22 Junho 2020
Os estadunidenses de uma certa idade cresceram sabendo que havia dois assuntos que não se discutiam na mesa de jantar: religião e política. Ambos despertam paixões profundas e muitas vezes incontroláveis, um problema que fica ainda pior quando você relaciona os dois tópicos.
O comentário é de John L. Allen Jr., publicado em Crux, 21-06-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Talvez não devesse surpreender, portanto, que uma viagem-surpresa do Papa Emérito Bento XVI à sua Baviera natal para estar com seu irmão moribundo, o Mons. Georg Ratzinger, parece estar alimentando imaginações políticas e religiosas efervescentes.
Desde que a viagem foi anunciada na última quinta-feira, a primeira de Bento fora da Itália desde a sua renúncia há sete anos, várias versões das seguintes teorias surgiram na imprensa alemã e italiana, assim como nas discussões online:
- Bento XVI nunca mais voltará a Roma, porque, assim como seu homônimo São Bento, ele está enojado com a corrupção da Cidade Eterna e deseja fugir para uma espécie de eremitério do século XXI.
- Bento XVI não voltará, porque não pode apoiar a direção que está sendo dada pelo Papa Francisco. Por isso, recusar-se-á retornar após a morte do seu irmão é a sua forma final, embora silenciosa, de protesto (isso apesar de o fato de Bento ter solicitado e recebido a aprovação de Francisco antes de iniciar a viagem).
- Bento XVI ficará na Alemanha a fim de servir de contrapeso à linha progressista da maioria dos bispos do país, enquanto eles embarcam em um controverso “Caminho Sinodal” de dois anos, debatendo temas como celibato clerical, moral sexual e mulheres na Igreja (essa parece ser a perspectiva mais empolgante para a imprensa alemã em particular).
Sem dúvida, estou pulando algumas coisas, porque, em certo momento, parei de prestar atenção. Na realidade, o Vaticano negou que Bento não voltará, mas, como sempre, isso não impediu que alguns brincassem de imaginar cenários futuros.
Acontece que a especulação durou pouco, já que a Diocese de Regensburg anunciou nesse domingo, 21, que Bento XVI voltará para Roma nesta segunda-feira de manhã, 22.
É tentador descartar tais cenários obviamente prematuros como tolices, exceto por dois pontos.
Primeiro, estamos falando de um homem de 93 anos que talvez esteja fazendo a viagem final da sua vida para estar com a pessoa da qual ele é mais próximo nesta terra antes de morrer. Seria bom que Bento fizesse isso sem ter que ponderar sobre a política da situação e sem se sentir pressionado a interromper a viagem ou a fazer outra coisa por causa da ansiedade em relação à reação popular.
Vale lembrar que os três filhos de Ratzinger – Georg, Joseph e sua irmã Maria, que faleceu em 1991 – eram muito unidos quando cresceram, em parte porque seu pai, um policial bávaro, assumiu uma série de posições cada vez mais baixas durante os anos 1930, a fim de permanecer o mais longe possível do crescente poder dos nacional-socialistas.
A família se mudou várias vezes em poucos anos, o que significa que as crianças foram arrancadas repetidamente de seus amigos e aprenderam a se apoiar mutuamente.
Os dois irmãos eram tão próximos que obtiveram a permissão para serem ordenados juntos no mesmo dia em 1951 e presidiram suas primeiras missas públicas um de costas para o outro no vilarejo de Hufschlag, nos arredores da cidade de Traunstein, na Baviera, onde a família havia se estabelecido (na época, a concelebração ainda era considerada algo excepcional).
Maria, a irmã deles, nunca se casou e mais tarde se tornaria secretária e cuidadora do futuro papa, morando em seu apartamento em Roma na Piazza Leonina, cumprindo uma promessa feita a seus pais de que cuidaria dos irmãos. Ela morreu na Baviera em 1991, após um infarto fulminante durante uma visita ao túmulo de seus pais.
Naquela ocasião, o futuro Bento XVI não conseguiu chegar em casa a tempo, não estando presente nos momentos finais de sua irmã. É compreensível, portanto, que ele esteja especialmente motivado para estar presente com o seu irmão.
Dado tudo isso, a simples decência parece ditar que se evite piorar uma situação já angustiante, sobrecarregando-a com teorias da conspiração e conjecturas políticas.
Segundo, tudo isso também ajuda a explicar por que o papa emérito não mora em Regensburg com o seu irmão o tempo todo.
Quando Bento XVI renunciou em 2013, de acordo com vários antigos homens da Igreja mais próximos do papa, sua esperança original era retornar a Regensburg e retomar uma espécie de vida privada. Ele teve que ser persuadido, de acordo com essas fontes, a permanecer no Vaticano.
Em parte, o argumento se resumia a uma simples questão de logística, já que no Vaticano ele já tinha pessoal de segurança e de apoio, enquanto tudo isso teria que ser construído do zero em Regensburg. Em parte, no entanto, o argumento também se baseava na política – permanecendo no Vaticano, segundo a teoria, Bento não seria uma distração para o seu sucessor, porque ninguém pensaria que ele estava montando uma corte papal rival, e seria mais difícil para as pessoas explorá-lo como uma fonte alternativa de autoridade.
Como um cardeal me disse na época, “será mais difícil para as pessoas irem ao seu encontro” atrás dos muros do Vaticano.
Pode haver alguma validade para essas preocupações, e os especialistas no papado terão que avaliar a experiência de Francisco e Bento para avaliar o melhor curso futuro.
Enquanto isso, entretanto, a questão é que a política da Igreja e uma imaginação hiperativa provavelmente já custaram a Bento oito anos que ele poderia ter compartilhado com o seu irmão, de uma maneira muito mais profunda do que falando ao telefone e se vendo algumas vezes por ano (é claro que Georg poderia ter se juntado ao irmão no mosteiro Mater Ecclesiae do Vaticano, mas isso significaria abandonar a Baviera).
Há uma certa ironia em tudo isso, pois são justamente as pessoas ostensivamente mais preocupadas com a independência do papado que, ao exagerarem cronicamente na interpretação de tudo, acabam pressionando os papas e restringindo as suas escolhas talvez mais do que qualquer outra pessoa.
Mas, por enquanto, talvez a moral da história mais imediata seja que este é um bom momento para dar um passo atrás, ficar em silêncio, exceto para a oração, e deixar esse drama humano íntimo se desenrolar. Tenham a certeza de que, assim que os irmãos Ratzinger tenham se despedido, haverá tempo de sobra para se digladiar, se necessário, sobre o tudo que isso significou.
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Joseph e Georg: os perigos de uma imaginação hiperativa quando dois irmãos se despedem - Instituto Humanitas Unisinos - IHU