01 Outubro 2022
Giuseppe Verdi e o sagrado: ele observava os ritos e criou uma obra-prima como a “Missa de Réquiem”. Para seu funeral, quis “um padre, uma vela, uma cruz”, embora se declarasse pouco crente.
O comentário é de Raffaele Mellace, decano da Escola de Ciências Humanísticas da Universidade de Gênova, na Itália. O artigo foi publicado em Il Sole 24 Ore, 18-09-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Dificilmente causará surpresa que Verdi não tenha confiado reflexões de ordem existencial a páginas de um diário íntimo. Quem se interessar pelo seu olhar sobre a realidade terá que ler nas entrelinhas de mais de 15 mil cartas ou confiar na voz de quem era mais próximo dele. Ainda mais em termos de convicções religiosas, a respeito das quais somos assistidos por duas testemunhas que, mais do que outras, tiveram acesso à intimidade do compositor maduro.
Acima de tudo, a segunda esposa, Giuseppina Strepponi, que em 1872 assim descrevia o companheiro de meio século de existência:
“É uma pérola de homem honesto, entende e sente cada sentimento delicado e elevado, mas esse bandido se permite ser, não diria ateu, mas certamente pouco crente, e isso com uma obstinação e uma calma o suficiente para se querer bater nele. Eu anseio para lhe falar sobre as maravilhas do céu, da terra, do mar etc., etc. Fôlego perdido! Ele ri na minha cara e zomba dos meus momentos de oração, do meu entusiasmo todo divino ao me dizer: ‘Você está louca’, e desgraçadamente ele diz isso de boa fé.”
Juntemos a viva cena agora descrita com as recordações que Arrigo Boito, o intelectual e amigo mais próximo do último Verdi, confiou a Camille Bellaigue no décimo aniversário da morte do mestre:
“A Véspera de Natal lhe recordava as santas magias da infância, os encantos da fé, que não é verdadeiramente celeste senão quando se eleva até à fé cega no prodígio. Essa fé cega, infelizmente, ele a havia perdido, como todos nós, muito em breve. Mas conservou por toda a sua vida, talvez mais do que todos nós, uma nostalgia pungente dela. Ele deu o exemplo da fé cristã por meio da comovente beleza de suas obras sagradas, pela observância dos ritos (você se lembrará de sua bela cabeça abaixada na capela de Sant’Agata), pela sua ilustre homenagem a Manzoni, pela prescrição de seu funeral encontrada em seu testamento: ‘Um padre, uma vela, uma cruz’. Ele sabia que a Fé é o sustento dos corações. Aos trabalhadores dos campos, aos infelizes, aos aflitos que o cercavam, ele se oferecia como exemplo, sem ostentação, humildemente, severamente, para ser útil às suas consciências... Em sentido ideal, moral, social, era um grande cristão: mas é preciso cuidar para não o apresentar como um católico em sentido político e estritamente teológico do termo.”
Perspectivas diferentes, mas convergentes, ao retratar uma figura de grande profundidade, enraizada em um húmus cultural cristão e ao mesmo tempo zelosamente apartada em uma sacada de onde observava a realidade a partir de uma perspectiva pessoal. Sob a insígnia daquela autonomia de pensamento que foi a divisa mais autêntica do homem e do artista.
A esse homem devem-se dois dos projetos mais significativos em termos de sagrado na música de todo o século XIX: a “Missa de Réquiem” e as “Quatro peças sagradas”, última aventura de uma parábola criativa extraordinariamente longa.
Se a produção eclesiástica comum o havia comprometido ainda jovem em Busseto, foi com a maturidade mais tardia, quando faltariam apenas dois títulos em seu catálogo e se aquietaria a animada frequentação às cenas, que o sagrado voltou a seduzir Verdi em termos muito pessoais.
Meditada desde a morte de Rossini, a ideia da “Missa de Réquiem” tornou-se, com a morte do venerado Manzoni, “necessidade do coração”, como o compositor se expressou ao oferecer o trabalho ao prefeito de Milão. Fruto de uma inspiração íntima, ao mesmo tempo um tributo a uma suma glória nacional e um olhar pensativo sobre o destino do ser humano, encenado inúmeras vezes, mas contemplado agora, sem o filtro da ficção dramática, na sua nudez inapelável. Com uma autenticidade imediatamente reconhecida a ele na exigente Alemanha: “Giuseppe Verdi é o compositor do Réquiem para a aristocracia musical”, sentenciou o Kölnische Zeitung. Expressão existencial que reapareceu no limite da vida criativa nas “Quatro peças sagradas” completadas em 1897, assim como na Missa, mais para a sala de um teatro do que para a igreja, em que o legado da civilização nacional (Dante, Palestrina) é repensado com poderosa síntese pessoal por meio de quatro títulos muito diferentes.
Como na ópera “Falstaff” de alguns anos antes, o incansável investigador do coração humano nunca deixou de ir além das convenções da época, também nesse âmbito, o mais consoante com a pensativa reflexão do musicista octogenário.
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Giuseppe Verdi e a nostalgia da fé perdida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU