07 Novembro 2022
"Autoritarismo, patriarcalismo, machismo, racismo, a homofobia, a aporofobia (o medo e ódio irracional contra os pobres) e xenofobia (a fobia contra imigrantes) uniram essa grande aliança em torno de Bolsonaro, no Brasil, como em torno de Trump e outros líderes mundiais autoritários e negadores dos direitos humanos", escreve Jung Mo Sung, professor do PPG em Ciências da Religião, da Universidade Metodista de São Paulo.
No final da noite do dia 30 de outubro, o mundo conheceu o resultado da eleição presidencial do Brasil, com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, e muitos sentiram-se aliviado com esse resultado.
Por que alguns dos principais líderes políticos do mundo, dos meios de comunicação e até mesmo revistas científicas internacionais assumiram publicamente o apoio à candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva à eleição presidencial no Brasil, contra a candidatura do atual presidente Bolsonaro? Lula, um político que durante a sua vida inteira foi da esquerda (líder sindical, principal líder do Partido dos Trabalhadores e presidente do país por dois mandatos), ser apoiado pela revista Economist, uma das mais importantes do mundo capitalista, mostra que algo está estranho no mundo. O presidente Bolsonaro é um político da extrema direita que, no início da pandemia de Covid19, foi contra a vacina política de saúde que gerou quase 700 mil mortes no país, mas pró capitalismo neoliberal, com apoio da grande parte do mercado financeiro no Brasil. O que esteve em jogo?
Para além da má gestão da pandemia, do armamento da população civil, temos o grande problema da questão ecológica, com a política do seu governo de apoiar o desmatamento para atender os interesses econômicos do setor agropecuário. Mas, penso que há algo mais profundo que está acontecendo no mundo e aparece mais claramente na eleição no Brasil e em outros países. As sociedades estão se dividindo de uma forma radical, sem capacidade de um lado dialogar um com outro. No caso específico do Brasil, Lula ganhou a eleição com 51% dos votos válidos, enquanto que Bolsonaro, 49%. A questão não é somente uma divisão quantitativa, mas um conflito sobre o caminho civilizatório que devemos assumir e, por isso, os dois lados não são capazes de dialogar de forma civilizada.
Frente ao atual presidente, que se elegeu em 2018, com uma aliança entre neoliberais e cristãos evangélicos conservadores e quer romper as regras democráticas, setores defensores da democracia se uniram no segundo turno da eleição em uma frente ampla democrática (incluindo economistas neoliberais, políticos do centro-direita e centro) em torno do ex-presidente Lula. A questão não era mais ser da direita ou da esquerda, mas a escolha entre um governo autoritário ou fascista e um presidente democrático. E essa frente ampla ganhou a eleição com apenas 51% dos votos. O que significa que a democracia, conquistada após décadas da ditadura (1964 a 1985), não é mais um valor importante para a metade da população.
No lado do Bolsonaro, a aliança foi construída em torno de projetos econômicos neoliberais (com a radicalização da lógica do Mercado Livre) e a chamada “pauta de moral e costumes”, isto é, a manutenção do modelo tradicional e patriarcal da família, com o casamento exclusivo dos heterossexuais, e a luta contra o direito de igualdade das mulheres, dos negros, indígenas na vida cotidiana. O que há de comum entre os neoliberais e esses conservadores? Os neoliberais e que assumem existencialmente a cultura de consumo são normalmente da cultura pós-moderna, enquanto que os conservadores cristãos biblicamente fundamentalistas são antimodernos.
O que une esses dois grupos são as lutas contra os valores fundamentais do mundo moderno: a democracia e os direitos humanos. Um dos pilares da democracia é a noção de que os conflitos sócio-políticos devem ser solucionados por meios pacíficos e de diálogos, não de forma autoritária, e todos cidadãos têm o direito de participar nesse debate por meio de votos. Por outro lado, a noção de direitos humanos (que inclui os direitos civis de não ser tratado como inferior por seu sexo, cor ou religião; os direitos políticos; e os direitos sociais, como o de ter acesso a alimentação, educação, saúde...) dá aos grupos subalternos na sociedade a legitimidade social e jurídica de lutar por seus direitos. O que significa que as mulheres, negros, indígenas, pobres, LGBTs, imigrantes e outros têm direitos iguais e, em contrapartida, o Estado tem o dever de garantir esse ambiente econômico-social. E nas últimas três décadas vimos a aglutinação das mais diferentes lutas sociais e políticas. Com isso, a forte reação dos neoliberais e conservadores.
Autoritarismo, patriarcalismo, machismo, racismo, a homofobia, a aporofobia (o medo e ódio irracional contra os pobres) e xenofobia (a fobia contra imigrantes) uniram essa grande aliança em torno de Bolsonaro, no Brasil, como em torno de Trump e outros líderes mundiais autoritários e negadores dos direitos humanos.
E no fundo dessas características comuns desses grupos, encontramos uma visão da humanidade dividida e classificada entre os “superiores” e os “inferiores”. Não em termos de superior ou inferior em questões de função em um sistema de trabalho, por exemplo entre o chefe e subordinado em uma empresa, mas em da dignidade humana. Homem seria superior às mulheres, branco sobre os não-brancos, rico sobre pobres, cristão sobre de outras religiões, heterossexual sobre homossexual, etc. Na medida em que esse critério não tem um fundamento científico, se usa um discurso religioso ou uma ideologia parecida com uma religião.
Nos países da tradição cristã, ou em países em que há um número significativo de cristãos, se criou e usa uma teologia que inverte os valores do Evangelho: os ricos são abençoados por Deus e os pobres são amaldiçoados, portanto, ajudar os pobres são tentações diabólicas; os cristãos são superiores aos outros, etc. Enquanto que no Novo Testamento, o Paulo ensina que, aos olhos de Deus não há diferença entre livre e escravo, homem e mulher, judeu e gentil. É claro que o Paulo sabe que havia um sistema sócio-político que diferenciava e hierarquiza entre esses grupos sociais, mas o que ele quer afirmar é que essas classificações desumanizadoras não vêm de Deus, mas do “mundo”. Isto é, em Cristo todos seres humanos são iguais, todos portadores da dignidade humana e amados por Deus.
O que está em jogo no mundo hoje é a escolha entre uma visão do mundo em que todos seres humanos são considerados como iguais em dignidade e direitos fundamentais e a outra que afirma que não há direitos humanos, nem todos são iguais em dignidade e que os pobres não têm o direito de viver dignamente.
E as disputas políticas e eleições estão se dividindo em torno dessas duas visões fundamentais. No Brasil, Lula e o projeto de uma sociedade mais democrática e socialmente mais justa venceram a eleição, mas as batalhas vão continuar por muito tempo. Nessas batalhas, precisamos diferenciar dois aspectos dessa relação entre a política e a fé cristã. As lideranças cristãs pró-Bolsonaro usaram explicitamente a Bíblia, as Igrejas e os cultos para nessa eleição. Fizeram a campanha eleitoral em nome da fé e indicaram o candidato Bolsonaro como o enviado por Deus. Esse tipo de relação entre a política e a fé na igreja é errada. Mas, dizer que o cristianismo não tem nada a ver com essas questões políticas em um sentido mais amplo dos problemas sociais e éticas também é equivocada. Pois isso significaria que Deus não se importa com os sofrimentos das pessoas e com as injustiças no mundo.
O que esteve em jogo na eleição de Lula foi algo fundamental à nossa civilização: a democracia, os direitos humanos e a convicção que todos seres humanos são iguais na sua dignidade. Agora começa outra etapa: como realizar a justiça social, em um sentido amplo, em um mundo marcado pelo capitalismo neoliberal globalizado e por conflitos de interesses econômico-políticos entre os 1% mais rico e os 99% dos pobres.
Para as comunidades cristãs, temos o desafio de pensar e dialogar sobre a fé e a política para que possamos agir na sociedade com eficiência e fidelidade ao ensinamento de Jesus.
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A eleição presidencial no Brasil: o que está em jogo? Uma reflexão político-teológica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU