A convivência com o semiárido deve ser uma proposta cultural, que leve em conta saberes e práticas, problemas e soluções.
O artigo é de Aldrin M. Perez-Marin e José Jonas Duarte da Costa, publicado por Brasil de Fato, 23-02-2023.
A demarcação territorial da região Semiárida hoje, realizada pela SUDENE em 2021, abrange um território com mais de 1.400 munícipios, alcançando todos os estados do Nordeste, Norte de Minas e Noroeste do Espírito Santo.
Mapa elaborado em 2021 com as novas delimitações do Semiárido (Fonte: Sudene)
A primeira demarcação oficial do território Semiárido (2005) e a criação do INSA – Instituto Nacional do Semiárido, como Unidade de Pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, remontam ao primeiro governo Lula e conquistas das lutas das camadas populares organizadas contra os efeitos das políticas públicas de combate às secas no Nordeste.
Políticas dirigidas por e para as oligarquias locais, com a finalidade da exploração econômica, como elemento definidor da ocupação e uso do espaço que exerce a dominação local; implantação de soluções para os problemas desde uma visão fragmentada e tecnicista da realidade local, das potencialidades, das problemáticas e das alternativas de superação das secas e de suas consequências, extraindo proveito político dos dois elementos anteriores, em beneficio próprio.
Sob o ideário de dividir o país em territórios para efetivar políticas públicas contextualizadas nestes, a demarcação do Semiárido passou a ser uma necessidade emergente em um governo com forte apelo popular e diálogo com a sociedade civil organizada.
A Política Territorial demarcou os territórios nos estados, forçando a criação de organismos da sociedade civil nos municípios e suas articulações em espirais crescentes e integradas das macrorregiões para os municípios, tornando-se o canal de comunicação entre as organizações populares e governo, por onde as políticas públicas passaram a ser realizadas.
O território Semiárido, muito antes da demarcação oficial de 2005, foi se constituindo nas lutas populares, de baixo para cima. Emblemática foi a ocupação da SUDENE em 1993 para protestar contra o desmando do governo Federal diante do sofrimento da população enfrentando a maior estiagem da nossa história. Daquela luta nasceu a ASA-PB (Articulação do Semiárido – Paraíba), que aglutinou diversas organizações populares espalhadas pelos sertões ressequidos do estado. Essa era uma dinâmica que se movia em todo território. Nos anos seguintes, a ASA se transforma em uma articulação nacional, aglutinadora de diversas e plurais organizações populares. Em 2004 o Presidente Lula cria o INSA, representando uma das rupturas paradigmáticas mais importantes do esforço institucional governamental na região, desde a época do Império.
O INSA nasce com a nobre missão de identificar e mobilizar possibilidades e potencialidades da região semiárida, definindo-a como uma região viável, em que o fenômeno da semiaridez pode apresentar vantagens e a ciência, tecnologias e inovações serem desenvolvidas com e para seus povos.
Entre 2003 e 2016 é o território Semiárido o espaço brasileiro que mais se transformou, tendo sido também, a população do semiárido a que mais obteve conquistas com as políticas públicas dos governos de hegemonia petista.
A convivência com a semiaridez passou de um conceito a um fato, como consequência do conjunto de transformações estruturais, agroecológicas, sociais, em combinação com o fortalecimento de mecanismos de reciprocidade comunitária, originados pela implementação de políticas públicas contextualizadas de respeito e convivência às condições climáticas dadas.
Destaca-se no período, entre outros o P1MC – Programa um Milhão de Cisternas que democratizou o acesso à água, matando a sede e viabilizando a produção de alimentos.
Acrescente-se neste período, a criação das universidades, centros de pesquisas, institutos tecnológicos, ônibus escolares, Minha Casa, Minha Vida, etc., que trouxeram enormes benefícios para as populações do Semiárido.
Há, contudo, que se destacar o diálogo efetivo dos programas sociais dos governos de hegemonia petista com as organizações populares que emergiram e se articularam desde os anos 1990. Em especial a ASA. Com a ASA se viabiliza o Programa que trouxe mais mudanças na vida das populações do Semiárido que mais sofrem com as estiagens – as cisternas. O diálogo e o fortalecimento das organizações sociais que executavam o Programa deu uma substância para programas como este em que o beneficio foi muito além da cisterna em si. O mesmo aconteceu com o PAA – Programa de Aquisição de Alimentos, Programa Nacional de Alimento Escolar, Programa de Agricultura Familiar e Bolsa Família.
De certa forma essas políticas sociais organizaram ou reforçaram as organizações populares no Semiárido, alterando não só a sua paisagem física, mas, sobretudo, a política. O Semiárido se tornou um espaço eleitoral petista. Mesmo nos piores momentos do PT no Brasil (2014 e 2018), no Semiárido os candidatos a presidente petistas venceram as eleições com largas margens de maioria.
Não se superou, porém, o fisiologismo, sobretudo, nas eleições parlamentares. E, ao contrário do que se possa imaginar, não há contradição nesse processo. Basta dizer que o candidato mais bolsonarista possível, se torna falso petista, falso lulista ou um político “neutro”, lavando as mãos nas eleições presidenciais em suas catas de votos no interior nordestino.
Sendo o Semiárido hoje esse espaço eleitoral petista, quais as tarefas do atual governo Lula neste espaço?
A tarefa principal e fundamental do governo Lula hoje no Semiárido é fortalecer as organizações populares. Como? Por meio das políticas públicas a serem implementadas nesse território. Portanto, os organismos federais que atuam no Semiárido precisam estar alinhados ao governo Lula, ao projeto de governo vencedor nas urnas. Não cabe bolsonaristas, nem gestores públicos camaleônicos, tentando se passar por progressistas, se adequar ao lulismo nesse momento. Essa situação trava o governo, desvia os objetivos declarados do Presidente Lula. Não funciona. É urgente limpar todos os bolsonaristas que ainda se disfarçam de progressistas para manter-se nos cargos e atuarem como agentes infiltrados no novo governo.
No Semiárido o conteúdo da política pública se vinculou fortemente à forma. Compreendam. Não se trata de levar cisternas ou tecnologias de produção para a agricultura familiar. Trata-se de construir com as organizações populares e os movimentos sociais políticas públicas participativas, onde a crítica às estruturas coronelísticas e assistencialistas é fortalecida e o status quo incisivamente negado, superado.
A convivência com o semiárido deve ser uma proposta cultural, que vise contextualizar saberes e práticas (tecnológicas sociais, econômicas e políticas), apropriadas à semiaridez, reconhecendo a heterogeneidade de suas manifestações sub-regionais; devem considerar, também, as compreensões imaginárias da população local sobre esse espaço, suas problemáticas e alternativas de solução, que foram sendo construídas e desconstruídas ao longo da história de sua ocupação.
Na perspectiva de convivência com a semiaridez, a gestão ambiental assume novos sentidos e significados, ao priorizar a busca por soluções apropriadas às condições locais, para que modifiquem as percepções e o comportamento em relação à natureza.
Só com participação popular, com os movimentos sociais historicamente alinhados às lutas dos trabalhadores, as conquistas no Semiárido avançarão.
No meio urbano, a principal política específica para o Semiárido é o de suprimento hídrico, infraestrutura de saneamento para uso e reuso d’água. Ademais, as politicas públicas para as cidades se assemelham as demais cidades do país. Além disso há que olhar para o meio urbano como um espaço estratégico para a produção de alimentos. Ao final são importantes consumidores de recursos e passivos socioambientais.
Enxergamos assim, as 1.427 cidades do Semiárido e todos seus sítios urbanos, como potenciais fontes de águas de reuso aptas a serem utilizadas na produção de alimentos e forragem animal.
O grande desafio no Semiárido, portanto, é estruturar políticas públicas adequadas, de convivência no espaço rural.
Neste aspecto, creio ser fundamental estruturar eixos de ações e meios de execução de políticas públicas, fortalecendo o meio “rururbano”, pois parcela significativa das áreas urbanas vivencia, de fato, a dinâmica rural, já que 90% dos municípios do Semiárido são classificados como pequenos (inferiores a 50.000 habitantes).
No Semiárido rural, 90% da população praticam a agricultura familiar. Por óbvio é fundamental fortalecer esse setor, numa agricultura familiar sob os preceitos da agroecologia. Isto é, ambientalmente limpa, socialmente justa, igualitária e participativa. Uma agricultura familiar que dialogue com as práticas históricas dos movimentos sociais alinhados ideologicamente à Via Campesina. Crédito, ciência, tecnologia, assistência técnica e inovações devem ser nessa direção.
Por que uma Agricultura Familiar de base agroecológica? Porque a agroecologia afirma-se na sociedade assumindo três concepções plenamente em sintonia com as exigências sociais e ambientais planetárias:
a) como teoria crítica que elabora o questionamento radical à agricultura empresarial, social e ambientalmente predatória, fornecendo simultaneamente as bases conceituais e metodológicas para o desenvolvimento de agroecossistemas sustentáveis;
b) como uma prática social adotada explicita ou implicitamente em coerência com o equilíbrio socioambiental planetário;
c) como um movimento social que mobiliza atores envolvidos, prática e teoricamente, no processo de transição agroecológica, assim como, crescentes contingentes da sociedade engajadas em defesa da justiça social, da saúde ambiental, da soberania e segurança alimentar e nutricional; da economia solidária e ecológica, da equidade de gênero e de relações mais equilibradas entre o mundo rural e urbano. Em sínteses a agroecologia fornece as bases científicas e metodológicas para uma transformação social.
Os sistemas fundados em princípios agroecológicos são mais biodiversos e resistentes; eficientes energeticamente; socialmente justos e constituem os pilares de uma estratégia energética e produtiva vinculada à noção de soberania alimentar.
Estudos realizados pelo núcleo de desertificação e agroecologia do INSA mostram que, contrário ao que se pensava, a Caatinga é uma excelente sequestradora de carbono (CO2). As estimativas indicam valores de sequestro de carbono variando entre 5 à 2 toneladas por hectare ano. Considerando um valor médio de R$ 60,00 por tonelada de carbono sequestrado, daria um valor de R$ 287,50 por hectare. Mas ainda, numa Caatinga em pé, o total de Carbono Estocado por hectare é da ordem de 125 toneladas. Isto implica a necessidade de implantação urgente de um programa de crédito social de carbono para o bioma Caatinga. Combatendo a desertificação e mudanças climáticas com impacto econômica positivo.
Aproveitar as vantagens comparativas dos aspectos físicos do território para a produção de energias renováveis, limpas. Pressupõe, portanto, sem prejuízos à vida humana e animal plenas, como no atual modelo, em que a lógica do capital tem submetido à lógica da vida vegetal e animal.
É fundamental se converter a matriz curricular educacional em um instrumento de valorização do lugar semiárido, do clima semiárido, da cultura local. A educação no Semiárido precisa se tornar um instrumento para a boa prática na convivência com o Semiárido, seja na produção, na cultura, em toda vida.
Nos próximos anos será fundamental ampliar e consolidar essas políticas públicas, com a participação efetiva e democrática das populações viventes nessa parte do Brasil. Por suas características climáticas e fisiográficas, as intervenções na região devem maximizar os benefícios socioeconômicos para a geração atual, preservando a qualidade ambiental e as capacidades produtivas para as gerações futuras, garantindo assim a manutenção da produtividade biológica – garantias do desenvolvimento sustentável. A região Semiárida do Brasil continua sendo um grande desafio para o Brasil devido à sua extensão territorial e elevada população, o que exige um maior comprometimento dos governos e da sociedade brasileira. São muitas as potencialidades a serem equacionadas e trabalhadas de forma a assegurar dignidade e felicidade as pessoas que aqui vivem.
Os meios para essas políticas, os governos petistas já conhecem dos períodos anteriores. Cabe agora, a decisão política e a ocupação das instituições federais desse território por quadros afinados com esse projeto, com competência, capacidade de articulação e mobilização para viabilizar a execução de tais tarefas.