05 Mai 2008
Marianela de la Paz é uma cubana com uma história muito interessante. Filha da primeira mulher a ser ordenada bispa pela igreja anglicana de Cuba, ela foi, por sua vez, a primeira mulher a ser ordenada presbítera em 20 anos no seu país. Graduada em Medicina, seu sonho era atuar como médica missionária, atendendo aqueles que antes não tinham a chance de serem atendidos devidamente. Mas seu sonho acabou quando o marido, também médico, morreu em plena realização de seu sonho. Marianela desistiu de ser médica, mas continuou atuando como “doutora”, levando a palavra de Deus para ajudar as pessoas. “É uma vida de desafios”, diz ela, em entrevista concedida pessoalmente à IHU On-Line.
Marianela graduou-se em Teologia e logo depois veio ao Brasil fazer mestrado na mesma área. Atualmente, cursa o doutorado na Escola Superior de Teologia (EST), em São Leopoldo, e pretende finalizá-lo no próximo ano para, então, retornar a Cuba e, enfim, atuar como presbítera, lecionar Teologia e criar seu lar. Longe da família aqui no Brasil, Marianela não vê o momento de voltar ao seu país e ajudar o seu povo. “A fé em Deus é sempre maior e a Igreja é uma obra imperfeita”, refletiu.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quando e como você começou a trabalhar com Teologia?
Marianela de la Paz – A Teologia está presente em minha vida desde o nascimento, porque meu pai já era pastor da Igreja Anglicana e desde pequena sempre gostei de fazer coisas na igreja, ajudar a escola dominical etc. Meu pai sempre viveu essa coisa de espiritualidade, mas eu sempre pensei que não queria ser pastora. Achava mais interessante ser médica. Me apaixonei pela Medicina e queria voltar a exercê-la, porque sempre pensei que podia combinar as duas coisas: levar a palavra religiosa e trabalhar com a saúde. Mas não foi possível. Combinei as duas coisas por um tempo, mas não foi possível continuar.
IHU On-Line – Você foi a primeira mulher a ser ordenada presbítera em 20 anos em Cuba. O que isso representa para a sua família e para a teologia cubana?
Marianela de la Paz – Vou contar a história, mas preciso contá-la desde o comecinho. Estudei num seminário quando fiquei viúva. Quando você passa por uma perda como a minha não é fácil voltar atrás. Meu marido também era médico e, mesmo que eu tivesse o papel de salvar vidas, não consegui salvar a dele. Nesse tempo, refleti muito, até briguei com Deus. Isso é uma coisa muito boa, pois dessa briga compreendi que daquela forma eu não gostaria mais de seguir sendo médica. Meu país, naquele momento, estava atravessando uma crise muito profunda e muitos medicamentos estavam em falta no país. Desta forma, era muito difícil atuar como médica e não poder ajudar as pessoas. Foi um período bem difícil, e eu estava muito frágil emocionalmente pela perda do meu esposo. Não conseguia lidar com esses dois problemas e comecei a desconfiar de mim atuando como médica.
Quando um médico desconfia de si é a pior coisa do mundo, pois aí ele não tem mais segurança no que está falando e do que está tratando. Depois de um tempo de oração, eu fiz uma caminhada muito dolorosa, mas muito profunda e recebi uma carta do bispo dizendo que estavam precisando de uma pastora para a igreja. Com isso, pensei que essa era a resposta para todo aquele processo doloroso, que era deixar para trás tudo aquilo que eu tinha amado por tanto tempo. Eu aceitei, passei pela entrevista com o bispo, fui aprovada e comecei a atuar na igreja. Nesse sentido, eu nunca deixei de atuar como médica, porque eu ajudava as pessoas, como até hoje eu faço.
O estudo da Teologia
Depois, fui estudar Teologia. Meu trabalho de conclusão se chamou Dimensión psicológica, teologica e pastoral del dolor y sofrimiento ante la perda de un ente querido y enfermo terminal. Foi terapêutico para mim. Eu trabalhei tanto o meu caso que meu orientador me pediu para reescrever o primeiro capítulo por duas vezes. Ele me dizia que eu tinha que sair dessa dor e escrever como uma pessoa que estava dissertando sobre isso. No entanto, eu estava presa a essa dor. Foi um momento de crescimento para mim. Cheguei ao fim do curso e já tinha sido indicada para trabalhar com aconselhamento pastoral. Não apenas pela dissertação, mas pelo impacto da minha vida dentro do seminário acompanhando outros estudantes com diferentes dores. Eu posso dizer que foi a vida que me capacitou. Os livros me ajudaram a contornar um pouco tudo isso, mas foi a vida que me capacitou.
Então, fui indicada para uma bolsa de mestrado no Brasil, para onde eu vim em 1996. Nesse momento, trabalhei com atendimento espiritual para pessoas de meia idade. Eu, por exemplo, tenho hoje 44 anos e não tenho vergonha da minha idade. Quando estive tão perto da morte, dou muito graças a Deus e me sinto feliz por isso. A partir daí, nasceu a minha dissertação de mestrado. Depois disso, me avisaram que eu seria ordenada e 24 horas antes eles decidiram que não ordenariam porque tinham perdido um papel. As mulheres da minha família tinham sido muito injustiçadas, pois, mesmo tendo estudado, essa hierarquia da igreja era muito controversa. Dizia-se que ordenavam, mas não ordenavam. Eu sempre falei para Deus, através das minhas orações-conversa, que eu tinha vindo aqui não para ser “a” teóloga, mas sim para ser uma pessoa que ajuda. Inclusive, pensei que não queria ser ordenada, mas, sim, ser algo como uma teóloga free-lance (risos).
Veio, então, um bispo diferente. Sua esposa era diácona da igreja e foi uma pessoa muito especial para mim, me ajudando a ver as coisas de outra maneira. Aí, então, desisti de ser uma “rebelde sem causa” (risos) e fui amadurecendo o processo de minha ordenação. Fui ordenada, então, diácona na mesma época em que ganhei a bolsa de doutorado. Mesmo assim, minha igreja reconheceu a importância de me ordenar mesmo eu estando fora do meu país e não conseguir, desta forma, cumprir tarefas pastorais e acompanhar uma comunidade. Agora, quando voltei, em 2007, aconteceu a minha ordenação como presbítera na igreja, coincidindo com a nomeação de minha mãe para ser bispa e com o meu noivado, que, aliás, foi uma brincadeira de Deus comigo. Ele me enviou esse desafio também de casar-me no meio desta jornada acadêmica, que é uma tarefa importante para mim e minha igreja, pois ela não tem mulheres ordenadas com doutorado.
A perda de um ente querido
Meu esposo foi morto com uma pedrada. Um rapaz estava jogando pedras na beira da estrada, e uma pedra entrou pela janela do caminhão em que seguíamos. Nós estávamos voltando de um lugar, que fica nas montanhas, por onde nunca havia passado médicos. Quando descíamos a montanha, aconteceu esse acidente fatal. A pedra atingiu a região temporal da cabeça, que é uma região de ossos muito fracos e causou um edema cerebral muito grande. Ele teve duas paradas cardíacas e na terceira ele faleceu. Não era possível salvá-lo. Ele tinha 24 anos e seis meses de graduado. Foi um baque muito forte para mim. Tínhamos muitos planos e um deles era sermos médicos missionários. Ninguém havia, até então, em Cuba, falado em médicos missionários, mas a gente tinha esse sonho. Eu vi todos os nossos sonhos morrerem com ele também e não consegui seguir como médica.
