21 Setembro 2023
"A soberania do povo sobre a sua terra, consagrada no primeiro artigo da Constituição Federal só vale para quem pode pagar por ela. Não há gás de pimenta nem bala de borracha, por exemplo, que impeça grilagem de terras e a invasão daquelas tradicionais, das posses centenárias de indígenas e quilombolas, nem essas causam tanta repercussão negativa como as ocupações urbanas e rurais de gente sem terra e sem teto", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
O povo sem-teto brasileiro, empobrecido pela injustiça social que aqui se reproduz historicamente, vê-se forçado, frequentemente, a ocupar prédios abandonados ou em desuso anti-social, para garantir, a mão de justiça própria, o seu direito de moradia. Um exemplo dessas ocupações aconteceu em Porto Alegre, pela “Resistência Poa”, organizada pelo Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), sobre um edifício de domínio público do Município, situado na rua dos Andradas 1780. Trata-se de um prédio que se encontrava em desuso e tinha sido destinado à venda pela administração pública local. A guarda municipal foi acionada e agiu com extrema, exagerada e desnecessária violência. Gás de pimenta e balas de borracha, utilizadas durante a repressão, feriram até quem veio ao local para tentar solucionar um problema que, sabidamente, sempre envolve muito sofrimento, risco de excessos e, justamente por isso, hábil capacidade de negociação.
O Ouvidor da Defensoria Pública, Rodrigo de Medeiros Silva, uma deputada estadual, Laura Sito, e o militante Lucas, do Levante da Juventude, acabaram vítimas dessa estupidez, o primeiro, com lesões corporais, a deputada ferida na perna por bala de borracha e o rapaz do Levante precisando ser hospitalizado por força do gás de pimenta que recebeu nos olhos. Só depois disso o Poder Público local deu-se conta do gravíssimo erro e tentou repara-lo, garantindo, abrir audiência às/aos ocupantes, visando estabelecer um modo minimamente civilizado e legalmente devido a quem já não conta com outros meios para garantir um direito que diz respeito à vida de qualquer ser humano. Se até aos animais a natureza garante uma toca, milhões de brasileiras/os, em pleno século 21, passa fome e não tem onde abrigar-se.
Observe-se logo quanta diferença esse fato mostra. Na defesa de terras públicas de uso comum do povo, como aconteceu com as do Parque Harmonia, a administração pública de Porto Alegre, até com apoio explícito do Ministério Púbico e de uma decisão Judicial, certamente nunca moveria a sua Força Pública em defesa daquele bem. Até pelo contrário, ali tudo seguiu “legalmente” (!?) o ritmo imposto pela atual política urbana da cidade, sob o jeito que manipula a elaboração do novo Plano Diretor. Aí a subtração do que é do povo obedece a outra lógica, presidida pelo poder econômico privado, cujo apetite, como se sabe, é insaciável. Em conluio com a gestão pública de ocasião, disfarça em concessão de uso essa subtração e simula que tudo está sendo feito na maior transparência, com intensa participação popular e respeito à democracia, à Constituição Federal e ao Estatuto da Cidade.
Se todo o acesso a esses espaços urbanos era gratuito e franqueado a qualquer pessoa, a partir daí será dividido em tantos interesses privados que o espaço comporte para os acessos serem devidamente pagos, ou seja, não há de ser gente pobre como a dos sem-teto que poderá gozar da mesma paisagem, do mesmo sol, do mesmo ar, da mesma luz, da mesma qualidade de lazer. No resto do Estado, isso já acontece com o parque do Caracol, em Canela, e no do Itaimbezinho, em Cambará do Sul, para só lembrar-se dois dos mais famosos.
No restante do país não é diferente. A soberania do povo sobre a sua terra, consagrada no primeiro artigo da Constituição Federal só vale para quem pode pagar por ela. Não há gás de pimenta nem bala de borracha, por exemplo, que impeça grilagem de terras e a invasão daquelas tradicionais, das posses centenárias de indígenas e quilombolas, nem essas causam tanta repercussão negativa como as ocupações urbanas e rurais de gente sem terra e sem teto. O Senado, dominado pela bancada ruralista, já está acelerando a tramitação de um projeto de lei, que tramitava há anos na Câmara Federal, para neutralizar os efeitos que podem ser desencadeados agora de uma possível decisão do STF contrária ao chamado “marco temporal”, que só reconhece direito indígena sobre suas terras, a quem as ocupava quando a mesma Constituição foi promulgada em 1988. Não bastou a colonização vinda de Portugal e a cumplicidade vil do capital local ter praticado o genocídio daqueles povos desde 1.500. Agora é preciso roubar-lhe até o chão.
Quis a coincidência que um Seminário, promovido pelo IBDU, CDES e Escola do Ministério Público, tivesse início dia 18 deste setembro, para estudar direitos humanos, entre outros temas, sobre essas iniquidades que, na maioria dos casos, goza de apoio covardemente escondido. Na abertura dos trabalhos, esteve presente um conhecido jurista de Sevilha, professor de Filosofia do Direito, na Faculdade de Direito daquela cidade, David Sánchez Rubio, autor de vários livros sobre essa matéria, inclusive um editado este ano, “Miradas Críticas em torno al Derecho e Lucha Social. Confluências com América Latina” (Madri, Editorial Dykinson S.L). O autor aproveita uma conhecida fábula de Esopo, trabalhada depois por La Fontaine, que reflete com extrema precisão o que aconteceu com a ocupação “Resistência Poa” e com o povo pobre sem-teto e sem-terra do Brasil. Permito-me traduzir para o português:
“A bezerra, a cabra e sua irmã, a ovelha, com um orgulhoso e feroz leão, Senhor do entorno, dizem que, em tempo passado, formavam uma sociedade e puseram em comum ganhos e perdas. Nos lagos da cabra, um cervo caiu preso. Uma vez chegados, o leão contou nos dedos e exclamou: “Somos quatro, para partilhar a presa.” Logo partiu em tantas partes o cervo: tomou para ele a primeira em sua qualidade de Senhor: “Deve ser para mim, digo, e a razão é que me chamo Leão: a isso não há nada que replicar; a segunda, por direito, também é minha. Este direito, vocês o sabem, é o direito do mais forte; e, por ser ele mais valente e valoroso, aspiro a terceira parte; se algum de vocês ousa tocar na quarta parte, eu o estrangularei antes e em minhas garras morrerá.”
“Pois bem”, (segue o David), “de todo o dito, o relato de Esopo e La Fontaine alude diretamente a essa lei do mais forte, que sempre condiciona o modo como se ordena uma sociedade através de suas instituições ou a forma como interpretar a história e a memória do passado. Os vencedores fazem hegemônica a versão da história e como tem de conceber-se o presente. Os vencidos são silenciados, excluídos, desprezados, ignorados, invisibilizados, e ou eliminados. {...} Em todas as relações humanas, sejam cotidianas, locais ou regionais, nacionais e ou globais, há conflitos de interesses expressos por distintas vozes e vontades de poder. Nelas aparecem os leões (ou os lobos) e quem os enfrentam, e temos o dever de visibiliza-lo, questionando todo o mecanismo, ou dispositivo, que naturaliza e normaliza o estabelecido de maneira desigual, hierarquicamente, sem opções de questionamento.”
Para essa defesa da vida oprimida e reprimida Sánchez Rubio não hesita em considerar legítimo e justo o que ele chama, de modo muito expressivo, de “direito instituinte”, aquele que, construído pelo próprio povo, só conhece como sofre de todas as formas que a injustiça social usa para jamais ser responsabilizada como ré, inclusive abrigada e apoiada pela lei, bem ao feitio do que denunciava Martin Luther King: “Nunca esqueça que tudo quanto Hitler fez na Alemanha foi legal.” Na página 126 desse seu livro, ele lembra parte da doutrina brasileira sobre direitos humanos, que apoia visivelmente o poder instituinte desse direito genuinamente nascido, feito válido e eficaz pelo próprio povo. Traduzindo livremente, do espanhol para o português:
“Todo esse empenho emancipador do povo pobre, que inspira e motiva o direito achado na rua, se auto institui e se auto garante como verdadeiro direito, em alguns casos paralelo, em outros semelhante, em outros alternativo e em outros completamente divergente, insurgente e até contrário ao direito positivo vigente.” Vida longa, então, para os direitos instituintes, como o exercido pela “Resistência Poa”. Sempre que a lei exigir uma espera incerta para a satisfação de uma urgência vital como é a da moradia, a justiça da insurgência instituinte encarrega-se de corrigir esse defeito.
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Gás de pimenta e bala de borracha na repressão ao direito de moradia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU