Após experiências traumáticas com obras de infraestrutura como a Transamazônica, povo Arara publica protocolos de consulta para garantir direito ao território e se preparar para uma nova fase de luta.
A reportagem é de Clara Roman, publicada por Instituto Socioambiental, 30-05-2022.
Na mesa do auditório da Universidade Federal do Pará, Ororigó Arara compartilha com a plateia os relatos de sofrimento que chegaram até ela por meio de sua mãe. É o dia do lançamento do Protocolo de Consulta de seu povo, um documento que detalha como os Arara devem ser consultados quando os não indígenas quiserem fazer qualquer coisa que tenha impacto em suas terras. Ororigó relembra os ensinamentos de sua mãe: “ela me falava que os brancos são ruins, que nosso povo sofreu muito. Minha mãe sofria muito andando comigo, os madeireiros não deixavam a gente dormir nem de dia e nem de noite”, conta.
O sofrimento dos Arara é consequência direta de uma obra feita durante a ditadura militar. No trecho paraense da Rodovia Transamazônica, a BR-230, o território Arara foi cortado ao meio e trouxe o não indígena para a região. A obra foi feita sem considerar os direitos do povo Arara e de outros indígenas que viviam na região, e que foram afetados diretamente. Para que algo assim nunca mais aconteça, os Arara lançaram seus protocolos de consulta.
São dois protocolos: um escrito pelos Arara da Terra Indígena (TI) Cachoeira Seca (Iwaploné endyt Ugorog’mó tantpót karei inabyly wa) e outro pelos Arara da TI Arara (Iwaploné Karei Emiagrin Idandyt Tjimna). Nos documentos, os indígenas definem as regras para a consulta em cada território. O direito de consulta aos povos originários e tradicionais é estabelecido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Isso significa que nenhum empreendimento que tenha impacto nas TIs pode ser feito sem antes escutar os moradores. Essa consulta tem que cumprir um protocolo claro, estabelecido pelos indígenas.
Durante a construção da Transamazônica , nas décadas de 1970 e 1980, os Arara foram obrigados a mudar sua vida. De uma existência livre, andando pela mata, eles passaram a viver com medo, fugindo dos não indígenas, ouvindo barulhos que pareciam explosões, sem nunca permanecer muito tempo em um lugar. Anos se passaram desse jeito, com as comunidades resistindo, até que a situação se tornou insustentável e elas decidiram fazer o contato com os não indígenas. De um grande território que se estendia do Rio Tapajós até o Rio Iriri (veja o mapa), os Arara se fixaram em áreas muito menores na beira do Iriri.
(Foto: Reprodução | Instituto Socioambiental)
Um dos grupos, que fez contato em 1983, se fixou no que hoje é a Terra Indígena Arara. Outro grupo fez o contato em 1987, e é considerado de recente contato; são os Arara da TI Cachoeira Seca. Anos depois, no início da década de 2010, outra obra atropelou o destino dos Arara: a Usina Hidrelétrica de Belo Monte. A obra trouxe uma nova leva de não indígenas para a região - os karei - e uma onda de invasões, sobretudo na TI Cachoeira Seca (veja o mapa).
E, apesar de tanto desrespeito, os Arara se definem como um povo alegre. Alegre, forte e resistente. Assim eles escreveram em seu protocolo de consulta. Foram dias de festa nos dois territórios durante o lançamento dos documentos. Na aldeia Iriri, da TI Cachoeira Seca, e na aldeia Laranjal, da TI Arara, eles caçaram, pescaram, fizeram beiju (abad) e amry, um fermentado de vários legumes, principalmente mandioca. Durante dois dias, dançaram e cantaram na Casa de Cultura e na Casa dos Homens, no centro das duas aldeias, comemorando essa nova etapa da resistência.
“Devemos ser consultados antes de tudo, antes das obras do branco”, afirma Timbektodem Arara.
“Tenho orgulho de ter minha comida tradicional, meu canto, minha raiz. Do meu território eu tiro minha comida tradicional. Nossa caçada é de vários dias no mato, por isso nós precisamos de território para isso”, explica o cacique da aldeia Iriri, Mobu Odó Arara.
A situação da Cachoeira Seca é alarmante. Sob o governo Jair Bolsonaro, foram desmatados 7.249 hectares, entre agosto de 2019 e julho de 2020 . A área é uma das mais desmatadas da Amazônia. Homologada em 2016, a desintrusão (retirada) dos invasores era uma das condicionantes de Belo Monte que até hoje não foi cumprida. Desde novembro de 2020, os Arara aguardam o início imediato da desintrusão, mas até agora nada foi feito.
A floresta é a casa dos Arara. Com mais desmatamento, aumenta a dificuldade para conseguir alimentos e manter o modo de vida tradicional.
“É da floresta que a gente tira remédio, alimentação, sustento financeiro. Tudo tá ali dentro da floresta no nosso território, por isso que a gente fala nossa casa”, diz Mobu Odó. “Mas está cada vez mais difícil para caçar. A nossa caça diminuiu muito, antes não precisava andar tanto, dormir na mata. Matava porco aqui na frente mesmo. E hoje não tem nada disso, já vemos o impacto e os animais indo embora. Quando derruba castanheira, ou massarandubeira ou mesmo mogno, que a gente usa muito a semente para tratar verme, nós ficamos muito triste”, lamenta.
Da invasão na Cachoeira Seca, os grileiros tentam entrar ilegalmente na vizinha TI Arara. Os indígenas têm se organizado para resistir, muitas vezes arriscando a própria vida. Tatji Arara participou de algumas expedições dentro da floresta em busca de invasores. Por causa desse trabalho, Tatji já foi ameaçado de morte.
Tambyapé já participou de expedições também. “Ano retrasado encontramos uma serraria manual dentro da nossa terra, no meio do mato. Encontramos trator, motor, barraca”, afirma.
Tambyapé afirma que o protocolo é importante porque muitas vezes os não indígenas já chegam com seus projetos prontos, sem perguntar para os indígenas sua opinião. “O protocolo de consulta é uma arma, uma ferramenta. Hoje em dia vivemos uma situação onde muitas coisas só podem ser conseguidas por documento, reunião. Muitas vezes os brancos não perguntam como deve ser feito, já chegam fazendo. e o protocolo diz como nós queremos ser consultados”, explica.
Outra ação para proteger o território foi abrir duas novas aldeias nas margens da Transamazônica, do outro lado da TI, já que a maior parte das invasões ocorre por essa via. Assim, fica mais fácil monitorar e impedir a entrada de invasores. Mas a mudança traz consequências: os Arara que moram nessas aldeias têm dificuldade de acesso à água potável. De acordo com eles, muitas fontes estão contaminadas.
Outro temor é o asfaltamento da Transamazônica entre Rurópolis e Medicilândia, justamente no trecho contíguo ao território Arara. Os Arara aguardam a consulta, de acordo com a previsão legal, mas até agora não foram procurados pelo Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes).
“A gente ficou sabendo que o Dnit ficou querendo asfaltar a BR-230 e até agora não vieram apresentar nenhum projeto pra gente, pra falar, pra conversar, pra ver se a gente aceita, se a gente não aceita… Até agora eles não vieram”, conta Tambyapé.
Para os moradores dessas duas aldeias, o impacto é direto: os caminhões e carros vão acelerar ainda mais na estrada em frente à aldeia, ameaçando as crianças que moram ali, além de toda a fauna. Mas o impacto será muito maior: o asfaltamento tende a valorizar as terras no entorno, gerando uma corrida por novas áreas, especulação fundiária e à intensificação das invasões.
“Nosso medo de impacto é da terra ter mais valor, e a invasão aumentar. Tamo com muito medo de quanto asfaltar de lotearem e venderem nossa terra pra quem tá chegando”, explica Timbektodem.
“Nós queremos a nossa terra livre, sem desmatamento, porque precisamos dela, a gente vive aqui na mata”, afirma Mulik Arara, uma jovem liderança da aldeia Iriri.
As principais lideranças de hoje eram muito pequenas ou ainda nem tinham nascido na época do contato. Mas os mais velhos eram adultos ou crianças maiores e lembram bem de quando os karei começaram a invadir suas terras.
“Antigamente tinha muito branco na nossa terra, nós víamos os caminhos do karei”, diz Typy Arara, anciã da aldeia Iriri. “Os brancos eram muito ruins para nós. Ficou um pouco melhor, mas depois os madeireiros tão mexendo muito na nossa terra. Estamos muito preocupados, parece que eles querem expulsar a gente. Eu já sou velha, mas quero essa terra protegida para os meus meninos”, completa.
Mortiri Arara, ancião da aldeia Laranjal, relembra a primeira vez que teve contato com os brancos, provavelmente da Frente de Atração da Funai. “Por muito tempo, falavam pra nós que os brancos comiam a gente, os brancos espantavam nós, por isso a gente corria”, relata. A Transamazônica tornou essa fuga impossível. “Como é que nós vamos correr, pra onde vamos fugir se para ali tem a Transamazônica? Então conversamos entre nós: como é que nós vamos fazer com esse pessoal?”, lembra.
“As outras pessoas estavam com medo, mas eu mesmo não estava, não pegamos as coisas todas dos brancos. Aí os brancos começaram a gritar e chamar a gente e a gente discutiu. O que vamos fazer com os karei? Decidimos ir ver os karei. Decidimos ir em quatro. Eu fui primeiro. Deixamos as crianças num lado e fomos lá nos karei. O karei tava gritando sentado, apareceu sozinho, mas tinha gente escondida com ele. Karei tava chamando, 'vem aqui, vem aqui', oferecendo alguma coisa pra ele”, comenta.
A lembrança de Iogó Arara, da aldeia Iriri, é de um tempo de abundância antes da chegada dos não indígenas. Segundo ela, os Arara tinham mais acesso a plantas medicinais da floresta e por isso sofriam menos com problemas de saúde. “Antigamente a gente bebia o remédio do mato, feito do cipó. Essas plantas curavam mesmo”, diz ela. “Não tinha roça antigamente, tinha bebida tradicional mesmo, nós comia mel, macaco, guariba”, conta. Até que os brancos chegaram com violência e começaram a matar seus parentes. “Mataram o Tibi e o Kowit”, relembra.