O Brasil ou 120 dias de Sodoma

Foto: Pixnio

14 Julho 2022

 

"Somos portadores de dignidade. É fato. Mas tudo mais também é! Se não nos dedicarmos à convivência harmoniosa com tudo e com todos, a verdadeira fraternidade não acontecerá, ainda que prevista em diversas normas jurídicas, como a Constituição de 1988. Afinal, a inefável brincadeira de 'ser deus' na Caixa Econômica Federal aconteceu sob a égide de uma democracia liberal, em um Estado Democrático de Direito", escreve Adriano Versiani, advogado e mestrando em história e conexões atlânticas pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA.

 

Eis o artigo.

 

Têm causado uma espécie de depressão cívica[1] as notícias veiculadas sobre o que recentemente aconteceu na Caixa Econômica Federal envolvendo seu ex-presidente. As narrativas, a cada dia mais escatológicas, remetem ao filme 120 dias de Sodoma, de Pier Paolo Pasolini, realizado em 1975 e inspirado em novela do Marquês de Sade.

 

 

A película, para além de ser uma ode à bizarrice, se propõe a encarar o absurdo. Como o ser humano pode se valer do mal e praticar toda sorte de atos espúrios, que vão do nojento ao impensável. O roteiro traz uma mansão fechada onde alguns jovens são levados, sob a égide de um regime fascista, a padecer de todo tipo de tortura. Não há um minuto de fôlego. A todo momento, os personagens deixam claro que a vida dos jovens ali não será fácil. E de fato não é. Assistir ao filme não é fácil.

 

Hegel é um filósofo que muito nos ensina sobre o impacto da arte na vida. Em muitas de suas obras, recorre à estética da mitologia grega quando pretende citar exemplos. É assim no texto Sobre as maneiras científicas de tratar o direito natural, onde apresenta como exemplo maior de sua totalidade ética a tragédia das Eumênides. Como diz a apresentação ao livro “Hegel usa o discurso estético para expressar o que é a diferenciação do absoluto ético”[2].

 

Sim, a arte conta com uma enorme potência para dizer o real, ainda que seja ficção. A metáfora é acontecimento. Ela é e representa. Há um belíssimo pensamento de Santo Agostinho, exposto no livro O mestre, onde afirma o seguinte: “(...) ainda neste caso não fazemos mais que rememorar, pois a memória, a que estão inerentes as palavras, revolvendo-as faz vir ao espírito as próprias coisas, de que as palavras são sinais”[3] . As memórias e as palavras fazem surgir no espírito as próprias coisas. Luiz Costa Lima certa vez disse que embora a ficção não tenha relação direta com o verdadeiro, não tem nada a ver com o falso[4]. É além. Ela existe e nos diz o real.

 

Perguntássemos, alguns anos atrás, se alguém diria que no serviço público Brasileiro, pertencente a uma República Federativa constituída por um Estado Democrático de Direito, seria possível advir fatos como os que aconteceram no banco público citado, a resposta seria invariavelmente negativa. Mas a arte diria que sim. 120 dias de Sodoma diz que sim, Batismo de sangue diz que sim, Terra em transe diz que sim, o recente Marighella também diz que sim.

 

 

Recorramos a um só exemplo do que disseram vítimas de assédio moral ao aludirem o fato do gestor do banco colocar pimenta em suas comidas[5]. Não há outro nome para definir o acontecido. É sadismo.

 

 

O Papa Francisco, por ocasião da nova redação do n. 2267 do Catecismo da Igreja Católica, que trata especificamente sobre a pena de morte, teceu reflexões importantes acerca da dignidade humana. Ao que aqui nos interessa, o Sumo Pontífice afirmou que “a dignidade da vida humana nunca deve ser negada, nem sequer a quem praticou o mal” e que tal dignidade não se perde, nem mesmo a quem tenha cometido gravíssimos delitos[6].

 

Ora, se a ninguém é dado perder sua condição humana de dignidade, como pode ser possível esse acontecimento? O que pensa a pessoa que praticou tais atos? Por que o fez? O acontecido é estarrecedor. Dói na alma.

 

O livro de (33, 6) também diz que “para Deus eu sou teu igual, como tu, modelado de argila”[7]. Se somos iguais, todos “modelados de argila”, como alguém poderia se portar de tal maneira? Leonardo Boff, em seu recente Habitar a terra: qual o caminho para a fraternidade universal? nos apresenta uma chave para compreender o ocorrido, a chave é a vontade de poder.

 

E nele há um questionamento que lembra o livro de , pois diz Boff que todos viemos do mesmo humus e, por isso, um sentimento de humildade, de nos juntar ao próximo na mesma terra que compartilhamos, deve nos servir como antídoto à vontade de poder que, para ele, constitui o “mais perigoso arquétipo, pois lhe dá a ilusão de ser como Deus, dispondo a seu bel-prazer o destino e eventualmente a vida e a morte dos outros”[8].

 

Tenho por prática sempre recorrer à Pequena Filocália, gosto daquelas reflexões, pensamentos e poemas da vida cuidadosamente selecionados. Há um trecho da versão da editora vozes, atribuído a Abba Silvain, que diz o seguinte:

 

Um irmão perguntou a um ancião: Que tipo de pensamentos devo ter no coração? O ancião respondeu: tudo que o homem pode pensar, do céu à terra, é vaidade. Aquele que persevera na lembrança de Jesus, este está na verdade. O irmão lhe disse: E como chego a Jesus? O labor da humildade e a oração incessante farão que todos cheguem a Jesus (...)[9].

 

O trabalho da humildade, que deve ser praticado por todos nós, nos aproxima de Deus. Nos aproxima de uma boa energia, de algo que faz bem a toda humanidade. Se fazer de deus, pela vontade de poder, é o contrário disso e, portanto, contrário ao ensinamento acima colocado, a muitos outros mandamentos cristãos e, imagino, de muitas outras religiões.

 

Ao homem não é dado brincar de ser deus, aliás não é dado nem mesmo definir Deus, o que nos leva à conclusão de que brincar de se deus é algo absurdo e inegavelmente equivocado. Somos menos, muito menos. O salmo 8 nos dá a exata dimensão disso ao pontuar:

 

“Quando vejo o céu, obra dos teus dedos,
A lua e as estrelas que fiaste,
Que é o homem, para dele te lembrares,
E um filho de Adão, para vires visitá-lo?
E o fizeste pouco menos que um deus,
(...)
Iaweh, Senhor Nosso,
Quão poderoso é teu nome
Em toda terra!

 

Somos portadores de dignidade. É fato. Mas tudo mais também é! Se não nos dedicarmos à convivência harmoniosa com tudo e com todos, a verdadeira fraternidade não acontecerá, ainda que prevista em diversas normas jurídicas, como a Constituição de 1988. Afinal, a inefável brincadeira de “ser deus” na Caixa Econômica Federal aconteceu sob a égide de uma democracia liberal, em um Estado Democrático de Direito.

 

Notas

 

[1] Refiro-me à expressão tal como utilizada por Eduardo Guerreiro Losso em Depressão cívica: sofrimento psíquico por agressão à democracia. Disponível aqui. Acesso em 6 de julho de 2022.

[2] HEGEL, G. W. F. Sobre as maneiras científicas de tratar o direito natural. Edições Loiola: São Paulo, 2007, p.25.

[3] AGOSTINHO, Santo. O mestre. 3.ed. Landy Editora: São Paulo, 2006, p.15.

[4] Nos rastros do ficcional: Uma conversa sobre "O chão da mente", de Luiz Costa Lima. Disponível em: <Nos rastros do ficcional: Uma conversa sobre "O chão da mente", de Luiz Costa Lima>. Acesso em 6 de julho de 2022.

[5] Disponível aqui. Acesso em 7 de julho de 2022.

[6] Disponível aqui. Acesso em 6 de julho de 2022. O podcast uma conversa, produzido e realizado pelos padres Pedro Luiz e Alexandre Ferreira tem um excelente episódio onde aborda o conteúdo citado e que inspirou o presente texto, embora com abordagem diferente. Disponível aqui. Acesso em 5 de julho de 2022.

[7] Bíblia de Jerusalém. 14.ed. São Paulo: Paulus, 2020, p.842.

[8] BOFF, Leonardo. Habitar a terra: qual o caminho para a fraternidade universal? Editora Vozes: Petrópolis, 2022, p. 37.

[9] Pequena Filocália. Petropolis: Vozes, 2022, p.54.

 

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