23 Fevereiro 2008
“Qual é o Brasil que nós queremos?”, é a pergunta que Dom Luiz Cappio faz ao povo brasileiro e aos movimentos sociais. Depois de várias tentativas de diálogo com o governo Lula e dois jejuns, em defesa do São Francisco e do povo que depende do rio, o bispo reflete sobre a missão dos movimentos sociais e pede: “É o grande momento dos movimentos populares se levantarem. É o grande momento das universidades, das cabeças pensantes, das igrejas, de todos aqueles que se sentem cidadãos brasileiros se levantarem. Não podemos deixar que um grupo de pessoas truculentas, com interesses duvidosos entreguem a nação (...), é o grande momento da cidadania falar mais alto, da brasilidade falar mais alto e dar gritos em defesa da nação brasileira”.
Na entrevista concedida à IHU On-Line por telefone, Dom Luiz Cappio fala sobre as reflexões feitas a partir das discussões feitas em torno do Rio São Francisco, das alternativas ao projeto de transposição, do futuro do rio e do governo Lula e do discurso que proferiu no dia 14 de fevereiro no Senado brasileiro.
Dom Luiz Cappio é Bispo de Barra, na Bahia. Esteve, por muitos anos, ao lado de Lula, até que este chegou à presidência e deu "as costas para os movimentos sociais e se torna refém de um pequeno grupo que representa o grande capital internacional e se esquece de todos os compromissos de campanha”, segundo o bispo. Para ele, sua missão como pastor é “ser a voz desse povo que não tem voz” e defender a vida deles.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Depois do primeiro jejum que o senhor fez, foi firmado um pacto entre a sociedade civil, representada pelo senhor, e pelo governo, representado pelo presidente Lula, de que só se falaria em transposição após as eleições de 2006. Mas o que aconteceu foi diferente. Devido à retomada das obras e a inexistência de diálogo com o governo, o senhor retomou o jejum em prol do Rio São Francisco, o que gerou inúmeras manifestações e reflexões. Como o senhor analisa, depois dessas reflexões que foram feitas em relação ao andamento das obras, a interação do governo e dos movimentos sociais?
Dom Luiz Cappio – Em primeiro lugar, nós podemos dizer que este gesto, independentemente de ter sido feito por mim, poderia ter sido uma outra pessoa. Foi um grito muito forte que acordou os movimentos sociais brasileiros, que até então estavam, de certo modo, adormecidos. Porque o governo Lula, que é fruto de todo um trabalho muito intenso dos movimentos sociais brasileiros, trouxe uma imensa decepção para esses grupos. Então, se criou uma certa inércia, anestesiando os movimentos sociais, que estavam parados, atônitos, sem saber como agir diante de uma expectativa tão grande e que foi frustrada. Esse gesto fez com que os movimentos de repente tomassem consciência da sua própria identidade. De repente, o pessoal acordou e entendeu que a luta continua e que não pode ficar de braços cruzados. Então, naqueles 24 dias que ficamos em Sobradinho (município do norte do estado da Bahia), foi um verdadeiro momento muito forte para todos os movimentos sociais redescobrirem a própria identidade e a própria vocação. Isso também trouxe uma união muito grande entre os movimentos sociais diante de uma causa muito grande, que é o Brasil que nós queremos. De repente, os movimentos se acordaram e se perguntaram: "Qual é o Brasil que queremos e quais são os melhores caminhos para buscá-lo?"
Tanto é que na semana que vem nós teremos uma grande assembléia dos movimentos sociais lá mesmo em Sobradinho, que se tornou palco dessa luta, para refletir isso tudo e para programar uma agenda de atividades para 2008. Entretanto, o que mais nos indigna, nos deixa contrariados e decepcionados, é a indiferença por parte do governo federal frente a tudo isso. Parece que nada está acontecendo. Então, este governo se fez pela força, pelo incentivo, pela luta dos movimentos sociais que vestiram a camisa e suaram essa camisa para ver o presidente Luis Inácio Lula da Silva na cadeira onde está sentando hoje. Aliás, eu disse a ele. Quando ele chegou lá, deu as costas para os movimentos sociais e se torna refém de um pequeno grupo, que representa o grande capital internacional. Ele se esquece de todos os compromissos de campanha, de todos os grandes compromissos históricos, como ver o povo no poder, daquela grande aspiração que todos nós tínhamos, a de ver o povo sendo sujeito da sua história e administrando o seu itinerário. De repente, tudo isso se frustrou. Um dos sinais dessa frustração foi o início das obras de transposição com a presença até do exército. Nós perguntamos: essa é a função do exército? Foi frustração em cima de frustração, motivada por um governo que se mostra totalmente autoritário, refém dos grandes interesses econômicos e dando as costas para aquele que alavancaram esse governo.
IHU On-Line – Mas o senhor consegue encontrar uma explicação que faça com que a gente possa compreender por que o governo Lula agiu dessa forma?
Dom Luiz Cappio – Nós sabemos que existe toda uma estrutura que é internacional. O domínio do econômico e dos grandes interesses corporativos da grande economia internacional têm um peso muito grande. Mas, por outro lado, o presidente Lula tinha um anteparo político muito forte. Ele tinha o apoio popular, ou seja, as costas muito bem providas de apoio por parte do povo. Se ele quisesse, poderia muito bem deixar bem claro o motivo pelo qual está no lugar que ocupa, mas optou pela situação mais fácil e se deixou se tornar refém dos grandes interesses corporativos internacionais e mais uma vez comprovou que os interesses econômicos falam mais alto do que os interesses éticos e sociais. Essa é a grande indignação do povo brasileiro representados pelos movimentos sociais, pelas ONGs, pelas universidades, pelas nações tradicionais, que têm muita consciência da sua importância histórica e do momento que estamos vivendo. É uma situação triste que estamos vivendo no Brasil de hoje, na qual o povo foi colocado à deriva e o governo cospe no prato que comeu.
IHU On-Line – O jejum conseguiu aumentar e qualificar as articulações de entidades populares para reclamar a suspensão da obra enquanto se abre um grande diálogo nacional sobre a sua conveniência. No entanto, as obras de transposição não cessaram, o que era esperado por todos da região. O objetivo foi atingido?
Dom Luiz Cappio – Sim. Era nossa grande esperança que houve o mínimo de sensibilidade não apenas com a minha pessoa, mas por aquilo que ela representava: uma luta popular. Existe um ditado chinês que diz assim: quando alguém aponta o dedo, os inteligentes olham na direção em que o dedo aponta e estúpidos olham para o dedo. Então, quando assumimos esse gesto, esperávamos que o olhar do governo se dirigisse na direção de onde o gesto estava apontando. Isso que eu dizia muito aos jornalistas: não se prendam à minha pessoa, procurem ver a direção para a qual estamos apontando. É uma direção que traz é uma causa muito grande e nobre e que envolve milhares de pessoas. Eu dizia para não ficarem preocupados pelo fato de eu estar mais pálido, mais magro ou com vertigens. Não é isso o importante. O importante era saber por que passávamos por aquele sacrifício tão grande. Existia uma razão, uma motivação.
Então, essa expectativa não era apenas minha. Era de toda uma nação que esperava por uma resposta mais sensível, um gesto de maior sensibilidade em relação a uma causa que é nacional, de todos. Então, esse foi o desenlace que houve justamente por essa falta de sensibilidade, não apenas em relação ao bispo que estava lá fazendo um jejum, mas pela causa que esse gesto trazia. É nesse sentido que isso fez com que todo ficasse muito triste pelo desenlace dos acontecimentos.
IHU On-Line – Como o senhor avalia as divergências profundas de tantos cristãos, que beberam da mesma fonte, a Teologia da Libertação, participaram ativamente dos movimentos e das pastorais sociais e, hoje, no governo Lula, se opuseram claramente às suas atitudes?
Dom Luiz Cappio – O que eu vejo em tudo isso, a partir do próprio presidente Lula, do atual Ministro da Integração Nacional, Gedel Vieira Lima, é que infelizmente são os interesses e as conveniências que movem os ideais dessas pessoas. Nós temos uma fita muito interessante que mostra um discurso do presidente em Petrolina (município do estado de Pernambuco, banhado pelo Rio São Francisco), por ocasião da campanha. E, então, alguém pergunta sobre a transposição e ele grita: “Mas nem fale nessa palavra que isso é um projeto inimigo do povo!”.
