22 Dezembro 2020
"O CONANDA não autorizou ou aprovou 'visita íntima' para pessoas menores de idade em unidades socioeducativas. Quem fez isso foi o Congresso Nacional, a partir de discussão lá realizada de 2007 a 2012, ano de aprovação da norma que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE)", escreve José Carlos Sturza de Moraes, cientista social, mestre em Educação, ex conselheiro do CONANDA, especialista em Ética e Educação em Direitos Humanos e especialista em Educação de Jovens e Adultos e Educação de Privados de Liberdade.
Circulam na imprensa nacional inúmeras matérias extremamente tendenciosas quanto à atuação do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) porque, nesta semana, deliberou resolução conjunta com o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT), que “Estabelece diretrizes para o atendimento socioeducativo às adolescentes privadas de liberdade no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE)”.
Tal circulação de matérias insidiosas, não informativas e, portanto, danosas ao interesse público vão ao encontro do discurso e das práticas majoritárias da atual gestão federal que realizou intervenção criminosa no CONANDA em 2019, revista pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que buscou enfraquecer aquela instância normativa das políticas públicas destinadas ao atendimento dos direitos de crianças e adolescentes no Brasil.
Digo tendenciosa, desejando dizer que é parcial e absolutamente mal intencionada. Pois vejamos.
Em primeiro lugar, o CONANDA não autorizou ou aprovou 'visita íntima' para pessoas menores de idade em unidades socioeducativas. Quem fez isso foi o Congresso Nacional, a partir de discussão lá realizada de 2007 a 2012, ano de aprovação da norma que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), Lei 12.594/2012, que criou em um capítulo próprio essa possibilidade.
Ei-lo:
"CAPÍTULO VI, DAS VISITAS A ADOLESCENTE EM CUMPRIMENTO DE MEDIDA DE INTERNAÇÃO | Art. 67. A visita do cônjuge, companheiro, pais ou responsáveis, parentes e amigos a adolescente a quem foi aplicada medida socioeducativa de internação observará dias e horários próprios definidos pela direção do programa de atendimento.
Art. 68. É assegurado ao adolescente casado ou que viva, comprovadamente, em união estável o direito à visita íntima. Parágrafo único. O visitante será identificado e registrado pela direção do programa de atendimento, que emitirá documento de identificação, pessoal e intransferível, específico para a realização da visita íntima.
Art. 69. É garantido aos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação o direito de receber visita dos filhos, independentemente da idade desses.
Art. 70. O regulamento interno estabelecerá as hipóteses de proibição da entrada de objetos na unidade de internação, vedando o acesso aos seus portadores".
Mas há uma justificativa plausível para tal norma? Sim. Muitas pessoas adolescentes, submetidas a medida restritiva de liberdade têm vida sexual ativa. Algumas, inclusive, são pais ou mães de crianças. E o direito da população adulta, no que couber, cabe também à população infanto-juvenil.
Oficialização de estupro? Permissividade? Penso que só nos olhos e consciências de quem quer enxergar isso.
Devem as autoridades públicas, especialmente aquelas encarregadas da execução das Medidas Socioeducativas zelar para que as normas sejam bem cumpridas. Que se analise caso a caso e se garanta o superior interesse de crianças e adolescentes. No caso de adolescentes e jovens em cumprimento de medida restritiva de liberdade deve se ouvir de seus desejos e o direito a convivência familiar e comunitária abriga também o direito a visita íntima.
Não se trata de um mercado de sexo, mas de reconhecer as relações que a pessoa tem fora do ambiente restritivo de liberdade e que, inclusive, podem a ajudar a superar as situações adversas que a levaram a cometer ventual ato-infracional.
Mas o que o CONANDA tem a ver com isso? O CONANDA é um órgão federal, colegiado, que tem por função pública "elaborar as normas gerais da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, fiscalizando as ações de execução, observadas as linhas de ação e as diretrizes estabelecidas nos arts. 87 e 88 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente)", conforme definido no artigo 2º da Lei Federal 8.242/91 que criou o Conselho.
Mas então, por que o CONANDA está sendo atacado desta forma? Porque o governo federal, em sua atual gestão, segue buscando dar, de forma autoritária, sua identidade ao Estado Brasileiro, ainda que contrariamente às normativas legais que é obrigado a seguir. E colegiados de gestão pública, como o CONANDA, deliberativos e autônomos, são vistos como inimigos desta gestão federal. Por isso a intervenção criminosa de 2019 e por isso a cassação daquela intervenção pelo STF.
Todavia, vamos ao fato gerador, neste momento, do ataque estatal e midiático. O CONANDA editou, como lhe compete, uma resolução que "Estabelece diretrizes para o atendimento socioeducativo às adolescentes privadas de liberdade no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE).", em plenária virtual, com agenda determinada, em que o governo tinha 14 votos e a sociedade civil 14 votos (pois é um órgão paritário). O governo teve 4 faltas, mesmo podendo nomear suplentes a tempo. A sociedade civil fechou questão. Foram 14 a 10 votos.
Mas quanto às visitas íntimas? Efetivamente, quanto a essa questão o CONANDA não ultrapassou os limites da Lei 12.594/2012 que instituiu o SINASE. Inclusive, como normalmente tem feito, buscou melhorar o atendimento aos direitos da criança e do adolescente no Brasil, trabalhando o direito à convivência familiar e comunitária de forma ampla, sem moralismos e alardes, e de forma assertiva.
Eis os textos da resolução, robusta e meritória do órgão nacional de direitos humanos de crianças e adolescentes no Brasil, quanto a essa temática:
"CONSIDERANDO que a Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas de 1989, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990, estabelece o direito a não ser objeto de interferências arbitrárias ou ilegais em sua vida particular, família, domicílio e correspondência, nem de atentados ilegais a sua honra e a sua reputação (art. 16), proteção contra todas as formas de violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus tratos ou exploração, inclusive abuso sexual (art. 19), proteção contra a tortura, garantia de privação de liberdade somente em conformidade com a lei, apenas como último recurso e durante o mais breve período, tendo assistência jurídica, além do direito a manter contato com sua família por meio de correspondência ou de visitas (art. 37); [...]
Art. 31. A adolescente em período de gestação ou de lactação não sofrerá qualquer medida disciplinar que, por qualquer circunstância, represente restrição à alimentação, à água e à visita familiar. [...]
Art. 33. É direito da criança filha das adolescentes privadas de liberdade receber visitas do genitor e de ter acesso a registro civil logo após o nascimento. [...]
Art. 39. Quando a unidade acolher as adolescentes de outros municípios, deverá oferecer apoio logístico para deslocamento das famílias, nos dias de visitas e atividades na instituição.
Art. 40. A proibição, ameaça de suspensão, ou redução do tempo de duração das visitas e contatos telefônicos com familiares não deverá ser utilizada como forma de sanção disciplinar pela unidade. § 1º Qualquer limitação sobre o contato familiar será medida excepcional e determinada judicialmente, conforme disciplina o art. 124, § 2º, da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. § 2º As unidades farão articulações com a direção de estabelecimentos penais, para promover visitas de adolescentes aos pais, mães ou responsáveis que se encontrarem igualmente privados de liberdade. § 3º As visitas familiares na unidade, principalmente quando envolvam crianças, devem garantir contato direto com as adolescentes, em um ambiente organizado que favoreça uma experiência positiva do encontro, bem como a satisfação na manutenção do vínculo familiar. § 4º Serão oferecidas diferentes estratégias que estimulem a manutenção dos vínculos com amigos e pessoas de referência das adolescentes, bem como os meios de comunicação com o mundo externo.
Art. 41. Deverá ser garantido o direito à visita íntima para as adolescentes, independentemente de sua orientação sexual ou identidade e expressão de gênero, nos termos do artigo 68, da Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012.".
Portanto, o CONANDA tratou do direito à convivência familiar e comunitária e do direito da adolescente gestante. Nada do que a mídia e o governo federal de forma irresponsável e premeditada vêm tratando.
Talvez, o destaque “independente de sua orientação sexual ou identidade e expressão de gênero” seja o que efetivamente causou o mal-estar, mas não pode ser dito. Além do fato evidente que a polêmica, extremamente insidiosa, pode carregar mais pessoas a aderirem a uma das pautas mais caras para o governo federal na atualidade: a redução da idade penal. Pois vão anunciar que adolescentes têm direito até ao sexo no sistema socioeducativo. E, novamente, faltarão com a verdade contextualizada, pois no sistema adulto é permitido. Ainda quanto a este ponto é interessante salientar que temos pessoas maiores de 18 no SINASE, cumprindo Medida Socioeducativa determinada ainda quando eram menores de idade.
Finalizando, entendo que a normatização era necessária. É ampla e assim que publicada oficialmente, precisamos conhecê-la na totalidade, pois vem a apoiar todas as autoridades e pessoas que se ocupam do cuidado com as pessoas em privação de liberdade juvenil no Brasil. Por evidente, excluindo-se destas, infelizmente, a gestão pública de Estado nacional dos Direitos Humanos. Uma lástima!
Em todo caso, parabéns à sociedade civil brasileira que compõe o CONANDA. Essa era uma das pautas que precisam ser tratadas e o foram de forma absolutamente profissional e pró-cuidado!
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O CONANDA, a visita íntima e o desserviço público do Governo Federal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU