09 Dezembro 2007
Como entender o inconsciente psicológico de Getúlio Vargas, Osvaldo Aranha e Flores da Cunha para que possamos compreender seus atos? Pois foi esse estudo psicanalítico que o psicanalista João Gomes Mariante fez no livro Os três ases de 30 - Um estudo psicanalítico (Porto Alegre: Mercado Aberto, 2007), lançado recentemente. No trabalho, Mariante reflete sobre as inclinações, ideologias políticas e filosóficas e da saúde mental desses três importantes personagens da política rio-grandense e brasileira para chegar à conclusão de que os três tinham tendências suicidas.
Por e-mail, Mariante conversou com a IHU On-Line. Na entrevista, o psicanalista fala das semelhanças e diferenças que encontrou no inconsciente político de Getúlio, Flores e Aranha e o que o levou à conclusão de que os três tinham tendências suicidas. “Eu diria que Getúlio recorreu ao suicídio diante do imponderável para entrar na história como mártir, como herói. O que não teria sido registrado nos seus anais se fosse aprisionado pela aeronáutica ou pelas forças conservadoras lideradas pelo panfletário Carlos Lacerda”, afirmou.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Psicanaliticamente, quais são as principais semelhanças e diferenças do inconsciente político de Getúlio Vargas, Flores da Cunha e Oswaldo Aranha?
João Gomes Mariante - As semelhanças entre os três líderes da Revolução de 1930 são muitas, e as diferenças, poucas. No plano consciente, apresentam-se mais nitidamente. No que tange ao inconsciente, nem sempre são manifestas. É importante se notar que os três eram homens da fronteira, desconfiados e prevenidos, como conseqüência das invasões armadas das revoluções de um passado ainda recente. As semelhanças em relação à personalidade são mais perceptíveis entre Aranha e Flores do que em Getúlio, que possuía um maior equilíbrio emocional do que os dois, notoriamente mais afeitos às efusões do homem meridional. Vargas manteve sempre a ponderação, a perspicácia e a paciência herdada dos caciques missioneiros.
IHU On-Line – Getúlio, Osvaldo e Flores da Cunha foram três triunfadores em suas carreiras políticas. Por que esses triunfadores tinham tendências suicidas?
João Gomes Mariante - Conforme assinalado em Os três ases de 30, as tendências suicidas sempre acompanharam os três próceres da política nacional. Poder-se-ia dizer que, em Getúlio, ela adquiriu a conotação de uma compulsão. Desde os albores da Revolução de 1930, em várias ocasiões, declarou que vencido não seria prisioneiro nem deportado. E a data de 24 de agosto confirmou essa freqüente ameaça.
Flores da Cunha manifestou tal propósito nos incontáveis episódios guerreiros em que desafiava a morte, na maioria das vezes desnecessários. O célebre combate na ponte do rio Ibirapuitã, em Alegrete, confirma tal constatação. As metralhadoras pipocavam do outro lado da ponte, num fogo cerrado sem interrupção. Eis que Flores monta a cavalo e grita: “Quem tiver vergonha que me siga”. Ele e Oswaldo Aranha foram feridos e pereceu em combate o jovem Guilherme, irmão de Flores da Cunha. Os guerreiros, que sempre aspiram galgar a condições de heróis, desprezam a vida para conseguir o almejado título.
IHU On-Line – Getúlio sofria, nos últimos dias no governo, uma forte pressão da mídia liderada pelo jornalista Carlos Lacerda. Isso após uma reunião em que foi decidido que ele se afastaria por seis meses da presidência. Seu suicídio foi um gesto político, de luta pelo povo brasileiro?
João Gomes Mariante – Eu diria que Getúlio recorreu ao suicídio diante do imponderável para entrar na história como mártir, como herói. O que não teria sido registrado nos seus anais se fosse aprisionado pela aeronáutica ou pelas forças conservadoras lideradas pelo panfletário Carlos Lacerda.
IHU On-Line – O senhor considera pré-suicídio atitudes auto-agressivas e destruidoras. Como esse pré-suicídio aparece na carreira política de Vargas, Cunha e Aranha?
João Gomes Mariante - O pré-suicídio, essa constante que jamais abandonou Getúlio, foi evidenciada já por ocasião da revolução de 1930. Em um episódio ocorrido na noite em que Porto Alegre estava sob o impacto de ataque armado, comandado por Flores da Cunha e Oswaldo Aranha, Getúlio, então governador do estado, acompanhado pela esposa de Aranha, afagava um gato no Palácio do Piratini, pachorrentamente. Diante do notório alheamento do presidente, a esposa de Aranha desabafou: “Mas doutor Getúlio, os nossos maridos podem estar feridos ou mortos e o senhor com essa calma?”. Getúlio mostra-lhe um revólver e, sem uma palavra, continua a afagar o felino. Seu suicídio não deixou de representar um gesto político, mas, acima de tudo, foi mais uma oportunidade de tornar-se objeto de culto e fazer história.
IHU On-Line – Como o senhor analisa a saúde mental desses três ases da política?
João Gomes Mariante - Quanto à saúde mental dos três revolucionários, dissecada no livro, é importante fazer uma ressalva. Quando me refiro ao Flores da Cunha e menciono epilepsia, certamente não pretendo realizar um diagnóstico psiquiátrico clássico. Estou, isso sim, mencionando componentes epileptóides dadas certas características da sua personalidade, sabidamente agressiva e, por vezes, violenta.
Com a mesma ressalva, pairavam sobre Oswaldo Aranha aspectos hipomaníacos. Quanto a Getúlio, sem a mínima dúvida, conforme assinalo em um capítulo específico, é seguro afirmar que ele foi portador de uma síndrome melancólica, que tende a descambar no suicídio. E não foi isso o que ocorreu?
IHU On-Line – O senhor poderia acrescentar mais alguns detalhes sobre este seu mais recente livro?
João Gomes Mariante - Poderia ainda dar ênfase ao papel do jornalista Carlos Lacerda, cuja virulência dos ataques a Getúlio Vargas não encontram similitude na história da imprensa brasileira. As notórias invectivas da Tribuna da Imprensa incidiram de maneira arrasadora sobre o já fragilizado ego do presidente. Não poderia dizer que foi a causa, mas certamente foi um dos fatores predisponentes do autocídio.
Os defensores de Getúlio apodaram Carlos Lacerda de “O Corvo do Lavradio”, em referência à localização da sede do seu jornal. No livro, comparo Lacerda à águia que dilacerava as entranhas de Prometeu no rochedo do Cáucaso. Estabelece-se, assim, uma comparação entre a águia e o corvo, e entre a figura mítica de Getúlio e o Titã que usurpou a chama divina para entregá-la aos homens.
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Vargas, Aranha e Flores da Cunha. Um estudo psicanalítico. Entrevista especial com João Gomes Mariante - Instituto Humanitas Unisinos - IHU