A mãe do marido
Quando ele morreu, uma das coisas mais dolorosas era voltar para casa. Ele saiu de sua casa vivo e eu o levei de volta morto. Ele era o caçula da família e era muito apegado à mãe. Lembro que minha preocupação maior era como ela receberia a notícia. Eu a acompanhei por vários meses, choramos juntas. Ela era católica e com ela aprendi a querer bem a Virgem. A padroeira de Cuba é a Virgem de la Caridad del Cobre. Nós fomos ao seu Santuário, e a mãe de meu esposo falou, olhando para a Virgem: “Por que tu permitiste que eu passasse por isso? Eu te pedia por meu filho!”. Aí eu falei: “Eu acho que ela entende a tua dor, pois lembra que o filho dela foi crucificado injustamente, assim como teu filho morreu injustamente”. Esse foi o momento em que ela conseguiu se reconciliar com a Virgem.
IHU On-Line – Sua mãe foi a primeira obispa auxiliar cubana. Como ela serve de exemplo para sua vida?
Marianela de la Paz – Antes de minha mãe ser bispa, é preciso lembrar que meu pai era pastor e que, num momento complicado em Cuba, ele atendia sozinho 13 igrejas. Eu não via meu pai. Minha mãe ficou cuidando da casa, cuidando de mim e dos meus irmãos e do nosso crescimento em uma sociedade que pregava o ateísmo. Os cristãos não eram bem vistos. Minha mãe sempre contestou as perguntas que fazíamos a ela com muita sabedoria, nos mostrou sempre o caminho da fé e nos ensinou muitas coisas. Ela representa uma figura muito importante na minha vida. Desde pequena, nós somos parceiras de conversa, falamos de tudo. Ela é uma mulher muito corajosa.
IHU On-Line - Como a senhora vê a presença feminina no campo religioso latino-americano?
Marianela de la Paz – Eu não sou muito entendida, pois não conheço tão bem assim. Da Igreja Anglicana, eu entendo um pouco mais. Sei, por exemplo, que no Uruguai a ordenação de mulheres é mais limitada, que elas só chegam a diáconas, não chegam a ser presbíteras. Há, inclusive, lugares que nem ordenam mulheres. Acredito que o principal não seja ordenar mulheres, mesmo sabendo que isso é importante. O principal é saber que tipo de mulher está sendo ordenada, o que ela pode dar, que tipo de liderança ela tem. Além disso, a vocação é algo muito importante de ser tratada antes de uma mulher ser ordenada. Não é por ser mulher que ela precisa ser ordenada. Ela precisa provar que tem vocação, pois se trata de um caminho muito difícil, com muitos desafios. É preciso lembrar também que a fé em Deus é sempre maior, e a igreja é uma obra imperfeita, pois os homens são as lideranças e eles erram. Por isso, é preciso se saber muito bem que caminho é o da ordenação.
IHU On-Line – A Igreja Episcopal, que é herdeira da Igreja Anglicana, tem se caracterizado por uma grande abertura ecumênica. Você pode nos contar mais sobre esse espírito ecumênico que vive na Igreja Episcopal?
Marianela de la Paz – Ela está muito aberta porque dentro do seu ethos está o fato de as pessoas não estarem apegadas a um dogma. Isso é a primeira coisa que faz com que a gente sinta a abertura para o diálogo. Há também muito respeito pelas outras religiões. Nossa catedral é em Cuba e tem servido como espaço para encontros de diversas religiões. Não somos os donos da verdade, sabemos disso, e acredito que isso também seja importante.
IHU On-Line – Quais são seus planos para quando terminar seu doutorado e retornar a Cuba?
Marianela de la Paz – Quando eu voltar, terei vários desafios para enfrentar em relação à Igreja e a minha formação. Eu tenho um grande desafio de trabalhar num seminário tentando abrir um curso de aconselhamento pastoral, de forma mais profissionalizante. Essa é uma área muito carente e é preciso capacitar mais pessoas. Outro desafio é meu trabalho na igreja. As mulheres da igreja já me disseram para eu ir me preparando porque me querem de capelã delas. E existe, ainda, o desafio de construir um lar. Somos duas pessoas maduras sem planos de ter filhos.
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Médica e presbítera. Um testemunho. Entrevista especial com a presbítera cubana Marianela de la Paz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU