27 Janeiro 2021
“O que a pandemia tem a ver com filosofia?”, pergunta Kabwana Minani Barthélemy, missionária xaveriana residente em Moçambique, em artigo publicado por Missione Oggi, nº.06, dezembro-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Com o advento do coronavírus, o velho mundo está gradualmente se desintegrando, enquanto o novo toma forma. Esse vírus é extraordinário, quebra nossos parâmetros de referência, transforma nosso cotidiano e muda nossa relação com os outros, com o espaço, com o tempo, com a liberdade e até com o trabalho. Estamos diante do que o acadêmico e filósofo francês Roger Pol Droit (1949-) chama de “tsunami mental”. Nossas convicções são abaladas e nossas certezas tornam-se incertezas.
Eu me pergunto, como estudiosa e apaixonada pela filosofia: “O que a pandemia tem a ver com filosofia?”.
Na Grécia antiga, o objetivo da filosofia era compreender e explicar os enigmas da vida. A filosofia estava interessada em "como viver" ou "como ajudar os outros a viverem felizes"; em outras palavras, a filosofia queria ajudar os seres humanos a alcançar a felicidade. Por que a Antiguidade centrou a filosofia em "como viver"? Simplesmente porque nossa existência é marcada por problemas permanentes, como a paixão (amorosa), a ambição de poder, a busca por dinheiro (riqueza), o medo, o temor, a angústia, a doença, a morte, etc. O ser humano tende a vincular a felicidade à fama, ao poder ou mesmo à riqueza. Da mesma forma, associa a infelicidade ao fracasso, à doença ou mesmo à morte. A filosofia chegou para acalmar a ansiedade dos homens, mostrando-lhes que a felicidade não depende dos bens, sejam eles materiais ou imateriais. Em vez disso, o segredo da felicidade deve ser buscado na quietude da alma (ataraxia).
Voltando à pergunta inicial - "o que a pandemia tem a ver com a filosofia?" - eu diria que quando o ser humano vivencia um fenômeno novo ou vivencia um fato radicalmente novo, surge nele o espanto, a surpresa e, mais ainda, a admiração. Segundo Platão e Aristóteles, o espanto está na origem da filosofia. Consequentemente, o aparecimento inesperado do Covid-19 em nosso mundo nos surpreendeu e causou espanto em todos nós. Entende-se, então, por que o fenômeno atual da pandemia diz respeito à filosofia no mais alto nível.
Visto que a filosofia faz perguntas mais que fornecer respostas, não esperemos um milagre do filósofo. Já que a filosofia se preocupa com o ars vivendi (como viver), nos perguntamos: como continuar vivendo apesar do Covid-19? A esse respeito, uma das principais escolas da filosofia antiga, a dos estóicos, parece-me particularmente interessante. Um dos grandes estóicos da época romana, Epiteto (cerca de 50-135 d.C.), afirmava que "há coisas que dependem de nós e coisas que não dependem de nós".
Por exemplo, a situação atual não depende de nós, o vírus que se tornou uma pandemia. Em vez disso, cabe a nós, por exemplo, desacelerar sua difusão, com distanciamento social, com medidas de proteção, com normas de higiene, etc. Aliás, ao observar as pessoas aqui em Moçambique, tenho a impressão que, no imaginário coletivo do lugar, nada depende de nós, mas tudo dos outros. De forma que ninguém aqui faz nada, porque todo mundo espera tudo de todos (os outros). Enquanto isso, o coronavírus está avançando. Como então a filosofia pode nos ajudar a superar as nossas incongruências, para que possamos segurar o touro pelos chifres?
Os estóicos enumeram quatro virtudes cardeais, que podemos colocar em prática no contexto atual da pandemia:
1) A sapiência, isto é, saber acolher os acontecimentos atuais com calma e serenidade; não entrar em pânico, não procurar a todo custo um culpado (infectante).
2) A justiça, ou seja, estarmos cientes de que nosso comportamento atual pode salvar ou colocar em risco vidas humanas; aprender a seguir as instruções.
3) A moderação, isto é, controlar nossos impulsos e moderar os nossos prazeres, as nossas paixões.
4) A coragem, ou seja, não ter medo de tomar decisões que nos custam (cotas de liberdade individual, paixões pessoais), no momento certo e para o bem de todos.
Em um mundo que se tornou uma aldeia global, um velho ditado africano pode nos ajudar: se a casa do vizinho queima, não consigo dormir em paz, imaginando que o mesmo fogo possa atravessar rua e acabar queimando também a minha casa. Em vez disso, terei que tomar providências, reforçando as medidas de segurança ao meu redor e preparando um lugar a mais em minha casa para acomodar os prováveis fugitivos. Aqui em Moçambique, vimos o incêndio do Covid-19 irromper na China e espalhar-se pela Europa, antes que pela África. Que medidas sérias tomamos para nos manter seguros? A crise atual nos ensina muitas coisas; vou me limitar a propor três:
1) Aprender a viver em companhia de si mesmo. O grande pensador francês Blaise Pascal (1623-1662) dizia que “Todos os problemas da humanidade decorrem da incapacidade de o homem ficar tranquilamente sozinho sentado no seu quarto”. Queremos sair, viajar e nos encontrar com pessoas. De tanto querer ir apenas para os outros, esquecemos de ir até nós mesmos, enfim, esquecemos de nós mesmos, de trabalhar sobre nós mesmos.
2) Saber que o acaso faz parte da existência. Desde o Iluminismo, o ser humano investiu muitos recursos e energias para erradicar a incerteza e o acaso da existência. Hoje a experiência desta pandemia nos ensina que, se quisermos eliminá-la, ela reaparece na forma de um vírus imprevisível.
3) Manter os pés no chão: com a revolução digital, estamos perdendo de vista que o mundo é concreto, real. Esta epidemia recoloca a natureza no centro do jogo, convida-nos a saber habitar um mundo frágil.
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Pandemia não rima com filosofia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU