Os bispos conservadores e seus aliados, especialmente nos Estados Unidos, continuam ofuscando seus coirmãos mais progressistas ao apresentarem a sua visão de Igreja.
A opinião é de Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, nos EUA. O artigo foi publicado por La Croix International, 01-04-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O arcebispo Charles Chaput, que se aposentou como ordinário da Filadélfia há pouco mais de um ano, acaba de publicar seu último livro.
O capuchinho de 76 anos é um dos principais bispos estadunidenses que impulsionam o “catolicismo da guerra cultural” nos EUA.
E, como aconteceu com suas publicações anteriores, o lançamento deste novo volume foi uma operação cuidadosamente planejada.
Houve entrevistas com o autor para anunciar o lançamento do livro e endossos de vários conservadores religiosos dos EUA. Entre eles, estavam clérigos, jornalistas, acadêmicos e celebridades da mídia católica.
“Things Worth Dying For” [Coisas pelas quais vale a pena morrer] é o título provocativo da nova obra do arcebispo. E, assim como seus livros anteriores – e suas conferências de alto nível –, o livro faz parte do seu estilo e esforço de liderança eclesial para apresentar uma visão muito particular da Igreja e da sociedade.
O arcebispo Chaput e muitos de seus pontos de vista precisam ser contestados. Mas a maioria dos católicos liberais e progressistas estão simplesmente o ignorando. Eles fazem isso por sua própria conta e risco.
É impressionante que Chaput pareça ser o único bispo dos EUA no século XXI que parece capaz ou disposto a oferecer ao público em geral – católicos e não católicos – a sua visão em um formato que deixa uma impressão e um efeito mais profundos do que a entrevista ou o discurso ocasional.
O falecido cardeal Francis George OMI, que atuou como arcebispo de Chicago de 1997 a 2014, provavelmente foi o único outro bispo do país neste século a fazer isso. E ele também se pronunciava a partir da extremidade conservadora do espectro católico.
Embora o arcebispo Chaput esteja aposentado agora, ele manteve seu papel como uma das principais vozes públicas nas guerras culturais católicas estadunidenses.
Fomos lembrados disso há algumas semanas, quando ele escreveu um artigo pressionando a Conferência dos Bispos dos Estados Unidos (USCCB, na sigla em inglês) a estudar se a Comunhão deve ser dada ao presidente Biden por causa de seu apoio às políticas pró-escolha do Partido Democrata.
Os livros de Chaput não são ensaios acadêmicos, mas parecem panfletos. Para ser bispo, você não precisa ser acadêmico, e nem todo bispo precisa publicar livros.
Mas, para um bispo que aspira a ter um papel de liderança nos debates públicos sobre a Igreja nestes tempos turbulentos, publicar um livro é uma maneira eficaz de fazer isso.
Chaput escreve ensaios legíveis que apresentam uma tese e uma proposta. Ele parece ser um dos últimos bispos capazes ou dispostos a fazer isso.
Talvez isso se deva, em parte, ao fato de que a crise atual do catolicismo institucional parece ter posto fim à tradição dos bispos e cardeais que também eram algo como intelectuais públicos.
Havia as obras filosóficas de Karol Wojtyla, os ensaios bíblicos e espirituais de Carlo Maria Martini, a crítica cultural e antropológica de Camillo Ruini, a teologia fundamental de Karl Lehmann e, é claro, a teologia principalmente política de Joseph Ratzinger (publicada durante seus anos como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé).
Todos esses homens estão mortos ou aposentados. Hoje, é raro encontrar um bispo que publique livros que sejam mais do que uma mera coleção das suas homilias.
Além de Chaput, há também o cardeal Robert Sarah, em Roma, ex-prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos. Ele escreveu vários livros nos últimos anos, e a obra que ele publicou sobre o sacerdócio no início de 2020 causou muita polêmica.
Existem outros autores conservadores nos EUA – entre clérigos e leigos – que continuam oferecendo sua visão combativa e belicosa do catolicismo. George Weigel, é claro, está entre os mais conhecidos.
A questão é por que, do outro lado do espectro católico, não há bispos que publiquem livros que ofereçam uma visão da Igreja e da sociedade diferente e alternativa à oferecida pelo arcebispo Chaput, pelo cardeal Sarah e pelo Sr. Weigel.
O fenômeno não é específico da Igreja nos EUA, aliás. E há muitas razões possíveis para a sua existência.
A primeira diz respeito às mudanças no perfil intelectual dos bispos nomeados, que podem variar de um país para o outro.
Quase 40 anos atrás, os sociólogos Pierre Bourdieu e Monique de Saint Martin analisaram a situação dos bispos na França.
Eles notaram que havia uma mudança na nomeação de bispos, que ia de “les héritiers” – a “aristocracia” intelectual católica – àqueles que faziam parte de “les oblats” – os “zelotes” e administradores.
Esse novo tipo de bispo francês era um homem cuja preocupação e identidade era preservar a Igreja institucional, já que lhe faltava uma profunda formação intelectual e não clerical.
Uma segunda razão para o fenômeno está ligada às mudanças massivas no trabalho real de um bispo (o escândalo dos abusos sexuais, a redução das estruturas da Igreja, o colapso no papel social do clero etc.), que não deixam tempo ou energia para escrever livros.
Essa mudança nas funções episcopais é uma das razões pelas quais cada vez mais os candidatos a bispos se recusam.
Uma terceira razão é que os bispos hoje estão sobrecarregados pela insanidade ideológica que infesta as suas Conferências Episcopais. Os EUA são um excelente exemplo disso.
A USCCB, nestes últimos anos, investiu a sua autoridade em diferentes questões de uma forma extremamente desproporcional.
Vejam-se, por exemplo, os julgamentos morais que a Conferência tantas vezes faz sobre a questão LGBTQ e as “questões pélvicas”, enquanto permanece totalmente silenciosa sobre a nova versão do racismo de Jim Crow que põe na mira o direito de voto dos estadunidenses (muitos deles, católicos) em certos Estados.
Uma quarta razão possível é que os bispos que são diferentes de Chaput não podem articular a sua visão da Igreja e do catolicismo.
É algo que pode ser visto também na academia católica, onde se tornou mais difícil, do ponto de vista liberal, defender um argumento efetivo sobre aquela que eu chamaria de “eclesiodiceia” – uma defesa razoável da existência da Igreja institucional e da possibilidade de reformá-la.
Um quinto motivo pode ser que os bispos progressistas acreditam que não têm a autoridade moral para articular uma visão da Igreja. O atual escândalo dos abusos parece ter silenciado as suas vozes mais do que a de seus coirmãos conservadores.
Isso apesar do fato de que o fardo moral e teológico do escândalo faz parte do legado de João Paulo II e de Bento XVI (antes mesmo de ele ser eleito papa) e da geração de bispos que esses dois homens nomearam e promoveram.
Uma sexta razão é que os bispos progressistas não sabem quem estaria interessado em tal visão. Tanto o clero jovem quanto os teólogos católicos profissionais parecem estar mais distantes do que nunca dos bispos, por razões diferentes.
O clero jovem e conservador, porque seus heróis são os Chaputs e os Sarahs; os teólogos progressistas, porque a academia católica se deslocou para uma visão que é pós-institucional e pós-eclesial – senão na teoria, certamente na prática.
Uma sétima razão é que os bispos progressistas carecem do complexo eclesiástico-industrial que sustenta os autores da direita católica: o sistema midiático (especialmente a gigante EWTN), os think tanks católicos conservadores, as escolas e universidades, as revistas, as associações e as organizações como o Instituto Napa e os Cavaleiros de Colombo.
Enquanto a mídia conservadora dá apoio avidamente aos bispos “guerreiros culturais”, a mídia católica não conservadora e os bispos progressistas mantêm mutuamente uma distância cuidadosa.
Uma oitava e, talvez, última razão para esse fenômeno é que existe um mercado para a não ficção reacionária e a política da Igreja muito mais forte entre os conservadores do que entre os liberal-progressistas.
Há um “Partido de Deus” conservador que investe na cultura, enquanto o lado progressista investe em outros tipos de empreendimentos que refletem o tipo de cristianismo em que eles acreditam (por exemplo, o trabalho pelos pobres e marginalizados).
Ao fazer isso, o lado progressista falha em reagir a uma grande audiência na Igreja institucional e àqueles que ainda possuem as chaves para a mudança estrutural.
É importante reconhecer que existe uma assimetria entre a voz dos guerreiros culturais e a do catolicismo progressista, embora, obviamente, seja preciso cuidar para não generalizar os termos “conservador” e “progressista”.
O Papa Francisco provavelmente chegou cerca de uma década atrasado, especialmente para a Igreja dos EUA (embora não apenas aqui).
Ele foi eleito depois dos pontificados de João Paulo II e de Bento XVI, que contribuíram (muito além das suas intenções, creio eu) para radicalizar o catolicismo conservador em um sentido tradicionalista e impulsionar o sistema clerical.
Nessa assimetria, os conservadores têm um manual muito claro – as guerras culturais.
Os progressistas estão tentando se retirar dessas guerras, que causaram enormes danos à Igreja, tanto intelectual quanto espiritualmente.
Raimon Panikkar, um filósofo e teólogo católico cuja mãe espanhola era católica e o pai indiano era hindu, dizia que o “desarmamento cultural” é um meio eficaz para a paz.
Mas o desarmamento cultural deve ser explicado e articulado, caso contrário, parece uma rendição incondicional.
Por fim, o pontificado de Francisco parece estar bastante focado no próprio papa, graças ao departamento de comunicação do Vaticano e aos porta-vozes e intérpretes não oficiais dos papas.
Os chamados “bispos de Francisco”, aqueles que mais apoiam os objetivos e a visão do pontificado, parecem capazes apenas de repetir ou de imitar aquilo que está por vir.
Seria fácil compilar uma bibliografia de livros escritos por bispos e intelectuais católicos que criticam abertamente Francisco. E não é difícil fazer uma lista dos livros e tratados de autoria do próprio papa.
Mas seria muito mais difícil montar um catálogo de livros escritos por bispos e intelectuais católicos que tentam articular a visão de Francisco sobre a Igreja e a sociedade.
E não se pode culpar o papa ou os seus opositores por isso.