16 Julho 2021
Obra projetada por Oscar Niemeyer em 2000 marca o local onde o trabalhador rural e integrante do MST, Antônio Tavares Pereira, foi assassinado pela Polícia Militar do Paraná.
Foto: Wellington Lenon
A reportagem é publicada por Terra de Direitos, 12-07-2021.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou, em caráter excepcional, que o Estado brasileiro proteja o monumento em memória à luta pela reforma agrária e ao trabalhador rural Antônio Tavares Pereira, assassinado em 2000 pela Polícia Militar do Paraná. A decisão da Corte Interamericana, proferida no último dia 24 de junho, reconhece o risco iminente de dano ao monumento projetado por Oscar Niemeyer e fixado às margens da rodovia BR-227, no km 108, em Campo Largo (PR), com a manifestação pela empresa Postepar, proprietária do terreno onde a obra foi instalada, de interesse em removê-lo do local.
Em 2001 a empresa cedeu a área para instalação do monumento. Segundo o contrato de comodato firmado entre a Postepar e organizações sociais o período de vigência da sessão seria de cinco anos. Antes do fim de cada período de 5 anos o contrato poderia ser rescindido por manifestação expressa. Caso as partes não se manifestem durante o período, a renovação do contrato é automática, por um novo período de 5 anos – durante o qual a sessão da área está assegurada. A empresa tentou rescindir o contrato em fevereiro de 2016, mas notificou fora do prazo - após 21 de fevereiro - e já na vigência do novo período de 5 anos de validade do contrato. Em recente comunicado a empresa solicitou novamente a revogação do contrato.
O caráter excepcional da decisão pela Corte Interamericana de Direitos diz respeito ao fato de que o órgão acolhe medidas provisórias que assegurem proteção, principalmente, a pessoas em risco de vida, e não a um bem cultural - como um monumento. No entanto, a Corte reconheceu que o pedido realizado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Terra de Direitos e Justiça Global para proteção da obra cumpre três condições fundamentais para determinação de medida provisória: a defesa da obra é urgente, tendo em vista o risco de dano com possível remoção do monumento; a ameaça ao monumento e à memória de luta é grave; e uma possível danificação à obra configura-se como dano irreparável.
“Cabe ressaltar que, embora o objeto imediato deste pedido de medidas provisórias seja a proteção de um bem, o objeto imediato da proteção solicitada é a memória de Antônio Tavares Pereira e das dezenas de supostas vítimas do caso sub judice”, destaca um trecho da decisão. No documento, o órgão judicial autônomo reconhece que o monumento presta homenagem não apenas a Antônio Tavares e os demais trabalhadores rurais feridos na ação militar realizada em 2000, como também recupera a memória destas pessoas, dos fatos ocorridos e da luta pela reforma agrária no estado.
“Neste caso, protegeu-se o bem cultural, documento de verdade, memória e justiça, representativo da luta pela terra, pela sua conexão direta com a reparação das vítimas da violência de Estado, Antônio Tavares, família, as mais de 185 vítimas das lesões perpetradas no dia do fato e a vítima coletiva, o movimento social, o MST”, destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos, Maira Moreira.
A medida cautelar proferida pela Corte na última semana tem vigor até a decisão do mérito do caso. Em fevereiro, a Corte Interamericana de Direitos Humanos acolheu o caso apresentado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre o assassinato do trabalhador rural Antônio Tavares e as lesões corporais sofridas por 185 camponeses integrantes do MST, por policiais militares, em 2 de maio de 2000, no Paraná.
O episódio é considerado pelo MST “um dos momentos mais emblemáticos do processo de violência e de criminalização na luta pela terra”. A apresentação do caso à Corte Interamericana é resultado - passados mais de 21 anos do fato - da omissão e não responsabilização dos envolvidos na morte do trabalhador e repressão massiva pelo Estado.
José Damasceno, integrante da direção estadual do MST, relembra que o monumento foi erguido em um período de forte repressão do Estado à luta pela reforma agrária, por isso considera “mais do que justa” a decisão da Corte “A presença do monumento naquele espaço é uma denúncia permanente e para toda a sociedade brasileira, de um crime que tirou a vida de um trabalhador, e que até hoje segue impune, sem que nenhum dos culpados tenha sido responsabilizado”.
A reparação da violência sofrida pelo MST passa pelo reconhecimento de que o ato ocorreu e pela garantia do direito à memória de suas vítimas, conforme avalia a advogada Luciana Pivato, coordenadora do Programa Nacional da Terra de Direitos. “O monumento Antônio Tavares é uma das únicas obras de arte de valor cultural relacionada aos conflitos de terra do Estado do Paraná e do país. A Corte reconheceu, em sua decisão cautelar, que além de ser uma obra de arte projetada por um renomado arquiteto brasileiro, hoje falecido, o monumento representa um importante símbolo de memória e uma referência histórica, das trabalhadoras e dos trabalhadores sem terras vítimas de conflitos fundiários na região”.
Para Sandra Carvalho, coordenadora da Justiça Global, a determinação da Corte aponta para a necessidade do Estado brasileiro em adotar medidas efetivas de memória e justiça para reparar as violências cometidas contra os trabalhadores rurais. “O direito à memória adquire por este monumento não apenas uma dimensão individual, mas uma dimensão verdadeiramente coletiva, que se relaciona à história da luta pela terra no Brasil. A Corte, em sua decisão, não apenas reconhece esta dimensão, mas admite que a preservação do monumento pode configurar uma das medidas de reparação em uma futura condenação do Estado Brasileiro”.
Todo 02 de maio trabalhadores rurais sem-terra se reúnem ao pé do monumento. Foto: Wellington Lenon
Para garantir a integridade do monumento e amparada na Constituição Federal e leis municipais sobre preservação da memória, as organizações sociais solicitaram ao município de Campo Largo, neste ano, o tombamento da obra. Com processo administrativo instaurado, o Departamento de Cultura do município solicitou uma análise da Procuradoria Geral da Prefeitura e notificou a Postepar, que declarou não estar interessada em continuar com o contrato de comodato.
Ignorando o elemento territorial como fator simbólico da obra - já que o monumento está nas proximidades de onde ocorreu a violência contra os trabalhadores -, a Postepar sugeriu deslocamento da obra e declarou o monumento “é apenas um pedaço de concreto no meio do mato".
A Procuradoria Geral encaminhou o processo à Secretaria Municipal de Educação, Esportes e Cultura de Campo Lago para a continuação do processo administrativo, sem, no entanto, determinar que a Postepar não pode realizar qualquer intervenção no monumento que signifique dano ou remoção da obra.
Na denúncia realizada à Corte Interamericana as organizações apontaram que a remoção do Monumento não só o descaracterizaria, já que sua vinculação com o local específico onde se encontra é fundamental -, mas também traria consigo um risco de danos graves, inerentes a qualquer deslocamento de um bem cultural.
Antes da instauração do processo administrativo, o Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Habitação, Urbanismo e Meio Ambiente do Ministério Público do Estado do Paraná solicitou ainda em 2016 medidas de proteção ao monumento e abertura de um procedimento administrativo para analisar seu tombamento e proteção em um local provisório.
No dia 2 de maio de 2000 cerca de 2 mil integrantes do MST se dirigiam à capital paranaense para participarem da Marcha pela Reforma Agrária, em comemoração ao Dia dos Trabalhadores e Trabalhadoras.
Orientados pelo governo sob comando do governador Jaime Lerner, a Polícia Militar do Paraná, organizada em uma tropa de 1500 agentes, bloqueou a BR-277 e impediu - a bala - a chegada da comitiva de 50 ônibus à Curitiba. Na altura do quilômetro 108, sem antes mesmo de qualquer diálogo, os agentes públicos de segurança dispararam contra os trabalhadores assim que desceram dos ônibus. Entre os cerca de 185 feridos, o agricultor Antônio Tavares tombou ao disparo letal do policial militar Joel de Lima Santa Ana. Tavares, à época, tinha 38 anos e era pai de 5 filhos. Somente em 2012 o Tribunal de Justiça do Paraná condenou o Estado do Paraná pelo assassinato do trabalhador.
No dia 2 de maio de cada ano, trabalhadores e trabalhadoras rurais sem terra do Paraná se reúnem aos pés do monumento, em memória de Antônio Tavares Pereira e das "vítimas do latifúndio".
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Em caráter excepcional, Corte Interamericana determina que Brasil proteja monumento em memória a camponês - Instituto Humanitas Unisinos - IHU