05 Novembro 2024
A sentença do caso Becciu narra as suas desastrosas aventuras financeiras com o petróleo em Angola, um edifício de luxo em Londres e como o dinheiro do resgate de uma freira raptada no Mali acabou em compras de luxo por um amigo do cardeal.
A reportagem é de Inigo Dominguez, publicada por El País, 02-11-2024.
A condenação de cinco anos e meio de prisão ao cardeal Angelo Becciu, em dezembro de 2023, nos tribunais do Vaticano, por peculato e fraude, culminou um enorme escândalo financeiro que causou prejuízos entre 77 e 166 milhões de euros nas contas da Santa Sé, o máximo que pode ser calculado. Mas há dez meses a sentença só foi anunciada. Na Itália, e também na Santa Sé, a sentença é anunciada no fim do julgamento, mas o texto argumentado é publicado meses depois. Foi finalmente divulgado esta semana e são mais de 800 páginas que expõem um escândalo “de excepcional gravidade”.
Becciu, de 76 anos, era um dos homens mais poderosos do Vaticano, número 3, como segundo alto funcionário da Secretaria de Estado. Foi um julgamento histórico que pretendia ser exemplar, a primeira vez que um tribunal secular julgou um cardeal por corrupção, um sinal de Francisco para quebrar uma inércia de décadas de assuntos sujos nas finanças da Santa Sé, embora Becciu sempre tenha dito que ele é inocente, não pegou um centavo e recorreu da sentença.
Quase tudo já era conhecido, mas agora está escrito detalhadamente numa condenação oficial: aventuras especulativas para investir num campo petrolífero em Angola; uma operação desastrosa para comprar um edifício luxuoso em Londres por 300 milhões através de personagens não confiáveis; um amigo do cardeal que se faz passar por agente secreto e consegue 589 mil euros para resgatar uma freira raptada no Mali, que na realidade acaba por ser gasto em hotéis caros e artigos de luxo; o desvio de fundos por Becciu para uma cooperativa de irmãos na Sardenha.
Foi um caso que começou a vir à luz em 2019 e levou à deposição do cardeal em 2020, uma decisão surpreendente porque era alguém de confiança do Papa. Seu nome chegou a ser citado como candidato à sucessão em futuro conclave e, prova de que era considerado alguém exemplar, foi prefeito da Congregação para as Causas dos Santos. Mas Francisco foi drástico e retirou as suas prerrogativas cardinalícias, algo que só aconteceu três vezes em 120 anos. No fim, Becciu chegou a gravar uma ligação do próprio papa em julho de 2021, desesperado para obter provas em sua defesa.
A resolução condena Becciu e outras nove pessoas, incluindo funcionários do Vaticano, agentes comissionados e intermediários financeiros. O tribunal explica que não importa que ele não tenha enriquecido com isso ou que não tenha agido com desejo de lucro, uma vez que a pena corresponde ao uso indevido de fundos do Vaticano. Por outro lado, isenta de responsabilidades os dois superiores do cardeal, o secretário de Estado com Bento XVI, Tarcisio Bertone (que construiu uma cobertura de 700 metros quadrados com fundos de um hospital infantil), e o seu sucessor com Francisco, Pietro Parolin, que ainda está no cargo. A resolução também julga inocente o sucessor do cardeal no cargo, até hoje, o arcebispo venezuelano dom Edgar Peña Parra, que herdou a bagunça e segundo os juízes foi “enganado” pela conspiração para dar aprovação às operações já em andamento. Outro personagem decisivo é dom Alberto Perlasca, braço direito de Becciu, que escapou do julgamento contando o que sabia, mas que ainda é considerado não credível pelo tribunal.
Becciu foi substituto para Assuntos Gerais da Secretaria de Estado, algo como o braço direito do número dois do Vaticano, entre 2011 e 2018, e teve acesso aos fundos reservados, incluindo o Óbulo de São Pedro, doações dos fiéis para obras de caridade do papa. Mas Becciu colocou a mão na caixa de investimentos com muita facilidade. Conforme explicou, queria dar uma guinada ousada na política financeira para obter retornos mais elevados. A primeira coisa que tentou em 2012 foi investir num campo petrolífero da empresa Falcon Oil em Angola, país onde Becciu era núncio e conhecia o empresário que dirigia aquela empresa, um certo Sr.
Foi a primeira vez que o secretário de Estado investiu numa empresa e, como o próprio arguido reconheceu, “nunca tinha sido confiada uma quantia tão elevada a um único indivíduo”. Além disso, como a frase não deixa de salientar, “em evidente contraste com a atenção às questões ecológicas já abordadas por Bento XVI e depois pelo Papa Francisco”. Sendo uma operação complexa, o Vaticano envolveu-se numa conspiração com intermediários e aproveitadores duvidosos que acabaram por convencê-lo em 2013 e 2014 a investir “uma enormidade”, 200 milhões de dólares (147 milhões de euros ao câmbio da época, um quarto dos fundos da Secretaria de Estado), através de empréstimos de bancos suíços, num fundo no Luxemburgo do executivo suíço Raffaele Mincione. Na realidade, o Vaticano colocou-se nas mãos deles, sem qualquer controle sobre o dinheiro, e a comissão dos intermediários foi de 14,9 milhões.
Becciu fê-lo apesar das várias advertências que recebeu sobre Mincione, tanto em artigos de imprensa como por parte da Gendarmaria. Ele agiu “com comportamento gravemente inapropriado”, de acordo com a sentença. O “uso ilícito” dos fundos e “a vontade de usá-los em contraste com os interesses da Igreja” terminou “numa vantagem tão óbvia quanto significativa para Mincione e seus parceiros”.
A decisão considera comprovada, quando o investimento no fundo começou a tomar forma, “a plena consciência de todos de que se estava a realizar uma operação extremamente arriscada e incompatível com a sempre obrigatória atitude prudente” que Becciu deve ter. É significativo para o tribunal que Becciu tenha deixado o IOR, o instituto financeiro do Vaticano, fora da operação e negociado com os bancos suíços porque temia que ele não desse luz verde ao projeto, "devido à sua entidade especulativa sem precedentes, completamente incompatível com as disposições atuais".
Contudo, poucos meses depois o plano angolano foi abandonado e para o tribunal “é inexplicável” que nessa altura o Vaticano não tenha aproveitado para encerrar o assunto. Já existiam sinais de alerta consideráveis, nota o acórdão, mas mesmo assim prosseguiram, “recorrendo a operações de caráter altamente especulativo com a consequente exposição ao risco de perda de ativos”.
Mincione então os convenceu a comprar dele um prédio de sua propriedade em Londres, no número 60 da Sloane Avenue, antiga sede da loja de departamentos Harrod's, no exclusivo bairro de Chelsea. O dinheiro que estava sendo pedido ao Vaticano com “artifício e engano” cresceu para 300 milhões, e quando finalmente conseguiu vendê-lo em 2022, fê-lo por 214 milhões. Nessa altura Becciu já tinha deixado o cargo de secretário de Estado, em junho de 2018, mas o seu sucessor, Peña, foi enganado pela trama que já se criou à sua volta. A decisão indica também que em 2014 e 2015 o secretário de Estado comprou outros quatro edifícios no centro de Londres através de empresas intermediárias.
O tribunal subscreve a declaração explícita de uma das testemunhas de acusação, Luca Del Fabbro, perito chamado pela Secretaria de Estado em 2018 para pôr ordem: “Os milhões no Vaticano voavam como se fossem cartões colecionáveis da Panini”. Os tubarões financeiros que mexeram com a Santa Sé, numa das ocasiões em que finalmente conseguiram o que queriam, “ficam até surpresos com o sucesso de uma operação que nasceu fazendo ‘abracadabra’ com números. (...) Esta operação é absolutamente… divina”, escreve alguém no WhatsApp, seguido de emoticons risonhos.
A decisão explica que este grupo “enganou” o secretário de Estado “através de uma série de truques e enganos que consistem numa série de informações falsas ou gravemente incompletas” e fê-lo acreditar que se apoderou da propriedade de Londres. É apenas um dos episódios da novela, um reflexo do conjunto: além do investimento inicial, para assumir todo o edifício o Vaticano teve de desembolsar mais 40 milhões de libras (45,4 milhões de euros) em 30 mil não ações com direito a voto, o que na verdade deixou o controle do imóvel nas mãos de outro executivo, Gianluigi Torzi, que tinha apenas 1.000 ações e não investiu um único centavo na operação. Então eles tiveram que pagar a ele mais 15 milhões. Ele foi condenado por fraude e extorsão.
Em 2018, Peña Parra, sucessor de Becciu, descobriu com espanto os acordos e, entre outras coisas, que o advogado que assessorou a Santa Sé, Nicola Schillaci, trabalhava na verdade para a outra parte, que recebia o dinheiro. Os alarmes começaram a tocar e depois surgiram outras novelas. Becciu foi condenado por fraude agravada, juntamente com uma amiga chamada Cecilia Marogna, sarda como ele e que tinha 39 anos na época, que se passou por agente secreto. Pagou-lhe 575 mil euros em 2018 para mediar a libertação de uma freira colombiana raptada no Mali em 2017. Houve um pagamento a uma agência inglesa, a Inkerman, especializada nestes casos, mas depois Marogna recebeu outros 575 mil euros, desta vez gastos em hotéis, restaurantes, roupas, bolsas e produtos de luxo exclusivos. Ela foi pago em nove transferências para uma empresa eslovena “constituída ad hoc no dia imediatamente anterior”, diz a decisão. Além disso, Becciu deu-lhe mais 14.000 euros em dinheiro em setembro de 2019. Em resumo, conclui o tribunal, esses 589.000 euros “revelaram-se não ter relação” com o resgate da freira, que foi finalmente libertada em 2021, “sem qualquer intervenção do Secretário de Estado e muito menos da Sra. Marogna”.
Essa Lady Vaticano, como a imprensa a chamava, tem dado muito que falar. O cardeal a conheceu em 2016 porque lhe enviou um e-mail para conhecê-la, eles se conheceram e ele apreciou suas qualidades como “analista geopolítica”. Pelo menos uma noite, em setembro de 2020, ela pernoitou no apartamento do cardeal, confirma a sentença. Além disso, os magistrados censuram o cardeal por ter continuado a ter “relações muito amigáveis, se não verdadeira familiaridade” com esta mulher, embora “já tivesse amadurecido uma consciência plena e definitiva sobre as modalidades totalmente ilegítimas com que a mulher tinha utilizado as somas”. “Não pode ser considerado de forma alguma normal ou plausível que um eclesiástico do nível e com as responsabilidades do arguido continue a ter relações de confiança com uma pessoa que lhe propõe preparar dossiês sobre altos prelados”, lê-se no acórdão.
Por último, há o caso dos 125 mil euros que Becciu depositou numa cooperativa do seu irmão Antonino, motivo do seu segundo crime de peculato. Fê-lo sem pedir autorização e com transferência para uma conta da Caritas na cidade sarda de Oziera, já que a cooperativa familiar era o braço operacional da organização religiosa do local (e a Caritas era dirigida por um primo do cardeal). Mais uma vez, os juízes não consideram que não tenha sido feito em seu benefício ou que se destinasse a fins caritativos, porque salientam que o código penal do Vaticano proíbe qualquer operação com familiares até o quarto grau de parentesco.