29 Fevereiro 2024
Foi levado algemado, escoltado por dezenas de policiais do batalhão de choque com os rostos cobertos e cães na coleira. Oleg Orlov, figura histórica da dissidência russa, cofundador e copresidente da Memorial, a ONG Nobel da Paz banida pelas autoridades. Um homem de setenta anos, de óculos, cabelos e bigode brancos, tratado como o mais perigoso dos criminosos simplesmente por ter escrito um texto contra o conflito na Ucrânia. Quando a juíza Elena Astakhova proferiu a sentença, “dois anos e meio de prisão”, Orlov piscou para Tatiana Kasatkina, sua esposa e parceira de luta, e repreendeu-a com bom humor, pedindo-lhe que não chorasse: “Tania, você prometeu". Os agentes do tribunal Golovinsky em Moscou não perderam tempo: colocaram algemas nos pulsos e o trancaram no “aquário”, a jaula de vidro dos réus. Uma pura demonstração de insulto. Poucos minutos depois, o levaram embora entre duas fileiras de apoiadores que explodiram comovidos num aplauso e num grito: My vas Ljubim, “Nós te amamos”.
A reportagem é de Rosalba Castelletti, publicada por “la Repubblica”, 28-02-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Ativista incansável e indomável, Orlov escolheu ficar na Rússia e continuar a protestar mesmo depois do 24 de fevereiro, há dois anos, apesar de saber que mais cedo ou mais tarde isso lhe custaria a prisão. “Claro que estou com medo. Mas o que posso fazer?”, confessou-nos há um ano depois que o acusaram de “desacreditar as forças armadas” por ter traduzido para o russo no seu perfil Facebook o texto Eles queriam o fascismo, que havia escrito para o jornal francês Mediapart.
Aquele primeiro processo terminou em outubro passado com uma multa de 150 mil rublos, 1.500 euros.
Uma pena demasiado branda na Rússia de Vladimir Putin e da Operação Militar Especial. Processo a ser refeito, decidiu o Ministério Público, porque faltava a circunstância agravante: o ódio político e ideológico.
Três audiências foram suficientes para chegar à condenação e a primeira foi realizada em 16 de fevereiro, dia da morte na prisão do opositor Alexei Navalny.
Se um ano atrás Orlov tinha usado o tribunal como arena política, dessa vez renunciou participar do processo-farsa. Ele não interveio, não interrogou as testemunhas de acusação, nem convocou nenhuma em sua defesa. No início do mês, ganhou o infame rótulo de “agente estrangeiro” e não queria arrastar mais ninguém sob o rolo compressor da repressão.
Na sala do tribunal começou a reler O Processo e na sua "última palavra", o discurso reservado aos acusados no final do processo, citou o “herói” de Franz Kafka que não sabe do que é acusado, mas, apesar disso, é condenado e executado. “Na Rússia, a acusação nos é formalmente anunciada, mas é impossível compreendê-la no quadro da lei e da lógica. No entanto, entendemos por que somos detidos, julgados, presos, condenados, mortos. Somos punidos por nos permitir criticar as autoridades. Na Rússia de hoje é absolutamente proibido”. “Sou um gato a quem cortaram o rabo, um pedaço de cada vez. É extenuante. Mas não me arrependo de ter ficado", havia dito depois do adiamento inesperado da sentença. "Arrepender-se seria negar toda a minha vida”. Ontem, quando chegou, agradeceu como sempre os presentes pelo apoio, apertou mãos, retribuiu abraços e, depois de fumar alguns cigarros como um homem livre, entrou carregando consigo uma sacola. Algumas roupas e alguns livros. Orwell, Faulkner... Tenso, mas pronto para uma ironia. "Por que estamos aqui sem fazer nada?" perguntou antes do juiz chegar dando início à canção dos Ddt Rodina, vernis domo j, “Pátria, volte para casa”, e cantando a letra “Não enlouqueça. Esta não é a tua guerra”.
Para Orlov, o pacifismo tem sido uma vocação desde que, ainda jovem biólogo, montou sozinho um polígrafo para imprimir panfletos contra a invasão russa do Afeganistão. No fim da década de 1980, foi cofundador da ONG Memorial com Andrei Sakharov para documentar e preservar a memória das vítimas do Terror de Stalin. Sakharov também recebeu o Prêmio Nobel da Paz.
Preso, ele foi confinado em Gorky. Nem mesmo o regime soviético havia se atrevido a prender um Nobel pela paz. A Rússia de Putin, sim. Outra linha vermelha cruzada pelo Kremlin. Também disse isso ontem Jan Rachinsky, que recebeu o Nobel em 2022 em nome da Memorial: “É um retorno aos tempos soviéticos, quando todas as opiniões não apreciadas pelas autoridades eram rotuladas como falsas. Nós sabemos bem porque estudamos isso há anos. Todos conhecemos a história de Copérnico e Galileu acusados de desacreditar a teoria da terra plana. Bem, estão tentando nos fazer voltar à teoria terraplanista”. No tribunal, além de cerca vinte embaixadores e diplomatas ocidentais, incluindo o encarregado de negócios italiano Pietro Sferra Carini, estavam também a ativista Svetlana Gannushkina, o colaborador de Navalny Nikolaj Ljaskin, a ex-deputada municipal Yulia Galjamina e Aleksandr Verkhovskij, chefe da extinta ONG Sova. Os rostos de sempre, presentes todas as vezes, demasiadas, que um dissidente acaba atrás das barras. Cada vez menos numerosos, cada vez mais desconsolados. ONG fechadas, manifestações proibidas, os tribunais tornaram-se o último lugar de encontro para a dissidência. Um lugar para falar uns com os outros e se despedir.
Ontem, noutra triste coincidência, terminou o processo que havia sido iniciado com a morte de Navalny, no aniversário de nove anos do assassinato do opositor Boris Nemtsov, morto a tiros na ponte Bolshoi Moskvoretskdy à sombra do Kremlin. Durante anos, o aniversário havia sido o único pretexto para realizar marchas autorizadas. Agora não mais. A única homenagem permitida: colocar uma flor no local do assassinato. Nove anos atrás, muitos lembraram ontem, Nemtsov teve sua despedida no agora desmantelado Centro Sakharov. Hoje a equipe de Navalny procura em vão uma sala em Moscou para uma última despedida: “As agências funerárias foram instruídas a não trabalhar conosco”, escreveu Kira Jarmish. E o advogado que ajudou a mãe a recuperar o corpo, Vasily Dubkov, foi detido e depois libertado. Orlov disse na segunda-feira: “O que aconteceu com Navalny é uma tragédia, um crime terrível. Mas a morte, o assassinato, paira, como uma espada de Dâmocles, sobre todos os presos políticos”. Agora aquela espada paira sobre ele também. E a Rússia parece cada vez mais distante do país pelo qual lutaram Nemtsov e Navalny.
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Um Nobel algemado. Prisão para Orlov que desafia o tribunal citando o herói de Kafka - Instituto Humanitas Unisinos - IHU