"Talvez, caminhando na direção de uma dimensão mais abstrata, e por isso mesmo mais real, é hora de percebermos esse curioso paradoxo entre a expectativa de um desenvolvimento material infinito, agora desmentida, e a absoluta escassez de recursos simbólicos para conviver, seja no nível pessoal, seja no nível mais social, com os limites dentro dos quais transcorre a aventura humana", escreve Ricardo Fenati, Francisco Aquino Júnior e Álvaro Mendonça Pimentel, em artigo publicado no Cadernos Teologia Pública, Nº 147, do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Como tudo que acontece a nós, os humanos, a Covid-19 apresenta questões que solicitam o recurso a mais de uma perspectiva de análise, seja devido à sua complexidade, seja devido à relevância, e mesmo à urgência do seu enfrentamento. Há problemas que solicitam um entendimento a curto prazo e há questões que requerem um esforço paciente e longo de compreensão.
Um olhar à nossa volta, na proximidade mais imediata, já é revelador. A alteração brusca da sociabilidade pode ser vista nas ruas: as cidades estão mais vazias de pessoas e de carros, um silêncio inusitado cai sobre os espaços, habitualmente barulhentos, e nunca tantas pessoas se mantiveram por tanto tempo em suas casas. Visitamos menos uns aos outros, os contatos intrafamiliares se reduziram e a recomendação da necessária reclusão ampliou a solidão de grupos, como o dos idosos, tradicionalmente mais alijados de um contato social continuado.
A esses dados mais imediatos, outros se somam. A convivência forçada nos espaços domésticos, somada à suspensão da atividade laboral, tem levado seja à multiplicação dos conflitos familiares, tal como indicam o aumento da violência contra mulheres e idosos, seja ao incremento das dificuldades de ordem psíquica, como a já observada tendência de crescimento nos indicadores de ansiedade, depressão e outras patologias de ordem psíquica.
Esse novo cotidiano, transparente mesmo ao olhar menos atento, tem como pano de fundo uma crise econômica de grande alcance. Fenômenos como o desemprego, que já era significativo antes da pandemia, se ampliaram e, ao lado da corrosão da atividade econômica motivada pelas medidas, necessárias, de natureza sanitária, criaram um cenário cujo enfrentamento exige recursos e medidas que excedem em muito as estratégias de que dispomos. A crise não apenas tem efeitos imediatos, mas aponta para a persistência dos problemas, num arco de tempo maior. E aqui a relação tensa com a ação do vírus se impõe: há problemas imediatos a serem resolvidos, e sabemos com que grau de complexidade, e há muita incerteza acerca das consequências de longo alcance que advirão.
Mas se essas questões alcançam a sociedade como um todo, não a alcançam, considerada a sua composição, da mesma forma e nem com a mesma intensidade. A desigualdade social, historicamente endêmica entre nós, evidencia a crueldade e a desumanidade de seus efeitos. Como sabemos, o isolamento social, a necessidade de permanecer mais tempo em casa, traz à tona o grave problema da moradia no Brasil, descurado por quaisquer políticas de alcance efetivo. Moradias precárias, destituídas de condições sanitárias adequadas, acrescem, em muito, os problemas decorrentes da pandemia.
Não são menores as consequências da desigualdade sobre a educação. Se temos problemas com o sistema público de educação, eles se agravaram no atual cenário. A passagem para a modalidade virtual, inevitável, depende da existência, em casa, de condições de acesso ao ensino a distância. Inexistindo tais condições, ou disponíveis apenas num patamar muito precário, avolumam-se os indicadores da desigualdade. Não é preciso insistir que o vigor de um sistema público de educação, sobretudo em sociedades cada vez mais dependentes do conhecimento, é condição insubstituível de cidadania.
Tudo isso nos lembra, o que é próprio dos fenômenos humanos, que acontecimentos como a presente pandemia têm sua realidade própria, dolorosa, desigualmente dolorosa, mas funcionam também como oportunidade de leitura dos tempos e das sociedades nas quais vivemos. Lições as mais diversas brotam do nosso esforço de compreensão, mas, se dependem de nossa atenção, dependem, igualmente ou talvez ainda mais, da atuação das forças comprometidas com as mudanças que se fazem necessárias. Neste momento, trata-se não apenas de manter o comprometimento com o combate ao vírus, com a ênfase nas pesquisas que se ocupam de vacinas e medicamentos, mas de ressaltar que há uma pauta de debates, cuja procedência foi enfatizada pela Covid-19, que deve, esperamos, estar presente na agenda política nacional.
Se essas são as questões que irrompem no primeiro plano e, como se pode perceber, com implicações mais dolorosas, questões de mais longo alcance também estão postas. Expressões como “novo normal” ou “fim de um mundo” assinalam a possibilidade de estarmos diante de uma crise mais ampla de alcance, quem sabe, civilizacional. Se, de fato, para além da grandiloquência das expressões, alguma coisa está sendo gestada, ainda precisaremos de mais tempo para nos certificarmos. Mesmo porque, aqui e ali, onde as restrições estão sendo abrandadas, o que observamos é um retorno aos antigos hábitos, como se a crise fosse, exclusivamente, um intervalo a ser esquecido e desse lugar a uma, enfim, convalescência.
Mas há problemas postos. E são vários. De início, a percepção de que pandemias exigem um sistema de saúde, de natureza pública, capaz de se haver com patologias de largo alcance. Uma maior alocação de recursos, uma melhor distribuição geográfica de instituições hospitalares, a solução de questões sanitárias primárias, tudo isso deve ser objeto de estudos e estratégias de implantação, no curto e médio prazo. Devem entrar de forma mais contundente na pauta pública de discussões as medidas relativas a políticas ambientais capazes, no seu âmbito, de reverter a irresponsabilidade com relação ao meio ambiente, que tem caracterizado, nesses últimos anos, a atuação do governo brasileiro.
Uma questão mais inquietante, seja devido às consequências a que está associada, seja devido ao seu ineditismo, diz respeito à relação entre a desejável autonomia da pesquisa científica e as normas éticas capazes de impedir desenvolvimentos danosos de longo alcance. À medida que aumenta o nosso domínio da natureza, em que cresce o repertório tecnológico, inclusive no que se refere ao domínio da biotecnologia, fica ressaltada a nossa indigência no que diz respeito a essa temática.
Uma lição a ser retirada dessa longa pandemia é a percepção de que, além de danosa, é ilusória a sensação de onipotência e autossuficiência que marca a modernidade. A devastação humana que estamos presenciando, indiferente à localização geográfica, indica, de forma tão trágica quanto patética, a presença de uma natureza que está longe de subordinar-se à precipitação do desejo humano. A natureza parece estar a exigir de nós maior humildade, na busca do conhecimento, e muito maior comedimento no que concerne às nossas ações e ambições, até aqui, frequentemente, contaminadas pela ganância. O desespero desses tempos, compatível, é claro, com a gravidade da situação, é também um sinal de quão despreparados estávamos, e estamos, diante da quebra da ilusão mencionada.
Talvez, caminhando na direção de uma dimensão mais abstrata, e por isso mesmo mais real, é hora de percebermos esse curioso paradoxo entre a expectativa de um desenv
olvimento material infinito, agora desmentida, e a absoluta escassez de recursos simbólicos para conviver, seja no nível pessoal, seja no nível mais social, com os limites dentro dos quais transcorre a aventura humana. O que aprendemos com essa pandemia, e essa discussão já começa a se espalhar, é que somos uma civilização que tem mais medo de morrer do que, propriamente, vontade de viver. Na ausência de ideais e valores de mais longo alcance, marcados pela solidariedade entre nós e em relação à casa que habitamos, só restaria mesmo uma busca frenética de proteção.
Mas se a hora é grave, e é, não esqueçamos do que a literatura nos ensina, que não devemos viver oscilando entre o medo e o ódio, e, mais, que “aí onde mora o perigo, mora também a salvação”.
Este artigo integra a primeira parte do projeto editorial intitulado “Igreja e evangelização: provocações da pandemia”, organizado pelo Grupo de Pesquisa “Teologia e Pastoral” – do Programa de Pós-Graduação em Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), publicado na 147ª edição de Cadernos Teologia Pública.
Acesse aqui os Cadernos Teologia Pública na íntegra.