13 Julho 2024
Sociólogo especialista em religião e política, Paul Freston afirma que os evangélicos dificilmente vão se aproximar do governo Lula (PT) a partir de políticas públicas ou da melhora na economia.
A reportagem é de Cézar Feitoza e Marinna Holanda, publicada por Folha de S.Paulo e reproduzida por André Vallias em sua página do Facebook, 08-07-2024.
Para ele, a chave para a aproximação com o segmento é o discurso. "O que precisa, acima de tudo, é de gente bilíngue", disse ele à Folha.
Segundo ele, a esquerda tem preconceito e uma visão massificante sobre os evangélicos, o que precisaria ser abandonado. "Se você não aprender a falar a língua, não vai conseguir mudar as mentalidades."
O acadêmico também avalia o cenário atual da relação de políticos com as igrejas: diz ser perigoso para as próprias igrejas o que classificou como "abraço íntimo" com o populismo. Sobre o aborto, tema de grande repercussão recente, Freston defende que não houve debate sério nas igrejas e que a pauta virou arma para um lado atacar outro.
Inglês naturalizado brasileiro, Freston é professor colaborador do programa de pós-graduação em sociologia na Universidade Federal de São Carlos e professor catedrático de religião e política em contexto global na Balsillie School of International Affairs e na Wilfrid Laurier University, em Waterloo, Ontário, Canadá. É autor de vários livros, como "Cristianismo Antigo para Tempos Novos" (Ultimato Editora, 2024).
O sr. pesquisa a relação entre religião e política há mais de três décadas. Como os temas se relacionam no Brasil dos últimos anos?
O quadro religioso mudou radicalmente e talvez a gente não tenha se dado conta. Geralmente, quando há uma mudança religiosa rápida no país, ou é por que o Estado agiu para mudar, ou é por causa de imigração maciça de pessoas de outra região.
No caso do Brasil, houve uma mudança rápida, em poucas décadas, que não é fruto da ação do Estado nem de imigração, mas de um processo de conversão que vem basicamente das bases da sociedade, sobretudo nos segmentos sociais menos favorecidos. E isso transformou o país radicalmente.
O pentecostalismo se tornou um ator religioso enorme em pouquíssimo tempo, e também um ator político. A gente tem de ver como as duas coisas se imbricam.
O que torna os pentecostais tão fortes?
São fortes numericamente, para começar. Na redemocratização, os pentecostais vinham crescendo e começaram a perceber que tinham possibilidade de converter esse crescimento numérico em presença política, sem que necessitasse de intermediários.
Mas claro que a gente tem de ver a questão do perfil social. Quando você olha o mapa do crescimento pentecostal no Brasil, vê claramente onde estão as manchas escuras [de maior presença]: nas fronteiras agrícolas e nas periferias de grandes cidades.
Embora os pentecostais hoje abranjam camadas mais diversificadas, ainda assim são, na maioria, pobres, não brancos e femininos. O que é interessante. Porque todo olhar desfavorável ao pentecostalismo que existe por aí não leva isso muito em conta.
O último Datafolha mostrou aumento sutil na rejeição dos evangélicos a Lula. Acha possível o governo se aproximar desse segmento?
Este é um segmento extremamente dividido, mas há uma visão massificante, uniformizante. E assim não tem nenhuma chance de se aproximar.
O governo tem uma visão massificante?
Eu acho que setores da esquerda tradicionalmente têm, sem dúvida, ojeriza. O preconceito existe. A dificuldade para diferenciar as bolas. É tudo bola de sinuca, mas não vê que algumas são vermelhas, outras são azuis. E essas diferenças são teológicas, organizacionais, sociais.
Essa dificuldade de se relacionar com os evangélicos é um problema crônico para a esquerda. O que precisa, acima de tudo, é de gente bilíngue.
Eu sei que há preocupações e iniciativas. O problema agora é que se está correndo muito atrás quando o trem já partiu. Nos anos 2010, você teve aquele sentimento de ameaça diante da aceitação social de outras minorias na sociedade, a crescente pluralização da sociedade. Isso foi criando um sentimento de ameaça [para os evangélicos].
Mas também você teve um sentimento de oportunidade. 'Nós já somos 30% da população. Continuamos crescendo. Então nós temos a possibilidade de fazer mais do que a gente vem fazendo.'
E então surge o bolsonarismo...
[O ex-presidente Jair] Bolsonaro aparece como o grande beneficiário dessa conjuntura. Qual foi a base inicial do movimento dele? Em maioria rico, branco e masculino —todas as pesquisas mostravam isso. Veja bem, o perfil evangélico e principalmente o perfil pentecostal é o extremo oposto disso.
Mas ele percebeu que, para virar um movimento de massas, tinha que ter um pé fincado no meio evangélico. E, veja bem, ele não se converte nem se declara evangélico.
Como tem o vínculo da Michelle [Bolsonaro, que é evangélica], proximidade com gente como [o pastor Silas] Malafaia, o batismo [de Bolsonaro] no rio Jordão... Tudo isso permitiu esse trânsito. E ele consegue lucrar com as vantagens eleitorais da proximidade evangélica sem as desvantagens eleitorais disso.
O ministro dos Direitos Humanos, Sílvio Almeida, participou recentemente de atividade na igreja do pastor Ed René Kivitz, conhecido pela sua posição mais progressista. A esquerda está pregando para convertidos?
Pelo que eu sei, existe um debate dentro da esquerda interessada em se aproximar mais dos evangélicos a respeito da melhor estratégia. Se é melhor cultivar as relações com quem já concorda contigo ou ir atrás de outras lideranças.
Você tem uma certa fração que é bolsonarista até debaixo d'água, e não vai adiantar nada. O que resta? A faixa do meio. Nas últimas eleições, Lula conseguiu algo em torno de 25% a 30% de votos dos evangélicos. Se conseguisse aumentar para 35% ou 40%, já seria um tremendo sucesso.
Parte do governo crê que os evangélicos naturalmente vão voltar a apoiar se a política econômica der certo. O que acha disso?
Uma frase que eu ouvi de alguém que atuou em governos anteriores do PT sobre os evangélicos é que "seus irmãos têm goela larga". A percepção de que você se reúne com esse pessoal e eles vão pedir mundos e fundos. Ou você dá e cria outros problemas, ou você não dá e eles vão alegar perseguição religiosa porque não deu.
Então, uma das estratégias é focar em bases, no pessoal que tem certa projeção, influência. E cultivar.
A aproximação tem de ser pelo discurso?
Eu creio que sim. Tem o que se chama de ad hominem, em latim. O argumento ad hominem é quando você leva em conta onde a outra pessoa está. O posicionamento dela, a linguagem que ela está acostumada a ouvir.
Você parte disso e tenta trazer a pessoa, gentilmente, na sua direção. Mas você não transforma quem está aqui com o discurso ali. Não tem ressonância. Se você não aprender a falar a língua, não vai conseguir mudar as mentalidades.
As lideranças evangélicas foram governistas em todos os governos desde a redemocratização. Agora, são opositoras. Há percepção de que a igreja não precisa mais do governo para conseguir benefícios?
Acho que é cedo para dizer isso porque há uma esperança forte de volta, que o exílio seja curto. A coisa ainda está muito crua para saber que movimento é este: se é o anúncio de uma nova fase em que o situacionismo já não é visto como importante, ou se é outra coisa.
A relação das igrejas com o populismo é perigosa?
Acho que, por várias razões, essa associação muito forte, esse abraço íntimo com o populismo é um perigo para o evangelicalismo no Brasil. Primeiro, porque as raízes do Brasil não são evangélicas, essa é uma religião de crescimento muito recente e ainda minoritária.
Em segundo lugar, aquela tradição de corporativismo eleitoral que vem desde a Constituinte também é posta em perigo pela adesão ao populismo. A bancada evangélica [em 2022] continuou bem forte, mas o número de evangélicos diminuiu. Em parte, o bolsonarismo incorporou várias cadeiras.
A bancada evangélica é representativa mesmo dos evangélicos?
Em certos temas, talvez sim; em outros, não. Tem algumas pesquisas que insinuam que não. A lógica é outra, a bancada tem uma lógica política. O pessoal está agindo de acordo com certas lógicas políticas que nem sempre são compreendidas e muito menos abraçadas pelas bases das igrejas. Eu acho que a representatividade, no máximo, é parcial.
A bancada evangélica pode ser um risco para a laicidade do Estado?
Eu acho que às vezes há um certo abuso dessa frase "ameaça ao Estado laico". A existência em si de bancadas evangélicas não é uma ameaça. Determinadas ações dessas bancadas evangélicas podem ser, como esforços para privilegiar uma determinada religião na esfera pública em detrimento de outras.
Qual a adesão do público evangélico ao PL Antiaborto e sua visão sobre o tema?
Nunca houve um debate sério sobre a questão do aborto no meio evangélico, que pense nas várias dimensões —moral individual, da prática pastoral, da dimensão pública legislativa.
Essa pauta tem sido usada como uma arma para atacar o outro lado. Assim como se diz hoje com essa proposta atual, que seria uma maneira de atacar o governo, de colocar o governo em uma saia justa.
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Governo precisa de 'bilíngues' para falar com evangélicos, diz sociólogo da religião - Instituto Humanitas Unisinos - IHU