26 Abril 2021
Ela foi deportada para Auschwitz-Birkenau aos 16 anos. Em seu escritório iluminado em Rennes, esta ex-psicóloga infantil publica um manifesto comovente voltado para os jovens. Aos 93, Magda Hollander-Lafon está convencida de que somos coletivamente responsáveis pelo mundo de amanhã. Então, ela "faz a sua parte".
Ela sempre se interessou pelos jovens, os ama, cresce com eles e os ajuda a crescer da melhor maneira possível. Essa ex-psicóloga infantil usa apenas palavras simples, essa é sua filosofia. Aos 93, ele se levanta da cadeira para procurar um documento, exclamando: "Sabe, quando você rejuvenesce, você não se mexe mais tão rápido." Em seguida, retorna com seu último livro, recém-publicado.
Em sua vida, encontrou milhares de crianças e adolescentes. Magda Hollander-Lafon é uma das últimas testemunhas do Holocausto, foi deportada para Auschwitz-Birkenau. Há cinquenta anos assumiu a tarefa de reparar a dignidade do ser humano, não contando o seu passado como um "velho dinossauro", mas dialogando sobre a urgência de olhar para o futuro. A sabedoria que ela transmite poderia parecer banal, mas sai de sua boca com rara simplicidade. Mãe de quatro filhos, avó de onze netos e dois bisnetos, a brincalhona “Magda”, como todos a chamam, recusa-se a orgulhar-se do rastro que deixa. Sempre a caminho, nunca “chegada”, diz convicta de que “seria triste dizer que chegamos, não haveria mais nada a fazer”.
A entrevista é editada por Fanny Cheyrouin, publicada por La Croix, 24-04-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Por que pede a todos que a chamem de Magda?
Quando alguém vem até mim dizendo "Madame", eu não me vejo. Todo mundo me chama pelo nome, Magda, é algo caloroso. Todas as crianças que encontrei, mais de 50.000 em toda a minha vida, me chamam assim. Eu sou de origem húngara. Magda é um nome comum na Europa do Leste, é o diminutivo de Magdalena. Minha mãe se chamava Ester e minha irmã Irene.
Como eram sua mãe e irmã?
Fomos deportadas juntas. Elas logo desapareceram na câmara de gás. Minha mãe era muito simples e presente, enquanto meu pai era sempre ausente. Esta é a lembrança que eu tenho. Minha irmã mais nova era uma garotinha que mostrava a sua alegria de viver. Ela era muito talentosa. Tínhamos quatro anos de diferença. Eu tinha 16 anos, ela 12 anos. Era a idade da adolescência, sempre havia conflitos entre a gente. Eu era a irmã mais velha, ela era a pequena, então havia desentendimentos. Não é um drama, era a nossa vivência. Minha irmãzinha faz parte da minha história pessoal. Existe uma grande diferença entre memória e lembrança. Para mim, a memória está inscrita na história. A lembrança está inscrita no coração, você pode usá-la como quiser. E é muito variável, pode mudar de acordo com seu estado de espírito. A memória é muito mais exigente. Por toda a nossa vida tentamos purificar a nossa memória.
O que aconteceu com sua língua materna?
Esqueci completamente minha língua materna, não sei mais falar. Não consigo dizer uma única palavra em húngaro. Quando falam comigo, eu não entendo. Só consigo ler em húngaro. Quando voltei para a Hungria depois da guerra, percebi que havia perdido meu idioma. Algumas palavras permaneceram, mas tenho que refletir para encontrá-las. Aquela língua que tanto amava, me vejo como uma criança de novo, escrevia muito ... Já nos campos de concentração, tive dificuldade em falar com as mulheres húngaras. Eu falava pouco, preferia ouvi-las falar. Um dia uma mulher me deu quatro pedaços de pão que pertenciam a ela e me disse em voz quase inaudível, em húngaro: "Você é jovem, você tem que viver, para contar ao mundo o que está acontecendo aqui, para que nunca mais acontece ". Naquele dia, eu entendi tudo.
Qual é a sua primeira lembrança quando deixou o campo de concentração?
Quando os soldados dos EUA nos encontraram, estávamos em péssimas condições. Eles nos levaram a pessoas que queriam nos oferecer muitas coisas. Eu disse que não precisávamos de todas aquelas coisas, apenas de um vestido para trocar. Depois os soldados me perguntaram o que eu queria. E me lembro de não saber dizer se preferia primeiro comer um pouco de pão ou me lavar. Eu escolhi me lavar. Não imaginam a alegria que senti ao ver tanta água na minha frente. Eu via mil cores. Era uma bacia completamente normal, grande, de zinco, mas estava cheia de água morna, não me causava arrepios. Pude lavar as mãos, o rosto, toda aquela água só para mim! Não tinha me despido, mas descobria um corpo que era meu. Só depois comi um pouco de pão. Na verdade, não o comi, o devorei.
Que tipo de criança você foi?
Eu era muito determinada, mesmo antes da guerra não era uma pessoa fácil, exigia coisas. Ficava muito à vontade entre as árvores, subia entre os galhos com meus papéis e meus lápis de cor. Escrevia tudo que não estava certo. Colocava tudo ao pé da árvore. Porque eu tinha certeza que me ouviria e não o contaria a ninguém. Quando me proibiram de ir à escola aos 14 anos, foi uma humilhação para mim, eu gostava muito da escola. A Hungria era muito antissemita, ninguém jamais estendeu a mão para nós. Eu era uma criança muito rebelde, queria que as coisas fossem certas. E achava que a vida não era justa. Para nós, judeus, não era.
Na semana passada, ao telefone, você me disse que adora perguntas. O que você gosta nas perguntas?
Quando você faz perguntas a alguém, você o faz existir. Não o considera um objeto. Se você fizer uma pergunta, significa que você tem a palavra. Para mim, a pergunta é algo existencial, não deveria haver perguntas proibidas. Quando não se tem a resposta para uma pergunta, não é algo grave. Você sempre pode responder: “Sua pergunta me desafia, mas não sei responder”. Assim, se expressa o que se sente. Ninguém pode responder por outro. Uma pergunta é uma ponte, uma abertura para o outro.
Você diz isso para os jovens que encontra?
Quando estou na frente deles, digo: "Vocês são únicos, vocês são muito importantes". Frequentemente nós consideramos os outros, especialmente as crianças, como objetos, como nossos objetos, como se nos pertencessem. Nenhuma criança nos pertence. Devemos acompanhá-las para que pertençam a si mesmas. Frequentemente, tomamos decisões por elas. Muitos me respondem: “Magda, ninguém nunca nos disse que éramos importantes”.
Palavras simples costumam ter muito peso. Eu também digo a eles: "Vocês são responsáveis por suas vidas". Talvez seja óbvio, mas não se escuta isso com frequência. As pessoas carregam dentro de si a ferida de não terem sido ouvidas por si mesmas. A criança é um ser vivo que acompanhamos para o seu devir. Nunca se pode ter um devir sozinhos, sempre precisamos de alguém que nos revele para nós mesmos.
Qual é a pergunta mais relevante que os jovens lhe colocaram?
“Magda, como podemos trabalhar pela paz?”. Digo-lhes que preferimos culpar o outro pelas coisas em vez de amá-lo. É o vício de nossa época. A internet é sempre um processo aberto. Todos se dividem, porque todos criticam e sempre encontram no outro o que há de errado. Em vez de ver o que está certo. “Vocês todos não tem um olhar?”, respondo a esses jovens. Saibam que com esse olhar vocês pode matar, julgar e condenar. Eu digo a eles: olhando, às vezes, vocês humilharam. Vocês colocaram a violência de lado, deram força a alguém para continuar? Despertaram nele a beleza e o impulso para viver? Um simples olhar sobre um ser pode matar nele o gosto da vida. Um simples olhar pode salvá-lo. Nós revelamos o melhor e o pior do outro. Por que essa necessidade de julgar? Isso é trabalhar pela paz. Aqui está minha resposta.
O que mais lhe chocou do que ouviu dos jovens?
Estávamos falando sobre piadas. Um deles me disse o seguinte: “Qual hotel com mais estrelas?”. E a resposta era: "Auschwitz"! Eu tinha centenas de jovens na minha frente, perguntei o que eles sentiam quando ouviam aquela piada. Eles me disseram que riam com os outros. Eu disse a eles: é mesmo uma piada? Eles não percebem a realidade das palavras, a realidade dos fatos. Tira-se deles a consciência, mas eles pedem apenas isso. E me pergunto o que transmitimos a eles, nós adultos ...
Perguntamo-nos sobretudo que mundo é este em que o homem é capaz tanto das coisas mais belas como das piores ... Este mundo está dentro de você, está dentro de mim. Veja, se eu decidisse contar a você sobre a parte mais escura da minha vida, com tudo que vi dos horrores da humanidade, eu poderia desencorajar qualquer um de viver. Mas eu escolho falar sobre o que há de bom. Hoje todo mundo se divide, é fácil. Destronar alguém está ao alcance de qualquer idiota! Mas ver que no outro existe a possibilidade do melhor, isso é saudável.
É preciso ter conhecido o sofrimento para apreciar a vida?
Não necessariamente. Uma coisa é certa, todos nós conhecemos o sofrimento. Precisamos questionar esse sofrimento: está ligado a uma falta de compreensão, a um juízo, a uma humilhação? Se a injustiça nos faz sofrer, significa que em nós há algo justo, e assim por diante. Mas algo ainda me desafia na natureza humana. Como é possível a submissão total? Os nazistas, por exemplo, eram mortos-vivos, não sofriam. Porque acredito que o fanatismo suprime toda humanidade. Você acredita que o homem que matou aquele professor em outubro tinha sentimentos? Esse cair em tal violência é um grande mistério. Minha conclusão então é que quando se sente um sofrimento, a pessoa se vinga ou tenta entender sua origem.
Você sobreviveu ao Holocausto. Alguém sugeriu que você dissesse que tinha 18 anos quando chegou a Auschwitz, por isso evitou a câmara de gás. Como conseguiu evitar que a pergunta "Por que eu?" a assombrasse por toda a vida?
Eu sou uma sobrevivente. Eu me fiz essa pergunta quando tinha 17 anos, quando fui libertada: por que eu sobrevivi? Todas aquelas pessoas maravilhosas que viraram fumaça, idosos, crianças, para nada. Só porque eram judeus. Quando reconheci que poderia morrer, o fato era uma realidade. Eu não tinha mais medo de morrer. Assim como hoje, sinto o fim da jornada da minha vida. Eu sei que não tenho muito mais tempo. Mas internamente me sinto em paz, porque é uma realidade e não tenho mais medo. Digo a mim mesma, tenho 93 anos, tive uma vida plena. Com muita humildade, digo a mim mesmo que por muito tempo me puni por estar viva, mas entendi que, ao culpabilizar a minha vida, ainda estava dando razão e um imenso poder a Hitler sobre mim. Quando entendi isso, acordei, quase da noite para o dia. Eu tinha 40 anos.
De que serviu todo o silêncio entre sua saída do campo de concentração aos 17 e seus 40 anos?
Aquele silêncio? Era uma autodestruição. Existem bons silêncios, espirituais, que se constroem. Mas aquele, me punia por estar viva. Quis morrer três vezes depois do campo. Eu entendo que alguns se suicidaram. A morte de seres como Primo Levi é um grande pesar. Eles ficaram desiludidos. Eu também fiquei desiludida, mas sempre havia algo que me segurava. Acho que todos aqueles que morreram, até o último minuto queriam viver.
Você diz que a Igreja não a defendeu muito durante a guerra. Por que então se converteu ao cristianismo?
Depois da guerra, fui colocada em um orfanato, depois em uma comunidade protestante. Havia uma esplêndida senhora lá para cuidar de mim. Eu perguntei a ela o significado da cruz que ela carregava no pescoço. Aquela cruz despertava em mim memórias, quando, aos 7 anos, na Hungria, fugi de casa numa Sexta-Feira Santa, apesar da proibição, e vi cristãos saindo da missa com uma cruz na mão e espancando judeus na rua justamente com aquela cruz.
O que ainda me assusta, na celebração da Sexta-Feira Santa, é que lemos no Evangelho de João “os judeus”, identificados como os maus. A Igreja transmitiu isso. Então, digo ao padre, ainda hoje, não se pode dizer "alguns" judeus? Caso contrário, significa todos. O perigo está no artigo. Como quando usamos "se” (se faz, se diz ...). "Se" não é ninguém! Acordem, vocês são alguém!
Ser judeu é viver com a certeza de que no final da história, e somente pela graça de Deus, a justiça e a paz terão vencido. (Ela se interrompe, emocionada, antes de terminar a frase.) Eles terão vencido, sobre o ódio e a morte. Nesse sentido, o padre me respondeu um dia que éramos todos judeus, é a base da humanidade.
E, como costumo dizer, Auschwitz está em cada um de nós. Mas quando vejo o recrudescimento do antissemitismo na França, fico profundamente preocupada. Porque se o judeu está em perigo, a humanidade está em perigo, Deus está em perigo.
O que a reconciliou com a cruz?
É para não mais ter medo que as perguntas devem ser feitas. Quando eu era pequena, tinha medo quando encontrava uma cruz em uma encruzilhada. Mas a senhora que conheci naquela comunidade me respondeu falando sobre sua medalha: aquela cruz, é Jesus Cristo. Depois ela me deu o evangelho. Eu abri e por acaso me deparei com Mateus 25: “Porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; estava nu, e vestistes-me”. Eu disse a mim mesma: “Mas isso é maravilhoso, este é alguém que me interessa”.
A Bíblia é maravilhosa, fala de nós hoje. Não sou uma convertida, porque nunca abandonei minhas raízes. Mas entendi que Deus havia assumido um risco ao se tornar homem. Que é algo que nos diz o quão importante é o ser humano. Compreendi que se descobria Deus através do homem, que não se aprendia de cor. Quando "casei" com a Igreja, era jovem. Hoje sou uma judia batizada, uma judia cristã, estou na Igreja. Sempre tenho o cuidado de dizer que somos todos judeus-cristãos. Eu sigo as pegadas do Cristo judeu. Quando a Igreja não faz referência às suas raízes, está em perigo, torna-se árida. Para mim, ser cristã é uma responsabilidade que escolhi.
Em seu livro, você escreve que o amanhã depende de como vivemos o presente. O que você quer dizer?
A forma como vivo, como me questiono todos os dias, que analiso e procuro compreender, é a que constrói o amanhã. E então há o fato de amar, de aprender a amar. Fala-se muito sobre o amor, em todos os sentidos. Mas a palavra amor é muito forte. Nunca se ama plenamente. Muitas vezes amamos o outro por nós mesmos, mas raramente apenas por ele. Porque nunca se ama verdadeiramente o outro, exceto quando se aprende a amar a si mesmo. Espero morrer amando. De toda forma, até o fim da minha vida terei que aprender a amar.
Seu livro é uma ode à juventude, mas o período em que vivemos nos dá vontade de fazer uma ode à velhice. À idade avançada, ao que perdemos de forma acelerada há alguns meses, devido ao distanciamento físico entre as gerações.
É verdade, todas essas memórias se extinguem de forma acelerada desde o início desta crise. Devemos celebrar a idade! Quando se atinge uma certa idade, se tende a pensar que a morte é o ponto final, mas o ponto que se deve olhar é sempre o amanhã. Independentemente da idade, a vida é sagrada e cada um de nós é responsável pelo amanhã. Tudo começa através de nós, há um começo em cada um de nós, carregamos o mundo até o nosso último suspiro.
Você que viveu quase um século, que comparação pode fazer entre os dois grandes eventos mundiais que marcaram o início e o fim da sua vida?
Tenho a impressão de já ter vivido o período que estamos vivendo. Não tanto pelo vírus em si, mas pelo que está por trás disso: a ameaça de divisão, o medo crescente do outro, dos árabes, dos judeus. Nunca devemos generalizar, devemos ter cuidado para não nos deixarmos influenciar. Posso escolher e não preciso sofrer com o estado de espírito em que vivo neste período, mas isso é desafiador. Quando somos negativos em uma discussão, nem sempre percebemos que revelamos o outro/a em seu dobramento sobre si mesmo, ao invés de revelá-lo/a em toda a beleza que há nele/a. Minha vida me provou que até na pior pessoa há algo de bom, disso tenho certeza. Cada um espera que se revele a si mesmo. Cada um se torna, evolui e cresce de acordo com a forma como isso se acolhe.
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“Um olhar pode salvar um ser”. Entrevista com Magda Hollander-Lafon, sobrevivente da Shoá - Instituto Humanitas Unisinos - IHU