04 Setembro 2021
"Histórica a luta das comunidades locais e entidades ambientalistas pela preservação das nascentes de Mãe d’Água e de Capitão Valente neste belíssimo trecho da Serra da Moeda, ameaçada em toda a sua extensão pela expansão da mineração, especulação imobiliária e megaprojetos, como o do Rodoanel (Rodominério), que, se instalados, vão comprometer de forma severa e de forma irreversível os mananciais e as nascentes, o que causaria o colapso hídrico na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH)", escreve Alenice Baeta[1], Danilo Campos[2] e Gilvander Moreira[3].
Um abrigo com figurações rupestres pré-coloniais foi identificado recentemente na Serra da Moeda, região de Piedade do Paraopeba, município de Brumadinho, MG. Trata-se de importante sítio arqueológico, modalidade de patrimônio cultural protegida por Lei Federal e por inúmeras normativas internacionais. O sítio foi denominado “Cachoeira Seca”, nome da localidade situada nos limites do Monumento Natural Estadual Mãe d´Água, importante unidade de conservação criada com o objetivo de proteger a natureza, preservar a beleza cênica, os sítios naturais singulares, bem como, a quantidade e a qualidade das águas superficiais e subterrâneas que abastecem a nascente Mãe d'Água. Ainda na paisagem há trechos de antigo canal de água com escoramentos em alvenaria de pedra, possivelmente construído no período colonial, o que configura patrimônio cultural multicomponencial pré-colonial e histórico, agregando ao monumento natural importante valor arqueológico e arquitetônico-vernacular.
Histórica a luta das comunidades locais e entidades ambientalistas pela preservação das nascentes de Mãe d’Água e de Capitão Valente neste belíssimo trecho da Serra da Moeda, ameaçada em toda a sua extensão pela expansão da mineração, especulação imobiliária e megaprojetos, como o do Rodoanel (Rodominério), que, se instalados, vão comprometer de forma severa e de forma irreversível os mananciais e as nascentes, o que causaria o colapso hídrico na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH).
No âmbito da proteção legal basilar a respeito do patrimônio arqueológico, a Constituição Federal, promulgada em 1988, determina nos artigos 20 e 216 que os bens de natureza material e imaterial, incluindo os sítios arqueológicos, são de forma indubitável “bens da União Federal”.
“Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores de referência à identidade, à ação, à memoria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais incluem:
(...) V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.”
Como mencionado, os sítios arqueológicos pré-coloniais e/ou históricos são protegidos pela Lei Federal n. 3.924, de 1961, que já possui mais de cinquenta anos de vigência, e que vem sendo desde então o principal instrumento de salvaguarda e de proteção específica deste tipo de bem cultural no país.
“Art. 1- Os monumentos arqueológicos ou pré-históricos de qualquer natureza existentes no território nacional e todos os elementos que neles se encontram ficam sob a guarda e proteção do Poder Público, de acordo com o que estabelece o art. 175 da Constituição Federal.”
No artigo 5, considera crime a destruição e a mutilação deste tipo de patrimônio, que incorrem em infrações sujeitas a penalidades conforme o Código Penal.
“Art. 5 – Qualquer ato que importe na destruição ou mutilação dos monumentos a que se refere o art. 2 será considerado crime contra o Patrimônio Nacional e, como tal punível de acordo com o disposto nas leis penais.”
Novos instrumentos jurídicos foram posteriormente elaborados de maneira a operacionalizar e assegurar a preservação do Patrimônio Arqueológico e Cultural. Nessa esteira protecionista a Lei n. 9.605, de 1998, também conhecida como “Lei de Crimes Ambientais”, estabeleceu em sua Sessão IV intitulada: “Dos Crimes Contra o Ordenamento Urbano e o Patrimônio Cultural” penalidades no que se refere à danificação de bens culturais e arqueológicos, merecendo aqui ser destacado o artigos 63.
“Art. 63- Alterar o aspecto ou estrutura de edificação ou local especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial, em razão de valor paisagístico, ecológico, turístico, ecológico, arqueológico, etnográfico ou monumental, sem autorização da autoridade competente ou em desacordo com a concedida: Pena-reclusão de um a três anos e multa.”
Nas Cartas Internacionais Patrimoniais elaboradas em Conferências promovidas por organismos, tais como, o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), encontramos as bases conceituais e epistemológicas do aparato legal brasileiro, pois tais documentos foram os aportes na construção das leis, instruções, deliberações e condutas em geral dos países signatários no que se refere à politica e à pesquisa patrimonial e arqueológica.
Amparado juridicamente por ser “bem da União” e fisicamente por estar nos limites de uma unidade de conservação estadual - o Monumento Natural Estadual Mãe d’Água como exposto, o Sítio Arqueológico Cachoeira Seca situa-se na meia encosta da Serra da Moeda em trecho identificado como Mãe d’Água, composto por dois abrigos quartzíticos vizinhos. Um dos abrigos possui aproximadamente 10 metros de comprimento e 13 metros de altura. O outro abrigo possui aproximadamente 30 metros de comprimento e 20 metros de altura, exposição para o Oeste. Na porção central dos dois abrigos até a altura de dois metros há magníficos conjuntos de pinturas rupestres.
As figurações impressas nos suportes rochosos do Sítio Arqueológico Cachoeira Seca, por suas características temáticas e estilísticas, podem ser atribuídas à Tradição Planalto, que possivelmente é a mais antiga expressão gráfica e de longa duração, com suas devidas fases estilísticas e microrregionais, na porção central de Minas Gerais. Essa tradição é identificada desde o norte do Paraná até o estado de Tocantins, sendo que a região de maior ocorrência corresponde aos Cerrados e às regiões serranas e de Mata Atlântica do Centro de Minas Gerais, onde suas figuras, a princípio, seriam as mais antigas e permanentes.
Caracteriza-se pela predominância visual (e, muitas vezes, quantitativa) de figuras de animais, quadrúpedes (sobretudo cervídeos) e peixes, além de formas abstratas envolvendo geometrismos circulares, ovoides, traços e pontos. Os cervídeos e quadrúpedes são as representações mais comuns, mas, segundo as localidades e as épocas, há também representações de peixes isolados e/ou de cardumes. Em regra são elaboradas em uma só cor, a monocromia, no caso, prevalecem as cores vermelho e amarelo, raramente em preto, branco e laranja (BAETA, 2011). Este é o cenário gráfico geral do Sítio Arqueológico Cachoeira Seca.
Neste sítio os animais apresentam feitura tosca (predominante no Carste de Lagoa Santa ou APA Norte), todavia, os corpos são contornados e preenchidos por traços paralelos e/ou por pontos. No caso de representações de cervídeos, algumas galhadas possuem ramificações. Este padrão de tratamento gráfico se assemelha, por sua vez, aos conjuntos gráficos dos abrigos da Serra do Cipó e da região de Diamantina, em Minas Gerais. Todavia, lá os detalhamentos gráficos são mais marcantes e característicos.
Predominam no Sítio Arqueológico Cachoeira Seca formas de cervídeos, peixes e possivelmente, lacertílios, macacos e tartarugas, além de figuras circulares, pontuações e traços. As pinturas foram feitas em vermelho claro, vermelho escuro, laranja e preto. Há figuras bem preservadas, mas há muitas em estado vestigial, que vão exigir maior investigação e acuro. Do ponto de vista crono-estilístico, grandes quadrúpedes somente com os seus contornos parecem ter sido pintados inicialmente, intercalados por um nível de peixes, cervídeos com proporção menor que os anteriores ali confeccionados, preenchidos por traços e pontos, as formas circulares também foram cuidadosamente preenchidas por pontuações. O nível pictural mais recente é composto basicamente por representações de pequenos cervídeos, bem como por um conjunto muito peculiar de representações supostamente de macacos totalmente colorizados em vermelho. Este último conjunto mencionado, agrega novidades ao contexto estilístico da Serra da Moeda, merecendo atenção especial. Ainda é cedo para propor um quadro diacrônico estilístico definitivo dos grafismos. Foi realizado o seu cadastro no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) para fim de proteção e documentação inicial[4]. Este sítio possibilitará análises comparativas com os outros sítios arqueológicos da Serra da Moeda e adjacências, favorecendo um quadro estilístico regional mais detalhado das figurações pré-coloniais do Sinclinal Moeda na porção sul da capital mineira.
A identificação deste sítio arqueológico em Piedade do Paraopeba é uma importante prova que ainda desconhecemos grande parte das relíquias patrimoniais e da biodiversidade contidas nos territórios da Serra da Moeda e do Vale do Paraopeba. Há muito ainda o que se revelar e pesquisar, tanto nos campos ferruginosos, onde vem sendo identificadas e mapeadas paulatinamente cavernas com testemunhos pré-coloniais e históricos, como nas escarpas quartzíticas (BAETA & PILÓ, 2015). Por isto, a necessidade de sempre agir com muita precaução e cautela priorizando a efetiva e necessária proteção deste vulnerável e complexo patrimônio hídrico, natural, histórico, arqueológico e cultural.
Imagem: Sítio Arqueológico Cachoeira Seca. Piedade do Paraopeba, Município: Brumadinho, MG | Foto: Alenice Baeta, Agosto de 2021.
Imagem: Sítio Arqueológico Cachoeira Seca. Detalhe de conjunto de figurações rupestres zoomorfas vermelhas. Piedade do Paraopeba, Município: Brumadinho, MG | Foto: Alenice Baeta, Agosto de 2021.
Imagem: Detalhe de um conjunto de zoomorfos vermelhos do Sítio Arqueológico Cachoeira Seca. Destaque em relação às figurações de outros níveis picturais. Piedade do Paraopeba, Município: Brumadinho, MG | Reprodução: Alenice Baeta, Agosto de 2021.
Imagem: Sítio Arqueológico Cachoeira Seca. Detalhe de pinturas rupestres em formato de ‘peixes’ (com escala). Piedade do Paraopeba, Brumadinho, MG | Foto: Alenice Baeta, Agosto de 2021.
Imagem: Sítio Arqueológico Cachoeira Seca. Detalhe de figuração rupestre de um ‘quadrúpede’. Piedade do Paraopeba, Município: Brumadinho, MG | Foto: Alenice Baeta, Agosto de 2021.
[1] Doutora em Arqueologia pelo MAE/USP; Pós-Doutorado Antropologia e Arqueologia-FAFICH/UFMG; Historiadora e Membro do CEDEFES, do Movimento Serra Sempre Viva e do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios-ICOMOS/Brasil. AEDAS/Projeto Paraopeba-R2.
[2] Liderança da comunidade indígena Borum Kren. Ouro Preto, MG.
[3] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; Doutor em Educação pela FAE/UFMG; Bacharel em Filosofia pela UFPR e Teologia pelo ITESP/SP; Mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; Agente e Assessor da CPT/MG, do CEBI e Ocupações Urbanas.
[4] Agradecimento ao Arqueólogo Henrique Piló da Artefactto Consultoria pelo suporte no registro junto ao CNSA/SGPA-IPHAN.
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Identificado um Magnífico Sítio Arqueológico Pré-Colonial em Brumadinho, Minas Gerais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU