23 Julho 2022
"O pensamento filosófico ocidental da modernidade é carente de perspectiva: o princípio em torno do qual gira é o eu, sua realização pessoal, e o outro é considerado completamente externo (portanto estranho), aliás, até inimigo, na medida que limita a liberdade do indivíduo. O que se faz necessário, portanto, é uma verdadeira inversão de posições, ou seja, a atribuição de primazia ao outro que nos interpela a partir da própria indigência e solicita a nossa responsabilidade independentemente de qualquer expectativa de contrapartida, com a superação, portanto, também do modelo da reciprocidade e sua substituição pelo da gratuidade e da doação."
A opinião é do teólogo italiano Giannino Piana, ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, na Itália, e ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas, em artigo publicado por Il Gallo, julho-agosto-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Ferdinand Tonnies em seu texto clássico Comunidade e sociedade distingue duas tipologias diferentes de organização social que ele considera contrapostas: a comunidade (Gemeinschaft) e a sociedade (Geselschaft). A primeira pertence a um contexto social fechado e estático e fundamenta-se no sentimento de pertencimento e na participação espontânea das pessoas; a segunda é típica da sociedade industrial moderna e se caracteriza pela racionalidade e pela troca de equivalentes.
No caso da comunidade, os laços que unem as pessoas são naturais e imediatos; naquele da sociedade, a separação originária entre os sujeitos é superada de forma extrínseca pela presença de fatores estruturais destinados a superar os conflitos por meio da produção de regras adequadas e fazê-los convergir para objetivos comuns.
A reflexão de Tonnies sobre as duas formas de estruturar a vida associada ainda hoje conserva sua plena atualidade, e infelizmente a contraposição que ele previu ocorreu efetivamente (aliás, se acentuou), dando um caráter absoluto ao sistema societário e incorrendo - é a crítica que o próprio Tonnies move - em uma forma de contratualismo exasperado e subjetivismo perigoso.
Ora, que a estrutura corporativa tenha a prevalência é um dado indubitável e insuperável, vistas as profundas mudanças estruturais que ocorreram após os desenvolvimentos da tecnologia atual; mas isso não exclui (e não pode excluir) - nisso discordamos da radicalidade das posições do sociólogo e filósofo alemão - que elementos comunitários possam ser recuperados mesmo na sociedade atual, e que essa recuperação constitua um fator de grande enriquecimento para os desenvolvimentos da vida associada.
O que confere um assenso concreto a tal possibilidade é o magistério social do Papa Francisco, que introduz na encíclica Fratelli tutti, como paradigmas a que se referir para construir as relações sociais: a fraternidade universal e a amizade social. Enquanto a primeira - a fraternidade universal - que nasce da comunalidade de natureza e encontra para aqueles que acreditam sua razão última em ser filhos do único Pai e irmãos em Cristo, nos une a toda a humanidade e nos torna responsáveis pelo destino da todos os homens; a segunda - a amizade social, - que tem como referentes as pessoas com as quais se entra em contato direto e com quem se desenvolvem relações imediatas nas diversas esferas da vida associada, tem como objetivo a humanização das relações sociais.
É como dizer - e o Papa Francisco bem esclarece - que o que dá conteúdo humanizante às relações sociais é uma forma de amizade que confere à estruturação da sociedade uma alma comunitária, que a tira de uma condição de anonimato e de burocratização e confere às relações as conotações da proximidade, provocando um verdadeiro envolvimento pessoal. Não é essa a ideia básica que está na raiz da "teologia do povo" na qual o pontífice inspira seu ensinamento doutrinal e sua conduta pastoral? O povo aqui referido não é uma massa anônima e toda igual; é formado por pessoas que interagem entre si de forma positiva com suas diferenças culturais que, se devidamente enfrentadas, favorecem um enriquecimento mútuo.
A implementação dessa proposta que personaliza as relações sociais, criando de baixo um tecido que anima a vida da sociedade a partir de dentro, e que, por sua vez, se alicerça em dinâmicas estruturais e institucionais que não podem ser ignoradas, deve acertar as contas com uma série de obstáculos que criam forte resistência e que devem ser decididamente combatidos. Vão desde a ampliação da área social, com intercâmbios cada vez mais frequentes que não permitem verdadeiros aprofundamentos, até a prevalência do "virtual" sobre a realidade - com o desaparecimento das coordenadas espaciais e temporais (as relações se desenvolvem em um espaço ilimitado e em um tempo real, com a consequência de uma “dessituação” que causa anonimato) -; desde o avanço, em termos cada vez mais consistentes, do fenômeno da emigração, com a dificuldade de se confrontar, em tempo curtos, com tradições culturais e religiosas que se chocam com as constantes da cultura ocidental, até a perda de consciência histórica e, portanto, das referências estáveis herdadas do passado e o consequente esvaziamento dos valores com a impossibilidade de elaborar projetos para o futuro (Fratelli tutti, n. 13-15); até - e este é talvez o fator mais importante - a afirmação de uma "cultura da subjetividade" que nasce de uma visão individualista e privada da vida com uma adesão incondicional à lógica do desejo.
Diante dessa situação, o que fazer? Como reagir a processos estruturais e culturais que parecem invencíveis? É evidente a necessidade de uma mudança radical de mentalidade, de uma verdadeira metanoia, que se traduza numa nova forma de viver marcada pela redescoberta do vínculo que temos com os outros. Trata-se - como ainda nos lembra o Papa Francisco - de abandonar as falsas certezas que "estreitam o horizonte para se abrir aos grandes ideais que tornam a vida mais bela e mais digna" (Fratelli tutti, 55). A "proximidade" e a "solidariedade" no respeito às diferenças devem assumir as características de uma forma de responsabilidade em exercício.
Nesse contexto e com esses pressupostos de valores, é também necessário enfrentar a questão dos migrantes. A atitude básica deve ser a de acolher, implementando processos e modalidades concretas de integração, o que pressupõe o respeito às regras de nossa sociedade e dando vida a formas de interação entre os nossos modelos culturais e os das populações que ocupam cada vez mais massivamente o nosso território.
A possibilidade de que isso aconteça está estreitamente ligada à recuperação do valor da alteridade. O pensamento filosófico ocidental da modernidade é, nesse sentido, carente de perspectiva: o princípio em torno do qual gira é o eu, sua realização pessoal, e o outro é considerado completamente externo (portanto estranho), aliás, até inimigo, na medida que limita a liberdade do indivíduo. O que se faz necessário, portanto, é uma verdadeira inversão de posições, ou seja – como nos ensinou Emmanuel Levinas - a atribuição de primazia ao outro que nos interpela a partir da própria indigência e solicita a nossa responsabilidade independentemente de qualquer expectativa de contrapartida, com a superação, portanto, também do modelo da reciprocidade e sua substituição pelo da gratuidade e da doação. Na raiz dessa visão, que assume conotações radicais em Lévinas, está a passagem do indivíduo à pessoa, que é, ao mesmo tempo, uma realidade única e irrepetível e um sujeito relacional (de e em relação). A relacionalidade, longe de ser neste caso algo inesperado e acidental, pertence de forma constitutiva à essência do sujeito, como nos lembram algumas correntes filosóficas contemporâneas: da fenomenologia ao existencialismo, do personalismo ao pensamento judaico. Isso então conflui numa visão da ação humana em que o critério de juízo e o princípio de ação é a caridade. Nesse sentido – como sugere a Fratelli tutti - a fraternidade universal e a amizade social aparecem como dois polos dialeticamente copresentes, que remetem às duas dimensões do amor como fatores conecessários, dos quais fluem profundidade e extensão, intensidade e universalidade.
Mas as escolhas pessoais não são suficientes. O intrincado nó a ser desatado é a passagem para a política com as tantas limitações induzidas pelo atual contexto social, mas também ligadas a aspectos estruturais de sempre não facilmente superáveis. A esse respeito Roberto Esposito em dois ensaios posteriores - Communitas. Origem e destino da comunidade (Einaudi 1988) e Immunitas. Proteção na vida (Einaudi 2002) - focaliza possibilidades e limites, chamando em causa os dois conceitos de communitas e immunitas. O primeiro é o horizonte relacional em que o munus (dom) é trocado sem nenhum enraizamento identitário - nada a ver, portanto, é preciso dizer claramente, com a concepção fechada e defensiva dos comunitaristas e soberanistas de hoje -; o segundo implica a isenção da obrigação e do dom e, consequentemente, tende a pôr uma trava à abertura indiscriminada que corre o risco de se revelar insustentável.
Comentando os dois textos de Esposito e focando na necessária relação dialética, Pietro Del Soldà, em recente artigo publicado em Il Sole 24 Ore, escreve: “Não existe comunidade sem um sistema imunitário que tutele a sua integridade, e, no entanto, demasiada imunidade (uma excessiva "ausência de dons", ou seja, o fechamento total para o exterior) sufoca a comunidade enfraquecendo-a por dentro, justamente como uma síndrome autônoma" (Não há imunidade sem comunidade, 20 de março de 2022, p. X). A reconciliação dos dois polos em tensão permite assim encontrar o sentido mais profundo da vida comunitária, cuja importância se revelou mais necessária e mais urgente depois da recente pandemia que evidenciou a presença de um destino comum ("ninguém se salva sozinho") e a exigência de ser, consequentemente, vigilantes contra aqueles dispositivos imunitários, que, provocando fortes fechamentos ao mundo exterior, são a principal causa das atuais desigualdades econômicas e da tensão aparentemente inevitável entre liberdade e igualdade.
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Retorno à comunidade. Artigo de Giannino Piana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU