19 Junho 2020
Falta de saneamento na capital, que concentra mais da metade dos casos no estado, dificulta a adoção de medidas preventivas; governo estadual pretende ceder serviços à iniciativa privada.
A reportagem é publicada por Brasil61, 18-06-2020.
Mesmo sendo cartão postal de uma das sete maravilhas modernas do mundo, a cidade do Rio de Janeiro ainda não garante direitos básicos à maioria de sua população. Dos quase sete milhões de habitantes que vivem na capital, cerca de um milhão ainda não tem coleta de esgoto e 173 mil se viram como podem para driblar a falta de água encanada e se prevenir contra o coronavírus. Os dados são do Painel Saneamento Brasil, com base no Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS).
Na Rocinha, primeira favela do Rio a registrar casos de covid-19 e onde moram cerca de 70 mil pessoas, segundo o último censo do IBGE, a batalha para proteger a si e aos familiares começa dentro de casa. Com interrupção constante no abastecimento de água e áreas com esgoto a céu aberto, a população da comunidade se torna a principal vítima do vírus. Em todo o estado, são 86.963 casos confirmados até 17 de junho, 45,9 mil só na capital, segundo o boletim da Secretaria Estadual de Saúde.
“Como é que essas pessoas podem se higienizar, em um momento de pandemia, se elas não têm água? Muitas usam água de poço, de cacimba, de cachoeira, de rio. Além de não se higienizar contra o coronavírus, elas podem adquirir outras doenças que são tradicionalmente transmitidas pelo esgoto doméstico”, alerta o presidente do Instituto Trata Brasil, Édison Carlos.
A falta de saneamento básico também se estende à região metropolitana do Rio. Em Duque de Caxias, que tem quase 2,4 mil casos confirmados de covid-19, mais da metade dos 914 mil habitantes (56,9%) não tem rede coletora de esgoto e apenas 8,2% dos efluentes passam por tratamento. Além disso, mais de 140 mil pessoas não são abastecidas com água potável para lavar as mãos ou cozinhar alimentos, medidas simples recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) durante a pandemia.
Em São Gonçalo, terceira cidade do estado com mais pacientes diagnosticados com a doença, a situação é ainda pior. Dois em cada três moradores (66,5%) vivem sem coleta dos resíduos domiciliares e um em cada cinco (18,7%) não tem água nas torneiras. De todo o esgoto produzido na cidade, somente 10,4% é tratado.
Em meio ao colapso em hospitais do estado, com falta de leitos e equipamentos, o presidente da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon), Percy Soares Neto, acredita que ampliar os investimentos no setor de saneamento ajudaria a diminuir a pressão no sistema público de saúde, com menos pessoas doentes em virtude da prestação inadequada desses serviços essenciais.
“Para a pessoa que vive em um bairro sem esgoto, não interessa se ela é 1%, 10% ou 20% da população. É um cidadão ou uma comunidade de cidadãos que não está atendida pelos serviços”, ressalta.
Para viabilizar mais recursos, o governador Wilson Witzel abriu, no último dia 9, consulta pública para o processo de concessão do serviço de abastecimento de água e esgotamento sanitário em 64 municípios do Rio de Janeiro, atendidos pela Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae). O modelo, desenvolvido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), é baseado no de Niterói, cidade entre as 20 melhores do país em saneamento, com índice de 100% de atendimento total de água e de 95,3% de esgoto, de acordo com o Trata Brasil. Os investimentos previstos são de R$ 33,5 bilhões e o leilão deve ocorrer ainda este ano, segundo o BNDES. O edital, previsto para ser publicado no terceiro trimestre, propõe metas para as empresas que vão operar os serviços, sob pena de cancelamento do contrato.
No projeto de concessão, está mantido o benefício da tarifa social, que garante contas de água e esgoto mais baratas à população de baixa renda. O governo do Rio estima que as concessionárias invistam R$ 2,8 bilhões em água nos primeiros cinco anos de administração, com meta de atingir 100% de cobertura em oito ou 14 anos. Em relação aos outros serviços de saneamento, a projeção é que sejam injetados R$ 5,1 bilhões nos primeiros cinco anos, garantindo 90% de cobertura de esgoto no período de 15 a 20 anos.
Em um movimento para atrair mais investimentos e gerar concorrência através da participação da iniciativa privada, o Senado pode votar, ainda em junho, o novo marco legal do saneamento (PL 4.162/2019).
O texto prevê que os contratos sejam firmados por meio de licitações, facilitando a criação de parcerias público-privadas (PPPs). Ainda de acordo com a proposta, a privatização dos serviços de saneamento não se torna obrigatória, apenas garante a oferta mais vantajosa. Dessa forma, as empresas estatais podem ser mantidas, livres para participarem das concorrências, desde que se mostrem mais eficientes que as empresas privadas que participarem da licitação.
“Isso é importante por conta do déficit que a gente vive. Os recursos públicos para investimento em saneamento são cada vez mais escassos. Com isso, há a necessidade de atrair investimentos privados para o setor”, pontua a pesquisadora do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da Fundação Getulio Vargas (FGV/CERI) Juliana Smirdele.
Assim como no modelo de concessão do Rio de Janeiro, o presidente do Trata Brasil, Édison Carlos, deixa claro que, caso o PL 4.162 seja aprovado, a tarifa social continuará valendo e será fortalecida por meio das normas de referência de regulação tarifária que estabelecem os mecanismos de subsídios para quem não têm possibilidade de arcar com o valor integral. Atualmente, cada estado estabelece a própria regra, mas geralmente ela é aplicada a famílias com renda mensal de até três salários mínimos e em domicílios em que a mulher exerce o papel de chefe de família.
“A tarifa social é uma maneira de a empresa operadora entregar uma água segura, para que o cidadão tenha uma conta, o que lhe permite ter esse documento para abrir um crediário, por exemplo, e de a empresa receber um pouco por aquela água que foi consumida. Essa tarifa diferenciada é importante para o cidadão e para a empresa operadora. O marco regulatório não mexe em nada disso”, garante.
Para melhorar os índices de cobertura no interior dos estados – locais que mais sofrem com falta de serviços de saneamento, a nova lei possibilita a criação de blocos de municípios. Com isso, duas ou mais cidades passariam a ser atendidas, de forma coletiva, por uma mesma empresa. Entre os critérios que poderão ser utilizados, está a localidade, ou seja, se dois ou mais municípios são de uma mesma bacia hidrográfica, por exemplo.
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No epicentro da covid-19 no RJ, mais de um milhão de pessoas não têm coleta de esgoto e água encanada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU