Ao menos 30 terras indígenas no Brasil e no Peru, localizadas nas bacias dos rios Juruá, Ucayali e Tamaya, estão ameaçadas pela retomada das obras de recuperação da rodovia UC-105 situada no lado peruano. Indígenas do estado do Acre alertam que a região ficará cercada por diversas frentes que trarão devastação ambiental e social.
A reportagem é de Fabio Pontes, publicada por Amazônia Real, 07-09-2021.
Além da retirada ilegal de madeira, outras atividades de elevados efeitos sociais e ambientais tendem a ser impulsionadas, como a mineração e a indústria petrolífera. O tráfico internacional de drogas também tende a tirar benefícios da rodovia.
Preocupados com os impactos que a reabertura da estrada provocará em suas terras nos dois lados da fronteira, os indígenas do povo Ashaninka se reuniram em agosto passado para denunciar o caso por meio do dossiê “A Estrada Ilegal Nueva Italia – Puerto Breu: Uma Grande Ameaça para os Povos Indígenas do Yurúa, Alto Tamaya e Alto Juruá”.
No lado brasileiro, quatro terras indígenas e uma unidade de conservação estão ameaçadas pelos impactos da rodovia: TI Ashaninka do Rio Amônia, TI Arara do Rio Amônia, TI Kaxinawa/ Ashaninka do Rio Breu e TI Jaminawa Arara do Rio Bagé e Reserva Extrativista do Alto Juruá.
A rodovia foi construída no final da década de 1980 por uma empresa petrolífera norte-americana, mas foi utilizada ao longo dos anos 1990 pelas madeireiras para o transporte das toras, pressionando o lado brasileiro até os anos 2000.
A liderança Francisco Piyãko foi uma das vozes a denunciar a invasão do território Ashaninka pelas madeireiras peruanas já naquela época. Com 87 mil hectares, a Terra Indígena (TI) Kampa do Rio Amônia está no município de Marechal Thaumaturgo, no Acre, no limite fronteiriço entre Brasil e Peru. Para Francisco Piyãko, os impactos sociais e ambientais com o retorno da extração de madeira – a partir da recuperação da UC-105 – tendem a ser bem mais graves e preocupantes do que os ocorridos no passado.
Além da retirada ilegal de madeira, outras atividades de elevados efeitos sociais e ambientais tendem a ser impulsionadas, como a mineração e a indústria petrolífera. O tráfico internacional de drogas também tende a tirar benefícios da rodovia.
“Estamos passando por um momento muito preocupante. Diante de todos os conflitos que a gente já teve aqui nesta fronteira, este é o pior. Nós vivemos em 2005, mais ou menos, uma situação muito tensa de invasão de madeireira em nosso território. Mas foi só por um período”, diz a liderança do povo Ashaninka, em entrevista à Amazônia Real. “Vão estar trazendo para a região um conflito eterno”.
Com a reconexão rodoviária entre Nueva Italia e Puerto Breu, no departamento peruano de Ucayali, a pouco mais de 10 km de distância da faixa de fronteira, e, consequentemente, da TI Kampa do Rio Amônia, a liderança avalia que a estrada é uma ameaça não apenas para seus parentes no Peru, como também para os Ashaninka e outros povos do lado brasileiro. “Acabou a nossa paz. Não vai ser uma luta para tirar os madeireiros da região. Eles vão estar assentados ao longo da estrada.”
A proposta, conforme Francisco Piyãko, é que essas famílias [de madeireiros] ganhem lotes de terra para que cultivem coca para os laboratórios dos cartéis do tráfico. O relatório aponta, a partir de imagens de satélite, o aumento na área de cultivo da coca, bem como a abertura de pistas de pouso, de onde a cocaína peruana é exportada para o mundo.
A UC-105 é uma rota do tráfico internacional de drogas. É nessa porção da floresta peruana que se concentra parte do cultivo da folha de coca e os laboratórios para o refinamento da cocaína. Do lado brasileiro, a facção criminosa Comando Vermelho domina toda a logística da compra e distribuição da droga. Os rios e igarapés servem como rota para o entorpecente chegar até as cidades acreanas e outros mercados no país.
“Depois desta estrada feita eles vão assentar as famílias e tomar conta da região. É do lado do Peru, mas o impacto é muito direto para nossa comunidade, vai tirar nossa tranquilidade, a nossa paz. Nós vamos ficar numa situação muito difícil”, afirma o líder indígena. Uma de suas preocupações é com a degradação pela qual o rio Amônia passará com a intensificação da atividade madeireira e do garimpo. É do Amônia onde os Ashaninka retiram água para consumo e a pesca.
Durante as décadas de 1980 e 1990, quando a extração de madeira esteve em seu auge dentro do território, os Ashaninka também tiveram impactos sociais e culturais. Por conta da presença dos trabalhadores brancos das empresas, os Ashaninka por muito pouco não perderam seu modo de vida tradicional – deixando de lado a língua e as vestes – além de problemas com o alcoolismo.
“Nossos rios estão ameaçados de ser contaminados. E não é só a comunidade Ashaninka que vai estar prejudicada. São todos os que moram no Juruá, indígenas ou não indígenas”, ressalta Francisco Piyãko.
Segundo a denúncia dos Ashaninka, a recuperação da UC-105 atravessaria uma extensão de 107 km dentro de terras indígenas, que no país vizinho são chamadas de comunidades nativas. A preocupação se dá com a expansão dos impactos nas duas margens da rodovia.
Presidente da Organización Regional de Aidesep Ucayali (Orau), entidade que representa 15 diferentes povos indígenas dentro do departamento peruano, Jiribati Ashaninka Diques afirma que a ausência de estudos de impactos sociais e ambientais na reabertura da UC-105 – além da falta de consulta prévia – acabam por agravar ainda mais a situação para as comunidades do entorno.
“Os principais impactos que essa estrada está gerando são os sociais e ambientais. Há uma grande devastação de áreas inteiras de floresta. Essa estrada está criando um caos social e ambiental porque não há nenhuma garantia de parâmetros sociais e ambientais”, diz Jiribati Ashaninka, em entrevista à Amazônia Real.
Para ele, as incertezas políticas criadas no Peru desde a acirrada disputa presidencial de julho entre a conservadora Keiko Fujimori e o esquerdista Pedro Castillo agravam a sensação de insegurança entre as comunidades amazônicas do país. Apesar de ser tido como um político esquerdista e de origem indígena, o novo presidente Pedro Castillo ainda é uma incógnita em muitas áreas, incluindo a ambiental e a indígena.
“Neste momento em nosso país, com o governo atual, estamos numa grande incerteza política e social. Não há nenhuma ação por parte deste governo que proteja esses vastos territórios amazônicos” , afirma o presidente da Orau. Ocupando 60% do território peruano, a Amazônia é bastante pressionada por atividades predatórias cujas áreas são concedidas pelo próprio governo central, como a exploração de minérios e petróleo, além da madeireira.
Com essas incertezas sobre o humor político de Castillo, Jiribati Ashaninka diz não saber se o projeto da construção da rodovia entre Pucallpa e Cruzeiro do Sul, no Acre, continuará engavetado por Lima. O líder da organização indígena de Ucayali considera um “plano de extermínio” a forma como os projetos de infraestrutura na fronteira Brasil-Peru são desenvolvidos pelas autoridades, principalmente quando negam o direito à prévia consulta às comunidades.
“Trata-se de um plano que prejudica totalmente as populações indígenas. Se o Estado não garante a segurança territorial, os cuidados ambientais e sociais frente a esses projetos de infraestrutura, praticamente teremos o indício de um plano de extermínio por parte do Estado das populações indígenas. É certo que os governos de ambos os países nunca deram importância à existência dos povos indígenas”, define Jiribati Ashaninka Diques.
O dossiê dos Ashaninka foi elaborado a partir de monitoramento in loco nas cabeceiras do rio Amônia, realizado no começo de agosto pelo Comitê de Vigilância da Comunidade de Sawawo, que os Ashaninka descobriram a presença de tratores e trabalhadores fazendo a reabertura da UC-105.
Conforme destaca o documento, a obra de recuperação é empreendida pelas próprias empresas madeireiras, sem o apoio do governo central do Peru, mas fomentada por lideranças políticas locais de Ucayali. A UC-105 tem extensão de 105 km, interligando os povoados de Nueva Italia a Puerto Breu. Na sua primeira fase em funcionamento, a estrada servia para conectar os poços de petróleo da Occidental Petroleum no meio da selva até a vila de Nueva Italia, sendo abandonada, ainda nos primeiros anos da década 1990, com a saída da companhia da região.
Mesmo em precárias condições, ela foi utilizada ao longo dos anos 90 pelas madeireiras para o transporte das toras. Até meados da primeira década dos anos 2000, essa parte da Amazônia era bastante pressionada pela extração predatória de madeira nos dois lados da fronteira. Após saquearem tudo o que podiam do seu lado da fronteira, os peruanos invadiam o território brasileiro em busca das espécies com maior valor comercial.
A área no Brasil mais afetada era a Terra Indígena Kampa do Rio Amônia, do povo Ashaninka, cujas aldeias se espalham entre os dois países, tanto na bacia do Juruá quanto na do Purus. Foi a partir de denúncias feitas por eles à Fundação Nacional do Índio (Funai), ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e ao Exército, que operações foram realizadas para expulsar os peruanos que ultrapassavam o marco da fronteira.
Carlos Paredes, liderança Ashaninka da comunidade Sawawo Hito 40, no Peru, diz temer o retorno dos conflitos vividos por seu povo quando da intensificação da exploração madeireira nos anos 90 e início dos 2000. “Sei que não vamos mais ficar calmos como índios Ashaninka aqui no Juruá. Como povos indígenas, temos o costume de viver em paz, sem qualquer aborrecimento”, afirma Paredes, em mensagem de WhatsApp divulgada pela organização peruana ProPurus.
“Nós tivemos muitos impactos com a presença dos madeireiros [no passado], que nos incomodavam, vinham ilegalmente cortar madeira.”
Segundo a liderança Ashéninka (grafia como o povo se identifica no Peru), muitos de seus parentes foram forçados a abandonar as áreas onde moravam por estar perto das zonas de exploração das madeireiras. “Fomos despejados de onde eles trabalhavam.”
Conforme estudos, a abertura de estradas na Amazônia causa impactos diretos num raio de até 20 km em cada lado do traçado principal. A primeira consequência é a abertura de ramais, criando o efeito “espinha de peixe”.
O nome se dá por conta da “espinha de peixe” vista de cima das fotografias de satélite das estradas transversais surgidas a partir do traçado principal. São essas estradas paralelas – os ramais – que fazem avançar o desmatamento para as bordas das rodovias.
De acordo com o relatório, a “espinha de peixe” da UC-105 abrangeria uma área superior a três mil quilômetros quadrados apenas nas comunidades nativas do Peru. Já deste lado da fronteira, 641 quilômetros quadrados de terras indígenas seriam, de alguma forma, afetadas, sendo as TIs Kampa do Rio Amônia, a Kaxinawá/Ashaninka do Rio Breu e a Arara do Rio Amônia as mais afetadas.
A Reserva Extrativista do Alto Juruá sofreria influência; por não disporem de território demarcado, os Kuntanawa dividem a unidade de conservação com os ribeirinhos.
“A zona de influência da estrada proposta aumentará o desmatamento em áreas indígenas e de conservação ambiental, ameaçando as sub-bacias, rios e afluentes e as comunidades indígenas e ribeirinhas, tanto no Peru como no Brasil. Além do mais, a presença da estrada contribuirá de forma agravante com o fortalecimento do narcotráfico e a extração florestal ilegal, petrolífera e de minérios”, diz trecho do relatório.
Especializada nas questões indígenas da fronteira Brasil-Peru, Malu Ochoa, assessora do Programa de Políticas Públicas e Articulação Regional da Comissão Pró-Índio (CPi Acre) diz que a abertura de estradas na Amazônia de Ucayali provocará a chegada de novos moradores, o que implicará em mais desmatamento para agricultura e pecuária. Menos áreas de floresta implica numa menor oferta de caça e outros recursos naturais por parte das comunidades indígenas.
Ela cita como exemplo o caso dos Apolina-Arara do município acreano de Marechal Thaumaturgo, cuja terra está localizada no limite da fronteira. Segundo Malu Ochoa, os indígenas já enfrentam dificuldades em assegurar sua segurança alimentar pelo aumento populacional dentro das aldeias.
“A chegada de mais pessoas na região [de fronteira] com uma visão diferenciada do uso da terra vai gerar desmatamento, vai gerar pressão sobre os recursos naturais. Eles estão sentindo já essa pressão. Com esta movimentação e o desmatamento próximo, no entorno da terra indígena, vai ser ainda maior a pressão”, afirma Malu Ochoa.
Outro problema relatado pelos indígenas cujas aldeias estão às margens de rios que nascem no Peru e adentram o Brasil é a passagem constante de “pessoas estranhas” – os mulas transportando drogas. Para a assessora da CPI, com a rodovia bem na borda da fronteira, esse tipo de pressão sobre as comunidades aumentará.
A abertura de estradas na região – que inclui a conexão rodoviária entre Cruzeiro do Sul e Pucallpa – representa uma grave ameaça não apenas aos povos indígenas já contatados, mas, sobretudo, aos que vivem em isolamento voluntário. A fronteira Brasil-Peru, dos vales, do Purus do Juruá ao Vale do Javari, já no estado do Amazonas, tem a maior concentração de povos isolados do mundo.
“A chegada de novos moradores mais a prática de atividades como a madeireira, garimpo e petróleo é um desastre para os povos isolados. Além de você reduzir a área utilizada por eles para a caça e as fontes de água, o contato deles com o branco seria o extermínio, já que seus organismos não estão protegidos contra muitas doenças”, diz Ana Luiza Melgaço Ramalho, coordenadora do programa de Políticas Públicas e Articulação Regional da CPI-Acre.
Em fevereiro deste ano, a Amazônia Real produziu reportagem mostrando a aproximação de grupos isolados em aldeias dos Manxineru, na TI Mamoadate. A pressão de atividades predatórias do lado peruano foi apontada por especialistas como uma das causas para eles buscarem refúgio do lado brasileiro.
A conexão rodoviária entre Acre e Ucayali representaria a expansão do arco do desmatamento – hoje concentrada no leste acreano e ao sul do Peru – para a região intocada da mais importante floresta tropical do mundo. A ausência de estradas é apontada, justamente, como principal fator a livrá-la da devastação.
A Marmud Cameli Ltda estava entre as madeireiras que roubavam madeira nobre de dentro do território Ashaninka nas décadas de 1980 e 1990. A empresa pertencia a Orleir Messias Cameli, que governou o Acre entre 1995 e 1998. Ele é tio do atual governador, Gladson Cameli (PP). Orleir morreu em 2013 vítima de câncer.
Em abril do ano passado, após o processo se arrastar por quase três décadas, a Fundação Nacional do Índio, o Ministério Público Federal, advogados da Marmud Cameli Ltda e dos Ashaninka assinaram um termo de conciliação para o pagamento de indenização no valor de R$ 20 milhões pelos danos ambientais causados pela empresa da família Cameli na TI Kampa do Rio Amônia.
As ameaças das construções de estradas não ocorrem só do lado peruano da fronteira. Desde 2019, o governo de Gladson Cameli fomenta o projeto de interligação rodoviária entre as cidades acreanas de Cruzeiro do Sul, sua terra natal, e Pucallpa, capital do departamento de Ucayali.
As duas cidades amazônicas estão separadas, em linha reta, por 220 km de uma selva ainda intacta, e bastante cobiçada por madeireiros, grileiros, petrolíferas, garimpeiros e, ainda, o tráfico de drogas. A expansão das fazendas de gado nos municípios acreanos que formam o Vale do Juruá é outro objetivo dos defensores da abertura de estradas na região.
Em julho, o governo do Peru se manifestou contrário a uma nova interligação rodoviária com o Brasil. Para as autoridades de Lima, a estrada é inviável do ponto de vista econômico e ambiental para o país. Apesar do sinal negativo dos vizinhos, o governo Gladson Cameli insiste com o projeto, apresentando a estrada como oportunidade de conexão do mercado brasileiro com os portos do Pacífico.
Os dois países já estão interligados pela Rodovia Interoceânica, por meio da fronteira do Acre com o departamento de Madre de Dios, no alto rio Acre, sul do Peru. Quase 10 anos após sua completa pavimentação, a Carretera del Pacífico deixa um rastro de devastação na Amazônia peruana de Madre de Dios, sendo a retirada de madeira e a extração ilegal de minérios os principais responsáveis.
Imensas áreas de floresta foram derrubadas para a abertura de garimpos. Os impactos sociais são sentidos, como aumento da violência e da prostituição. O tráfico de drogas também se fortaleceu na região, que ainda tem como vizinho a Bolívia na tríplice fronteira Bolpebra: Bolívia, Peru e Brasil.
Concebida para servir como corredor das exportações brasileiras aos mercados do Pacífico – sobretudo a Ásia – a Rodovia Interoceânica mostrou-se inviável por conta da limitação de carga que poderia ser transportada por ela. As dificuldades impostas pela Cordilheira dos Andes exigem a redução na quantidade de carga transportada por caminhões saídos do Sudeste brasileiro até os portos de Lima. Com isso, mesmo com um tempo de viagem maior, os exportadores continuaram a comercializar com os asiáticos por meio do Atlântico.
Os defensores da nova rodovia pela porção norte da Amazônia peruana argumentam que, por ali, a chegada até o Pacífico é mais fácil pela menor presença da cordilheira. Todavia, essa é uma das regiões mais bem preservadas em toda a pan-amazônia, rica em biodiversidade e habitada por dezenas de povos indígenas já com seus territórios definidos, além dos isolados, cuja característica é a mobilidade constante em busca de alimentos e água.