08 Novembro 2025
A obstetrícia biomédica ocidental minimizou, excluiu, trivializou e usurpou completamente a placenta de suas legítimas donas e criadoras: as mães. Muitas mulheres nunca viram suas placentas, nem sequer sabem o que é ou por que é tão valiosa.
O artigo é de Ester Massó Guijarro, professora titular de Filosofia Moral na Universidade de Granada, publicado por El Salto, 05-11-2025.
Eis o artigo.
“Miixoni quih zo hanta no tiij?” [“Onde está enterrada sua placenta?”].
(Saudação padrão entre os Seri, uma tribo do norte do México).
“Minha placenta…? Eu nunca vi minha placenta… Só ouvi o médico mencioná-la de passagem, quando lhe disse que estava tendo contrações de trabalho de parto novamente.”
(Narrativa placentária de uma mãe, Espanha, século XXI).
O interesse pela placenta é universal e histórico, o que não significa, obviamente, que as mulheres que dão à luz tenham tido, universal e historicamente, autonomia ou poder de decisão sobre o que fazer com suas próprias placentas após o parto. Isso é ainda menos verdade desde que a obstetrícia moderna surgiu com suas salas de parto e cadeiras de parto, adentrando o campo muito mais amplo da assistência ao parto.
Assim como fez com tantas outras coisas (tecidos, fluidos, produtos... até mesmo seres vivos) do corpo feminino, a obstetrícia biomédica ocidental minimizou, excluiu, trivializou e usurpou completamente a placenta de suas donas e criadoras: as mães. Tantas mulheres que nunca viram suas placentas, que nem sequer sabem o que é. Ou por que tem tanto valor.
Inúmeras culturas consideram a placenta um elemento com conotações espirituais fundamentais. Seu sepultamento frequentemente simboliza uma conexão com a terra e os ancestrais, com múltiplas associações a bênçãos e proteção para o recém-nascido, mas também para a mãe e sua futura fertilidade (e, portanto, a continuidade do grupo). Curiosamente, a fisiologia placentária atual oferece dados tão surpreendentes que, de certa forma, corroboram muitas dessas intuições. A placenta é como o parto ou a amamentação: não podemos pensá-la apenas da perspectiva do bebê ou da mãe; não a compreenderemos plenamente se aplicarmos somente uma epistemologia individualista e segregacionista. É um fenômeno plural com uma origem plural na díade mãe-bebê. Requer uma perspectiva comunitária.
O que fazem os mamíferos (outros) com suas placentas? Muitas mães comem a própria placenta, juntamente com o saco amniótico e o cordão umbilical, o que provavelmente é a coisa mais ecológica, sustentável e nutritiva que se pode fazer, sem igual.
Mas o que faz a espécie biocultural por excelência, a espécie cuja natureza é a cultura — como disse Ortega, embora estivesse um tanto enganado, pois nossa cultura também é natureza —? Bem, ela faz coisas (bio)culturais. De muitos tipos.
Queimar a placenta junto com outros "resíduos" no incinerador do hospital, sem qualquer reverência, como quem joga lixo fora, e sem nem sequer perguntar à dona e criadora da placenta o que ela deseja fazer com ela, também é um comportamento biocultural. Embora talvez não seja o mais apropriado.
Falamos aqui da placenta como algo radical, como ir à raiz; aquela placenta que é literalmente nossa primeira forma de conexão; denunciando, por outro lado, o fato de que para a medicina ocidental a placenta não passa de um pedaço de sangue e tecido, destinado à incineração logo após o bebê respirar pela primeira vez. Essa conexão primordial é abruptamente cortada, com pouca consideração pelas repercussões físicas e simbólicas para a criança ou para a cultura em geral.
A placenta é um órgão fundamental na biologia humana, essencial para o desenvolvimento fetal e a gravidez, mas sua importância tem sido historicamente minimizada, até mesmo marginalizada. A prática dominante ainda considera a placenta como lixo clínico, o que implica uma forma de desapropriação, de descaso, que exige reparação tanto simbólica quanto tangível.
E reconhecer essa importância não é essencializar, romantizar ou idealizar. É o desejo e o direito de conhecer nossos próprios corpos, nossos corpos maternos, nossas gestações, nossos bebês, nossos processos fisiológicos, nossas condições. Conhecê-los, reconhecê-los, dignificá-los.
Se considerarmos a história etnocultural da placenta, encontramos exemplos fascinantes em diversas geografias e períodos históricos, onde seu sepultamento ritual ainda prevalece, como já mencionamos. Isso conecta o recém-nascido à terra e aos ancestrais, e hoje vemos, no que poderíamos chamar de um verdadeiro “renascimento da placenta”, como os chamados “jardins de placenta ” resgatam o significado da relação com a terra em comunidades indígenas ou urbanas, ou seus usos medicinais e simbólicos, ou os significados antigos e novos na preservação do cordão umbilical... Tantas variações que mostram como a placenta historicamente carregou significados que articulam identidade, pertencimento à comunidade, linhagem e memória.
Também merecem destaque hoje os estudos etnojurídicos sobre possíveis regulamentações relativas à doação de placentas a mulheres após o parto, particularmente em países notavelmente multiculturais. Relembrando o lema "O nascimento é nosso", poderíamos argumentar que a placenta também é nossa, ou deveria ser, e é crucial entender o que a lei diz ou deveria dizer sobre isso.
A América Latina, particularmente nos casos da Bolívia, Chile e Argentina, tem desempenhado um papel pioneiro e de liderança nesse sentido. Na Bolívia, por exemplo, houve um apelo para "determinar as características dos instrumentos legais, fundamentados na Constituição, que permitam a regulamentação do direito de utilização da placenta fora da comunidade camponesa indígena por indígenas e não indígenas". No Chile, as mudanças regulatórias propostas para o sistema de saúde em relação ao parto da placenta para mulheres (indígenas ou não) foram analisadas, refletindo sobre as justificativas estatais subjacentes ao processo, bem como sobre o papel da antropologia na formulação de políticas públicas voltadas para os povos indígenas.
Na Espanha, porém, ainda não temos regulamentação legal específica sobre o assunto, embora já existam alguns pronunciamentos bioéticos a respeito.
Por fim, é essencial enquadrar a reivindicação da “autonomia placentária” (isto é, o direito à própria placenta, de conhecê-la e descartá-la a qualquer momento, de ter controle efetivo sobre ela) no contexto da violência obstétrica. Embora o descarte acrítico da placenta possa ser considerado uma forma muito menor de violência, representa um ato de enorme poder simbólico e, certamente, encaixa-se inequivocamente na longa história de injustiça epistêmica, negligência e marginalização das mulheres em seus próprios partos, e na série de ações desrespeitosas que culminaram nesse conceito incendiário (violência obstétrica), tão necessário, nascido da rebeldia.
O objetivo final destas reflexões é contribuir para uma cultura positiva em torno da placenta (Cultura Placenta-Positiva), em consonância com a cultura positiva em torno do aleitamento materno ou a narrativa positiva em torno do parto. Visa também reconhecer, como defende hoje o Projeto Placenta Humana, a importância fundamental da placenta para a saúde fetal e adulta — ou seja, em última análise, para toda a humanidade desde o seu início; elevar a questão da placenta a um patamar de importância universal, uma questão de saúde pública e uma questão de considerações éticas, incluindo o reconhecimento do direito da mãe de dispor da sua própria placenta de forma consciente e autônoma.
Assim, de uma perspectiva feminista e decolonial, devemos partir da marginalização da placenta (na saúde, na biomedicina, na obstetrícia e no simbolismo) em direção ao seu reconhecimento como objeto de reflexão e significado cruciais. O crescente interesse nesses rituais e narrativas que envolvem a placenta demonstra como as mães, a partir de um feminismo enraizado na própria experiência da maternidade, reivindicam poder simbólico, emocional e fisiológico em suas vivências corporais da gravidez, do parto, do pós-parto e do puerpério, como caminhos para o conhecimento pessoal e político.
A placenta também é nossa: devolva-a para nós.
Notas
Este texto é um resumo popular do artigo científico de acesso aberto publicado pela autora: “Quem levou minha placenta? Narrativas placentárias: episteme e política a partir de uma bioética feminista e decolonial”. MEDICA REVIEW. Revista Internacional de Humanidades Médicas, 2025, 13(1), p. 1–24.
Leia mais
- Violência obstétrica, uma forma de desumanização das mulheres
- "A violência obstétrica é a última fronteira da violência de gênero, porque é socialmente aceita". Entrevista com Esther Vivas
- América Latina é o continente mais violento para nascer
- A humanização do parto. Por um nascimento mais digno e natural. Revista IHU On-Line, Nº 396
- A invisibilidade social das mães solo. Artigo de Rejane Rodrigues
- A mãe perfeita é um mito
- Um papel construído. O que significa ser mãe nos dias de hoje?
- Mulheres e feminismo diante do dilema da maternidade. Artigo de Lucetta Scaraffia
- Assim o mito da maternidade tirou o poder das mulheres
- Para tirar a maternidade do pedestal
- Anti-maternidade
- "Não transmitimos às nossas filhas o valor da maternidade"