Que dizer, uma vez no poder os interesses falaram mais alto. O Ministro da Integração Nacional disse que antes era contra porque não conhecia o projeto. E nós perguntamos: se ele não conhecia o projeto, como é que ele podia ser contra? Se ele era contra é porque tinha o mínimo de conhecimento. Então, de repente, ele se posiciona contra e com isso se torna deputado pela Bahia e, ao se tornar ministro, se torna a favor. E hoje vemos a postura do Partido dos Trabalhadores, que sempre se posicionou contrário, alinhado com os grandes interesses do povo e agora se coloca a favor. Por um lado, é a falta total de conhecimento da realidade do projeto, porque, se esse houvesse, a postura seria diferente. Mas não é apenas falta de conhecimento: é falta de ética mesmo. É deixar que os interesses e as conveniências falem mais alto que os interesses do povo.
IHU On-Line – O que rendeu o seu discurso na Câmara que aconteceu na semana passada?
Dom Luiz Cappio – Foi um debate de seis horas consecutivas. Foi muito interessante, pois se confrontou o pensamento da sociedade civil e o pensamento do governo. O pensamento da sociedade civil é embasado por representantes profundamente conhecedores da matéria e que dizem as razões pela qual são contrários, enquanto os interesses políticos e corporativos do governo defendem o projeto. Infelizmente, é isso o que está acontecendo.
O grande fruto desse debate foi que, pela primeira vez, o povo brasileiro teve possibilidades de ouvir. Foi um debate público, transmitido para toda a nação através da TV e Rádio Senado. Durante seis horas, o povo brasileiro viu passar o desfile das opiniões e ter a possibilidade de perceber onde está o certo e onde está o errado. Foi um grande momento, em que o povo teve a possibilidade de ouvir e todos tiveram a oportunidade de ver e perceber o quanto polêmico é este projeto e o quanto ele precisa ser discutido e aprofundado. É por isso que sempre a minha palavra tem sido única: “Vamos dialogar, vamos conversar, vamos debater!”. Esse projeto leva tanto dinheiro público, dinheiro do povo e não pode ser colocado goela abaixo, num gesto ditatorial. Precisa ser melhor discutido. Mas o governo continua muito insensível. Já demos várias sugestões para continuar a debater. No entanto, o governo se mostra ditadorial, não acolhe outras opiniões que não sejam aquelas que dizem respeito a seus próprios interesses e quando outros dão outras opiniões diferentes são tachados de ignorantes que não conhecem o projeto.
IHU On-Line – Muitos esperavam que Lula utilizasse o poder de presidente para conter o capitalismo, que continua a avançar no país. Em sua opinião, quais são as perspectivas de mudança para o futuro próximo?
Dom Luiz Cappio – O futuro brasileiro está diante de uma grande interrogação. É o grande momento dos movimentos populares se levantarem. É o grande momento das universidades, das cabeças pensantes, das igrejas, de todos aqueles que se sentem cidadãos brasileiros se levantarem. Não podemos deixar que um grupo de pessoas truculentas, com interesses duvidosos entreguem a nação; nós não podemos deixar que isso aconteça. Então, é o grande momento da cidadania falar mais alto, da brasilidade falar mais alto e dar gritos em defesa da nação brasileira. Não podemos nos deixar levar por meia dúzia de pessoas que se dizem possuidoras da verdade e quererem tomar a frente do destino da vida de milhões de brasileiros. Um argumento que eles utilizam, falso aliás, é que tiveram os votos do povo brasileiro. Isso é um argumento falacioso, porque então, se formos nessa lógica, justificamos o holocausto e todas as atrocidades de Hitler, que também teve aprovação do povo alemão. Mas nem por isso aprovamos as atrocidades do qual ele foi mentor. O fato de o governo Lula ser reconhecido nas urnas não lhe dá o direito de fazer o que bem entende à frente de uma nação. Numa nação democrática, o povo tem sempre o seu posicionamento, o seu lugar e o direito de interferir e dizer: é por aqui que nós queremos ir e não por ali. A soberania da população deve ser sempre prioritária e um governo, pelo fato de ter sido referendado nas urnas, não tem o poder absoluto de, ao longo da sua ação, desvirtuar e ser totalmente contra os interesses de toda uma nação.
É o grande momento das universidades, das cabeças pensantes, das igrejas, de todos aqueles que se sentem cidadãos brasileiros se levantarem."
Nós achamos que as grandes redes de televisão são fortes, mas elas não são não. Elas se colocaram a serviço do poder. Tanto é que você pode observar que, por mais que os movimentos sociais gritassem lá em Sobradinho, a mídia estava totalmente ignorando o fato. Tínhamos grupos de amigos que tentaram, pode se indignar com isso, matéria paga nas grandes redes de televisão e não foi aceito porque, infelizmente, a mídia está sob o controle dos interesses. É uma mídia que não tem liberdade de agir. Um outro exemplo do que vou dizer agora: no dia 14 de fevereiro aconteceu esse debate nacional no Senado Federal em que todos os senadores estavam presentes e no Jornal Nacional daquela noite não apareceu nem uma palavra sequer sobre o Rio São Francisco, ao mesmo tempo em que todo o Brasil ficou sabendo os detalhes dos tendões do Ronaldinho (referindo-se ao jogador de futebol, Ronaldo Nazário). Então, o que você vê? Uma mídia que está sob os interesses de um grupo de poder, um mídia subserviente, sem liberdade de ação, que fala aquilo que o poder exige que ela fale.
IHU On-Line – Em entrevista à IHU On-Line (realizada em abril de 2007), o senhor afirmou que “se o governo tiver bom senso, irá ouvir o povo”, mas, de qualquer forma, a transposição não irá acontecer...
Dom Luiz Cappio – Ela não irá acontecer porque é mentirosa, anti-ética, anti-social, injusta, economicamente inaceitável, quando você tem do próprio governo as alternativas para um projeto de desenvolvimento. O Atlas da ANA (Agência Nacional das Águas) está mostrando as alternativas, dizendo que por muito menos você pode fazer muito mais. O projeto é socialmente injusto porque vai beneficiar um pequeno grupo, enquanto que projetos alternativos podem beneficiar quase toda a população do Nordeste do semi-árido. Ela é ecologicamente insustentável porque, enquanto o projeto de transposição agride a realidade do Rio São Francisco, os projetos alternativos são altamente sustentáveis. E a transposição é eticamente inaceitável porque é mentirosa, enquanto os projetos alternativos estão aí para poder atender as necessidades do povo. Por isso, eu repito, disse no Senado, que a transposição não irá sair. Isso porque ela não se sustenta e, além de tudo, juridicamente é totalmente cheia de irregularidades. Infelizmente, o próprio Supremo Tribunal Federal é subserviente. Você viu naquele fatídico dia de 19 de dezembro um judiciário subserviente, a serviço dos interesses de um pequeno grupo político, quando um projeto com tantas irregularidades jurídicas (naquele momento havia 14 ações pendentes) era aceito. Os senhores ministros do Supremo Tribunal Federal ignoraram as irregularidades para satisfazer os interesses políticos de um pequeno grupo no poder. Logo uma instância como o STF, que antes era merecedora de todo respeito dos cidadãos brasileiros, demonstra agora a sua subserviência. Isso coloca em cheque até o estado de direito. Que país é esse que todo mundo se inclina a um pequeno grupo no poder?
IHU On-Line – Por que, em sua opinião, tanto se criticou essa “mistura” que o senhor fez, ao utilizar-se da sua fé e da sua posição como Bispo para combater um problema tão grave, que é a transposição do São Francisco?
Dom Luiz Cappio – Não é uma questão apenas política; é uma questão pastoral. O Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, no capítulo 10 do Evangelho de São João, afirma que “o pastor é aquele que cuida do seu rebanho”, e Jesus diz que o Bom Pastor, se for necessário, dá a vida pelo seu rebanho. Eu fui
constituído pastor pela Igreja. Eu sou Bispo de um povo, sou um pastor segundo Jesus Cristo e não posso me calar diante do meu rebanho que passa todas as privações, as carências, as necessidades e as injustiças de um governo alheio às necessidades dele. Então, se o meu povo não tem voz e não tem vez, eu tenho que usar do curinga que eu tenho em minhas mãos, e da minha posição de ser pastor de um povo, para ser a voz desse povo que não tem voz. Então, eu não estou falando por mim, Dom Luiz. O meu fórum é um coletivo formado por todo o meu rebanho. Então, esse assunto não é apenas político ou econômico. Trata-se de um problema pastoral também, que diz respeito à vida do meu povo. Se meu povo está sofrendo as conseqüências de um gesto que gera morte, eu tenho que levantar a minha voz para defender o meu povo para que eles tenham vida em abundância. A Campanha da Fraternidade deste ano conclama todos os homens a lutar em defesa da vida, porque a vida é o dom maior de Deus e o pastor tem que zelar pela vida do seu rebanho. Então, é um mistura sim, porque todas as questões fazem parte de um só assunto: a defesa da vida.
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"O povo foi colocado à deriva e o governo cospe no prato que comeu". Entrevista especial com Dom Luiz Cappio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU