculo visa chamar a atenção a qualquer custo. Por isso, pode-se ver, nas capas da Veja, a inserção da vida privada no espaço público como forma de controle. Nas eleições de 2002, as práticas pessoais do político Enéas, pintar a barba e dormir de calça e camisa, foram expostas aos leitores da Veja para que recusassem políticos de práticas consideradas démodé em oposição a práticas fashion as quais são compartilhadas pelos leitores.
A exposição da vida privada no espaço público é um recurso bastante aceito neste momento em que programas de reality shows como o Big Brother fazem muito sucesso. Mas o efeito desse recurso deve ser questionado. Tomei a liberdade de fazer uma análise cultural da revista Veja. Não me preocupei muito com o rigor teórico exigido quando se escreve uma dissertação. A maneira como os discursos, na Veja, foram formulados constitui sujeitos desprovidos de senso crítico em relação às práticas políticas, já que o espetáculo esvazia as possibilidades de reflexão, pois quase tudo é dado em forma de um entretenimento ininterrupto. Assim, as resistências vão diminuindo drasticamente, e o discurso da revista e das grandes mídias se impõe. A exposição cotidiana a um discurso espetáculo torna-o aceito pelo fato de se estabelecer como hábito. Meu trabalho é uma forma de resistir e recusar o jogo espetacular que produz o verdadeiro e o falso, por exemplo, sobre Política. Trata-se de uma maneira de dizer que não suportamos mais que o poder seja exercido por meio do espetáculo. Além disso, a Veja não tem o hábito de dar visibilidade às cartas dos leitores que resistem ao seu discurso, o que pode ser visto como uma atitude fora dos padrões de democracia defendidos pela própria revista. Em certo sentido, o que escrevi pode ser estendido a outros veículos de comunicação das grandes mídias.
IHU On-Line – Qual sua opinião sobre o "dossiê Veja", publicado por Luis Nassif [3]?
Elissandro Martins Inácio – Na estrutura social, há, entre os sujeitos, lutas, afrontamento, relação de força, situação estratégica. Não se pode pensar que a Veja exerce poder sobre seus leitores numa relação unívoca, unilateral. Mas deve-se perceber que há resistências que surgem no interior das relações de forças. O "dossiê Veja", publicado por Luis Nassif, pode ser visto como resistência às práticas discursivas da revista. No jogo do verdadeiro e do falso criado pelas denúncias de Nassif, expõe-se a fragilidade nas relações estabelecidas entre leitores e veículos encarregados de produzir informações. Essa fragilidade não é algo novo se pensarmos no caso Orson Welles [4] que noticiou, com imensa realidade, a chegada de marcianos à Terra pela rádio CBS no dia 1º de novembro de 1938, deixando milhares de pessoas em pânico.
Trata-se, no caso específico de Veja, de perceber que seu discurso produziu a própria realidade de que fala. Nesse caso, podemos perceber que é bastante perigoso que o discurso da revista possa ser aceito como verdade por muitas pessoas. Além disso, deve-se observar com cuidado o que é dito no discurso da Veja, pois se pode fazer aparecer seus preconceitos. As atitudes da revista se ligam a interesses econômicos; por isso, não se deve deixar de vê-la como uma instituição imersa no sistema capitalista. É com essa formação capitalista que a revista atinge um grande público que tomará conhecimento da história e da cultura de nosso país por meio de suas páginas, onde os hábitos, as modas, as personagens de cada momento e os assuntos que mobilizaram grupos de pessoas se tornam visíveis. As denúncias feitas por Nassif mostram que os interesses da Veja não são os de todos.
Isso é positivo, pois dá visibilidade à resistência que a revista torna invisível em sua seção “Carta dos Leitores”. Por outro lado, não podemos nos esquecer de que o "dossiê Veja" surge com características bem semelhantes da linguagem do espetáculo, ou seja, chamar a atenção e produzir, em torno de si, polêmica. Se nos perguntarmos quem sairá ganhando com isso, talvez não tenhamos resposta. Parece-me que precisamos pensar formas de resistência que não se dêem no próprio jogo da sociedade do espetáculo, mas em outras esferas. Nesse sentido, tentei, em meu trabalho, fugir dessa lógica do espetáculo.
IHU On-Line – A Veja é uma das revistas mais repudiadas no meio jornalístico dito livre ou alternativo, ao mesmo tempo em que possui mais de um milhão de assinaturas. A partir do teu trabalho, como você vê a recepção dela?
Elissandro Martins Inácio – Em meu trabalho, a minha preocupação principal não é a recepção de Veja. Trata-se de descrever como o espetáculo se investe na revista para controlar os leitores. O objetivo é mostrar que o que vemos por meio do espetáculo pode ser visto de outra maneira. Retomando o "dossiê Veja" de Nassif, pode-se tomá-lo como exemplo para que se perceba que o acontecimento discursivo na revista poderia ser dito de outra forma. Se os leitores tiverem em mente que o que está dito na Veja é uma possibilidade entre outras, talvez serão um pouco mais livres em relação ao discurso dela.
A maior parte desses leitores, talvez, não perceba que a Veja produz seu discurso a partir da linguagem do espetáculo, prendendo-os em seu próprio momento histórico. Para recusar essa linguagem, seria necessário comparar as práticas das grandes mídias que vemos hoje com outros momentos para reagirmos a elas. Assim, veríamos que o espetáculo como mediador das relações nas grandes mídias não existe desde sempre, mas é algo recente entre nós.
IHU On-Line – Para você, o que significa esse sucesso da Veja?
Elissandro Martins Inácio – Mesmo muito questionada, a Veja se mantém entre as quatro revistas mais vendidas no mundo. Ocupa uma posição privilegiada para um veículo de informação, pois as revistas de TV, em outros países, geralmente, vendem mais do que as de informação. Não é aconselhável atribuir ao sucesso da Veja uma única causa. Penso que seria necessário um estudo que pudesse explicar melhor por que a revista é tão bem aceita entre a classe média e outros leitores.
IHU On-Line – Como você analisa a qualidade da imprensa brasileira de hoje?
Elissandro Martins Inácio – Se pensarmos no caso Isabella Nardoni, podemos discutir, em parte, a qualidade, principalmente, dos grandes veículos de comunicação da imprensa brasileira. Trata-se de ver, nesse caso, a produção de um grande espetáculo para chamar a atenção. O assassinato da menina ganhou status de uma superprodução que não deixa a desejar se comparada a uma novela global de grande sucesso. A imprensa mobilizou boa parte do país em torno desse assassinato. Não se falou de outra coisa no estilo “Quem matou Odete Roitman?”. Fomos bombardeados com informações dadas a conta-gotas e insistentemente repetidas.
Pelo fato de sofrer interferência, o assassinato da menina, como notícia do dia, não é novo. Sua constituição se deve a um script jornalístico de papéis pré-definidos para a vítima, a família e amigos da vítima e da família, para os suspeitos e as famílias dos suspeitos, apuração das causas por meio do trabalho policial, atribuição das responsabilidades humanas e eventuais testemunhas do assassinato. Esse script é atualizado pelo caso Isabella. A imprensa discute o caso enquanto rende audiência. Durante o período em que esse caso é discutido, podemos ver o efeito nocivo do espetáculo. Boa parte das pessoas passa a se enquadrar nos estereótipos criados pela imprensa. Assim, algumas dessas pessoas podem ser solidárias à mãe de Isabella, pensando, por exemplo, que o que aconteceu com a menina poderia acontecer a um(a) filho(a) delas também. Além disso, o fato de o pai ser suspeito desestabiliza o discurso que diz que o pai ama seu filho. Já o papel da madrasta é bem conhecido entre nós por meio das literaturas infantis.
Tudo isso provoca indignação, o que leva as pessoas a acompanharem atentamente as notícias, esperando alguma notícia nova que possa levar ao desfecho do caso. Nesse sentido, podemos perceber o espetáculo como fim em si mesmo, ou seja, nenhuma mudança é proposta, por exemplo, nas leis ou uma mudança de qualquer outra natureza. Além disso, expõe a fragilidade de alguns “espectadores”, pois dizem indignados: “Não acredito que, em nossa sociedade, aconteça uma morte como a da menina Isabella!”. Ao dar visibilidade ao caso Isabella, a imprensa torna invisíveis as violências praticadas pelos pais em outras camadas sociais. Empenhando-se nesse caso, a imprensa não soluciona o problema da violência contra crianças. Portanto, não há uma explicação para que ele ocupe tanto espaço na imprensa. Não nos questionamos sobre isso e nem nos perguntamos: quais motivos levaram a imprensa a eleger o caso Isabella como algo tão importante para a nossa sociedade? Enfim, temos que lutar contra a lógica do espetáculo nos grandes veículos de comunicação porque não a suportamos mais.
IHU On-Line – Que percepção você tem acerca dos blogs? Eles estão sendo utilizados hoje tanto pela mídia alternativa quanto pelos grandes portais...
Elissandro Martins Inácio – Os grandes veículos de comunicação impressos perceberam a necessidade de fazer parte do mundo virtual ao se defrontarem com as perdas de receita. Procurando meios de manter sua competitividade no ambiente de informação em transição, a internet foi vista como um lugar que permitia fornecer informação atualizada de formas mais inovadoras e lucrativas. Entre essas formas inovadoras, estão os blogs. Estes, ao serem partilhados tanto pela mídia alternativa quanto pelos grandes portais, tornam-se meios de interação eficientes para se medir os efeitos das informações. Mas torna-se necessário separar a função dos blogs dos grandes portais e a dos blogs da mídia alternativa. Aqueles não escapam a seguirem uma lógica dos interesses capitalistas dos grandes grupos de comunicação e estes fazem um contraponto a esses interesses por meio de uma crítica que cobra, acima de tudo, ética.
Outra função importante dos blogs da mídia livre é demonstrar que os grandes portais tentam homogeneizar os interesses, dando a impressão de que todos os partilham. Além disso, esses blogs tornam visível a resistência ao monopólio das grandes corporações. Por outro lado, a grande quantidade de blogs pode causar um problema de credibilidade às críticas aos grandes portais, pois a fragmentação de opiniões pode levar a uma análise superficial da informação. Pode-se enfrentar também um desvio das críticas para questões pessoais, o que exige uma habilidade de quem está procurando outras possibilidades para os discursos dos grandes portais. Já os grandes portais devem ser exigidos quanto a questões éticas, pois não mudarão sua prática de defender seus interesses dando a impressão de que são interesses de todos.
Nos seus blogs, podemos esperar atitudes semelhantes aos das grandes mídias impressas, que não dão voz às resistências que criticam negativamente suas práticas jornalísticas sensacionalistas. Diante disso, os integrantes da mídia livre devem se organizar para tentar um espaço alternativo mais amplo de discussões e cobrar mais apoio do governo ao jornalismo alternativo. Isso possibilitaria um enfretamento mais direcionado aos grandes portais.
IHU On-Line – Para você, que medidas são imprescindíveis quando se pensa em democratizar os meios de comunicação?
Elissandro Martins Inácio – Quando se trata de democratizar alguma coisa num país de extensão territorial tão grande e população tão numerosa como o Brasil, não se consegue fechar a questão, pois os interesses dos envolvidos na discussão são bem diferentes. As grandes mídias que dominam o mercado são regidas pela lógica do grande capital. Quando se trata de dividir fatia de mercado, não estão abertas a qualquer diálogo que vise discutir democracia. Por isso, deve-se cobrar a ação democrática do governo, ou seja, exigir que o mercado seja regulamentado também em favor dos pequenos grupos de comunicação.
Além disso, deve-se também exigir do governo apoio financeiro aos veículos de comunicação alternativo, principalmente àqueles que estejam envolvidos com projetos sociais que promovam desenvolvimento local. Atualmente, credita-se bastante confiança no poder das rádios comunitárias para melhorar o envolvimento da população em questões educacionais. Outras mídias livres também podem se envolver na divulgação de notícias menos “contaminadas”, promovendo debates que possam despertar as comunidades para problemas locais. Isso seria bastante positivo para politizar mais os integrantes dessas comunidades.
Notas:
[1] Guy Debord foi um dos pensadores da Internacional Situacionista e da Internacional Letrista e seus textos foram a base das manifestações do Maio de 1968. Em termos gerais, as teorias de Debord atribuem a debilidade espiritual, tanto das esferas públicas quando da privada, a forças econômicas que dominaram a Europa após a modernização decorrente do final da Segunda Guerra Mundial. A pesquisa desenvolvida por ele está fundamentada nos trabalhos de Karl Marx. Para conceber o atual estado do desenvolvimento capitalista Debord se utiliza da noção de valor, conceituada por Marx no primeiro capítulo do livro O capital. O ponto central de sua teoria é que a alienação é mais do que uma descrição de emoções ou um aspecto psicológico individual.
[2] Michel Foucault foi um filósofo e professor da cátedra de História dos Sistemas de Pensamento no Collège de France de 1970 a 1984. Foucault trata principalmente do tema do poder, rompendo com as concepções clássicas deste termo. Para ele, o poder não pode ser localizado em uma instituição ou no Estado, o que tornaria impossível a "tomada de poder" proposta pelos marxistas. O poder não é considerado como algo que o indivíduo cede a um soberano (concepção contratual jurídico-política), mas sim como uma relação de forças. Para analisar o poder, Foucault estuda o poder disciplinar e o biopoder, e os dispositivos da loucura e da sexualidade. Para isto, em lugar de uma análise histórica, realiza uma genealogia, um estudo histórico que não busca uma origem única e causal, mas que se baseia no estudo das multiplicidades e das lutas. Também abriu novos campos no estudo da história e da epistemologia. Sobre ele, a Revista IHU On-Line publicou as edições 119 e 203.
[3] Luís Nassif é um jornalista brasileiro. Foi repórter de Economia da Veja em 1974. Em 1979, transferiu-se para o Jornal da Tarde, na qualidade de pauteiro e chefe de reportagem de Economia. Em 1983, mudou-se para a Folha de S. Paulo, na qual, no fim do ano, criou a seção "Dinheiro Vivo" e o projeto do Datafolha. No início dos anos 1980, organizou com a Ordem dos Advogados do Brasil, seccional São Paulo, seminário com todas as subseções da OAB, que resultou na primeira grande campanha na justiça pelos direitos do consumidor. Em 1986, ganhou o Prêmio Esso, categoria principal, com a série de reportagens sobre o Plano Cruzado. Em 1985, criou o programa "Dinheiro Vivo", na TV Gazeta de São Paulo. No mesmo ano, saiu da Folha, retornando em 1991 como colunista de economia. Em 2006, a Folha não renovou seu contrato. Trabalha hoje em seu próprio blog. À IHU On-Line, Nassif concedeu a entrevista Lula. `Governo macunaímico como assim como foi o de FHC`, `O maior `cabeça-de-planilha` hoje é o Lula` e Cobertura das eleições. Um festival de horror.
[4] Orson Welles foi um cineasta estadunidense. Também foi diretor, roteirista, produtor e ator. Sua estréia no cinema, em filmes de longa metragem, ocorreu em 1941 com Citizen Kane (Cidadão Kane) , considerado pela crítica como um dos melhores filmes de todos os tempos e o mais importante dirigido por Welles. Neste filme foi diretor, co-roteirista, produtor e ator.
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Revista Veja: controle e espetáculo. Entrevista especial com Elissandro Martins Inácio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU