26 Outubro 2007
Relançado recentemente pela Editora UFMG, o livro Crítica Cult traz diversos ensaios apresentados em seminários, congressos, revistas e sala de aula com reflexões acerca da crítica literária e cultural. Eneida Maria de Sousa, autora da obra, discute conceitos e tendências de críticos renomados de brasileiros, como Roberto Schwarz e Ricardo Piglia, e estrangeiros, como Michel Foucault, Jacques Derrida e Roland Barthes. Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Eneida fala das tendências atuais sobre a crítica cultural na América Latina, suas relações com a cultura de massa e com o imaginário nacional, entre outras questões.
Eneida Maria de Souza é graduada em Letras, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Possui mestrado em Letras, pela PUC-Rio, e doutorado em Literatura Comparada, pela Universidade de Paris, na França. Obteve livre docência pela UFMG, onde é professora de Teoria da Literatura. Trabalha, também, no Acervo de Escritores Mineiros.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais são as principais tendências da crítica cult(ural), atualmente?
Eneida Maria de Souza - Seria difícil caracterizar as múltiplas tendências da crítica cultural hoje. Cito apenas a preocupação que temos de respeitar o discurso do outro e de manter o diálogo com manifestações culturais ligadas às minorias, como a crítica homoerótica, a ecocrítica, a feminista e a negra. Mas tenho a impressão de que o que deveria prevalecer seria a mistura de intenções, o cruzamento de interesses entre as várias tendências. A abertura para novos horizontes críticos é também freqüente. É preciso estar sempre revendo o que estamos vivenciando no momento, pois a autocrítica está fazendo falta hoje.
IHU On-Line - Como a crítica cult(ural) está hoje na América Latina?
Eneida Maria de Souza - A América Latina na área de Letras continua firme na denúncia dos discursos hegemônicos, ditados pela razão ocidental que exclui o resto do mundo. A bibliografia é muito rica, principalmente na área de humanas, com pesquisadores voltados para a cultura de massa, a cultura popular, embora não se possa generalizar, achando que todos pensam da mesma maneira. O conceito de América Latina é muito complexo, muito contraditório.
IHU On-Line - Qual é a relação da crítica cult(ural) com a cultura de massa e o imaginário nacional?
Eneida Maria de Souza - A crítica cult – ou cultural – procura criar um discurso democrático e não excludente. Sua preocupação com os discursos de massa recupera o lado político por outro viés, que não o marxista, ou filiado a uma esquerda ortodoxa, ainda vigorando na crítica brasileira. Este imaginário rico e contraditório no qual estamos constantemente envolvidos precisa ser melhor analisado, melhor comparado com os discursos elitistas e neoliberais, defensores da pureza e do mal-estar da civilização. O lugar-comum, a estereotipia, a repetição dos discursos da imprensa transformam o nosso discurso cotidiano numa ausência total de discernimento e distanciamento crítico. E por ai se aloja muitas vezes a crítica literária e a cultural. É preciso politizar mais, estetizar mais, sem perder o rumo de casa.
IHU On-Line - Quais foram os conceitos de Michel Foucault, Jacques Derrida e Roland Barthes que a senhora utilizou nesta obra?
Eneida Maria de Souza - Utilizei aqueles que mais se relacionam com os desdobramentos teóricos trazidos pelo pós-estruturalismo: a desconstrução da origem, do eterno retorno, do pensamento ocidental, do universalismo, do conceito de genealogia que rompe com a certeza dos inícios e desconfia das proposições humanitárias. Utilizo ainda a lição de Roland Barthes quanto aos conceitos de representação, de biografema, do sujeito que se encena no texto, assim como a ampliação da noção de texto, antes restrito ao literário. Mas o que mais fica como herança desses teóricos é a ausência de uma critica humanista, salvadora e naturalista.
IHU On-Line - Como fica a crítica cult(ural) num momento em que estamos passando à cibercultura e para o pós-modernismo?
Eneida Maria de Souza - Ela sempre caminhou ao lado desses novos discursos, pois o importante para a crítica cultural é tomar conhecimento do que está surgindo de novo - ou de velho – e reler as diferentes manifestações do momento, sejam elas literárias, políticas, sociais ou populares.
IHU On-Line – Com o avanço dos estudos de Literatura Comparada a crítica sobre a literatura foi ampliada? Qual a importância dos estudos culturais no espaço da Literatura Comparada?
Eneida Maria de Souza - Literatura Comparada e estudos culturais são “farinhas do mesmo saco”. Há, portanto, os defensores do culto à literatura como expressão máxima da cultura e o desprezo por outras formas de expressão. Sabemos que o método comparativo – e contrastivo – é um dos meios mais eficazes de se elaborar um raciocínio ponderável sobre alguma coisa. Não se deve abraçar a comparação que privilegia a semelhança entre literaturas ou culturas, mas reforçar a presença de diferenças. Não a comparação entre textos já consagrados pelo cânone, mas entre discursos de difícil aquisição, ou desconhecidos. É claro que a crítica cultural tem, em relação à Literatura Comparada, preocupação voltada para questões políticas, assim como para os estudos de temas que hoje são impossíveis de serem relegados a terceiro plano, como a diáspora, a migração, a imitação, a cópia cultural, os valores religiosos, e assim por diante.
IHU On-Line - A senhora afirma que "a função crítica da literatura é a de não constituir um lugar especificamente literário, mas de deslocar todos os lugares teóricos e literários". Deslocar para onde e de que forma? Qual é, então, a função crítica da literatura?
Eneida Maria de Souza - O deslocamento dos lugares hegemônicos e a pergunta sempre aberta à civilização constituem as formas revolucionárias da literatura, que não se fecha num objetivo único e nem numa mensagem particularizada. Os leitores são os co-autores da literatura e por isso, quanto maior for o número de interpretações do discurso literário, melhor se entende o seu lugar múltiplo e paradoxal. Nenhum autor se sente muito à vontade quando à sua obra são imputados valores exclusivistas e fechados. Eu exerço um tipo de crítica que pretende ser mais aberto e sem a imposição de pontos fixos de interesse, na certeza de que há vários outros caminhos para se chegar ao sentido da obra.
IHU On-Line - O que exemplifica o que a senhora chama de alta cultura?
Eneida Maria de Souza - Aquilo que os manuais de literatura estabeleceram quais seriam as obras- primas da literatura universal. Aquilo que os suplementos culturais insistem em caracterizar como leituras obrigatórias e que deveriam constar de nossa biblioteca. Aquilo que a crítica ocidental elegeu como alta, longe da cultura de massa e perto da classe social mais abastada. E perto de Deus.
IHU On-Line – E o que seria, então, a "baixa cultura"? De que forma ela se relaciona com a alta cultura?
Eneida Maria de Souza - Baixa cultura seria, para a crítica tradicional, o discurso que a classe pobre gosta: revista em quadrinhos, novela, romances água com açúcar, romances policiais, filmes pornográficos, narrativas fantásticas sobre seres imaginários, e assim por diante. Em resumo: não é nada tranqüilo conceituar este tipo de cultura. Ela existe? Em oposição às altas literaturas?
IHU On-Line – Falando, para finalizar, do seu mais recente livro, como seria o tempo pós-crítica? Nós já estamos vivendo nesse tempo?
Eneida Maria de Souza - O tempo de pós-crítica não significa o seu término, mas um tempo de releitura, de reflexão e de reelaboração do que foi realizado até aqui. O prefixo pós não significa “estar depois de”, mas ao lado de, como a pós-modernidade é a leitura do que não foi realizado na modernidade, funcionando como reflexão e não negação do que vem antes. Neste livro, reuni o Memorial de professor titular com o discurso de professora emérita, no intuito de oferecer ao leitor de hoje o meu trajeto acadêmico, pontuando aqui e ali os diversos momentos de atuação na crítica literária e cultural. Há ainda uma entrevista com os editores, o que me permitiu falar de temas atuais e de minha posição em relação à crítica, além da publicação de dois artigos mais recentes sobre crítica.
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Crítica cultural: tendências, conceitos e debates. Entrevista especial com Eneida Maria de Souza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU