08 Abril 2021
"Quem cospe fogo e pólvora, chumbo e bala, socos, gritos e pontapés – é porque tem alguma mágoa ou ressentimento a 'pagar/vingar', alguma fraqueza ou fragilidade a esconder, seja a si mesmo, seja aos outros. Carrega alguma lacuna inconfessada e inconfessável", escreve Alfredo J. Gonçalves, cs, padre, vice-presidente do Serviço Pastoral dos Migrantes - SPM.
Como se necessitasse de mais uma prova de sua ignorância e incompetência, o governo federal, na tentativa de fechar o orçamento de 2021, propõe aumentar o imposto sobre os livros. Não se trata aqui de uma mera aversão ou prévia indisposição diante de bibliotecas, estudos, pesquisas, academia, cultura, ciência ou saber!... Nada disso! O que está em jogo, no que diz respeito aos livros e ao que eles representam, parece ser uma inimizade visceral, figadal, para com quem os escreve, os compra e os lê. Ademais da generalização de que são todos comunistas, não se pode deixar de lado um certo “complexo de inferioridade” no confronto com aqueles que são capazes de argumentos racionais e fundamentados.
Os livros – esses companheiros fiéis e silenciosos – sempre incomodam e interpelam, inquietam e interrogam. Costumam tirar a paz dos inertes ou de quem é incapaz de curiosidade. Das duas uma: ou incomodam quando estão fechados, pois neste caso escondem um saber que questiona justamente por permanecer oculto; ou incomodam quando se encontram abertos, porque então requerem o empenho laborioso da razão e certa capacidade de argumentação. A um só tempo, velam e desvelam uma terra ignota, universo desconhecido e, por isso mesmo, tornam-se mais perigosos. Pior ainda quando retratam a história dos povos, culturas e nações.
E pior ainda em tempos crises, pestes e pandemias. Ou em tempos de tiranos e tiranias. Tanto estas como aqueles pretendem dominar sobre o ritmo e a interpretação da história. Disso vem a tentativa de impor um tempo único e próprio, controlado pela vontade de ferro, o dinheiro e os exércitos. Com efeito, não suportam que o tempo, dinâmico, caprichoso e imprevisível como só ele, tenha suas leis próprias, criem encruzilhadas no meio dos caminhos, apresente bifurcações alternativas. Tudo isso representa um risco para a ordem e o status quo. Um fator de mudança para quem descansa tranquilo em berço de ouro.
Isso explica, por outro lado, a relação doentia, mórbida, com as armas. Também aqui não se trata de um mero gosto de colecionador pelos diversos e exóticos tipos de armas; tampouco se pode falar de um simples robe pela caça ou o tiro ao alvo!... Nada disso! O que está em jogo é uma amizade igualmente visceral e figadal com a arma de fogo. Esta acaba se tornando uma espécie de prolongamento do braço ou da mão. Um membro do próprio corpo, com todo seu simbolismo e potencial fálicos. Essa posse ostensiva e arrogante da arma nada mais é do que coisa de fracos, covardes ou exibicionistas. Vemos isso, por exemplo, nos filmes de faroeste: ela passa a fazer parte integrante da indumentária característica do caubói e do seu cotidiano. Mas convém ir um pouco mais longe. Quem cospe fogo e pólvora, chumbo e bala, socos, gritos e pontapés – é porque tem alguma mágoa ou ressentimento a “pagar/vingar”, alguma fraqueza ou fragilidade a esconder, seja a si mesmo, seja aos outros. Carrega alguma lacuna inconfessada e inconfessável, fazendo da força bruta o escudo para se proteger. Ao complexo de inferioridade já assinalado, não é difícil prognosticar um “complexo de perseguição”.
De resto, não é de agora que o atual governo revela uma hostilidade mal dissimulada contra os cientistas, acadêmicos, escritores, poetas, jornalistas, músicos, analistas... e os artistas em geral. De alguma forma, teme pessoas que tiveram a oportunidades de desenvolver uma consciência crítica diante dos fatos e boatos, ou do projeto socioeconômico e político-cultural do contexto em que vivem. E mais ainda quando essas mesmas pessoas adquirem a capacidade de expressar suas ideias em obras que apontam para visões de mundo alternativas. Opositores, pensadores e críticos costumam escrever livros. Quem prefere armas aos livros, de igual forma demonizará quem os produz, publica, divulga e estuda. Daí porque os setores da educação, da informação de qualidade, dos museus e arquivos, da pesquisa científica e da cultura em geral – vêm sofrendo de um desmonte retrógrado e sistemático.
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Amigos das armas e inimigo dos livros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU