31 Janeiro 2020
Os muros de um edifício amarelo em estilo Art Nouveau no coração do Parioli, bairro chique de Roma, entre embaixadas e institutos históricos, ocultam histórias de vida impregnadas de sofrimento. Traumas, abusos, rejeições, violências.
A reportagem é de Salvatore Cernuzio, publicada por Vatican Insider, 30-01-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
São as histórias de mulheres migrantes, muitas delas com filhos muito pequenos, como se nota pelos macacões coloridos pendurados no jardim. E são as histórias de ex-freiras que, provenientes da Ásia e da África, deixaram a vida abafada do convento mesmo depois de 15 anos por causa de uma crise ou porque foram expulsas da congregação, e se viram no meio da rua, vivendo em condições de vulnerabilidade extrema. Sem documentos, sem família, sem dinheiro, a ponto de aceitarem “compromissos” apenas a fim de comer e não acabar dormindo em parques e estações.
Dramas humanos que permanecem no claro-escuro das questões espinhosas que a Igreja enfrenta cotidianamente. De vez em quando, o alerta dispara: ocorreu dias atrás com a publicação da edição de janeiro do “Donne Chiesa Mondo”, caderno mensal feminina do L’Osservatore Romano, em cujas colunas o cardeal João Braz de Aviz, prefeito da Congregação para a Vita Consagrada, acendeu os holofotes sobre as problemáticas das religiosas: do burnout à questão das “fugas”.
Em particular, deu a volta ao mundo a revelação do purpurado sobre a decisão do papa de “criar em Roma uma casa para acolher da rua algumas freiras mandadas embora por nós ou pelas superioras, especialmente no caso de serem estrangeiras”. No clamor geral, enquanto no Vaticano se mantinha a máxima confidencialidade para evitar que o local fosse encontrado (pois menores estavam envolvidas), o Vatican Insider teve o privilégio de observar de perto essa estrutura desejada pelo pontífice, que, na realidade, faz parte de um projeto mais amplo dedicado a todas as mulheres em condições de vulnerabilidade.
“Chaire Gynai” é o nome da iniciativa, expressão grega que significa “Bem-vinda, mulher”. Francisco a confiou às scalabrinianas, uma família religiosa sempre atenta às questões sociais e, em particular, ao drama dos migrantes. Em maio de 2017, duas casas foram inauguradas em Roma para realizar esse projeto de segundo acolhimento, acompanhado pelo Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral.
Uma casa se encontra na Via Pineta Sacchetti, a outra, no bairro Parioli. Em ambas, no meio de refugiadas saídas do Sprar [serviço italiano de proteção aos requerentes de asilo] e de mães solteiras com bebês nascidos após uma violência, há cinco ex-freiras que abandonaram o caminho religioso. Inicialmente eram sete.
A mais jovem tem 32 anos, a mais idosa, 60; são nigerianas, senegaleses, indianas, filipinas. Todas tinha feito os votos perpétuos. Entre elas, não há nenhum caso de ex-religiosas que acabaram se prostituindo, explicam, mas a maioria sofreu traumas semelhantes a um estupro em termos de impacto psicológico.
“Não as chamemos de casos: são pessoas”, explica a Ir. Etra Modica, missionária scalabriniana que colabora na coordenação do projeto. Palermitana de origem e de alma, mas com um sotaque quase nórdico, ela vai direto ao ponto: “O papa nos pediu caridade para com cada mulher que sofre, inclusive as religiosas que saem. Para nós, elas são migrantes como as outras. A categoria ‘ex freira’ desaparece, senão pelo acompanhamento pessoal na reconstrução da vivência e na aceitação do fracasso”.
A primeira a entrar em 2017 foi justamente uma freira que, depois de uma profunda crise profissional, desistiu de tudo e se viu em uma calçada. Ela bateu na porta do instituto de Parioli, emprestado para uso das scalabrinianas. Depois dela, chegaram três imigrantes: “Ela imediatamente se pôs a serviço. Ela saiu, mas continua sendo voluntária”.
Assim como ela, colabora outra ex-freira que completou o caminho que inclui a permanência na casa de seis meses a um ano: “Limites que quase nunca respeitamos. Há pessoas aqui há quase dois anos. Elas não vão embora porque ainda estão muito frágeis”, explica a Ir. Etra.
Das cinco residentes, uma jovem, imatura na época de fazer votos, está prestes a entrar em outra congregação. “Temos muitas satisfações”, afirma a scalabriniana. No entanto, nem sempre tudo corre bem: algumas freiras continuam sentindo “raiva interior”. “São rudes, agressivas, custam a se abrir, porque falar significaria ser arrancadas de novo de si mesmas. Quase todas não podem e não querem voltar aos seus países de origem.”
Por quê? “O que eles fariam, indo para lá? Para as africanas, existem questões tribais, culturais, famílias que as rejeitariam. As indianas carregam consigo o discurso das ‘classes’. Preferem ficar e viver com dificuldades, trabalhar ilegalmente.”
Às vezes, toma-se conhecimento de situações limítrofes em que ex-freiras são empregadas como cuidadoras e faxineiras em casas paroquiais, onde o padre pede para compartilhar a cama ou em residências onde sofrem assédio. “Elas aceitam qualquer coisa, isso as torna vulneráveis. Estão aterrorizadas com o fato de os parentes descobrirem que saíram.”
O caminho prossegue, portanto, em tempos lentos: começa com uma conversa e continua com o processo da documentação (transformar autorizações religiosas em autorizações de residência), depois as terapias psicológicas oferecidas gratuitamente pelos profissionais da associação Dune.
Assistidas por voluntários e scalabrinianas, coordenadas pela diretora Ir. Eleia Scariot, as mulheres participam ainda de cursos de profissionalização e tarefas domésticas. Atividades úteis para recuperar a dimensão relacional perdida no momento do “despojamento”: “O trabalho mais difícil é reconquistar a confiança: homem-mulher, mulher-mulher, com a Igreja. Buscamos prestar um serviço à pessoa na sua globalidade”, sublinha a Ir. Etra.
Quem subsidia as iniciativas é o papa, por meio da Esmolaria Apostólica, e a Congregação para a Vida Consagrada, que não teria mais responsabilidade sobre as religiosas que saíram, mas, mesmo assim, quer ser próxima.
As scalabrinianas enviam relatórios pontualmente para o Dicastério, que, por sua vez, assinala casos de risco. “Além disso, temos uma rede entre a Comunidade de Santo Egídio e o Centro Astalli, e muitas mulheres chegam aqui de boca em boca. Ou seja, uma freira chega e diz: ‘Eu tenho uma amiga que sofre, deveria ser acompanhada, gostaria de sair’.”
Além das crises vocacionais, o véu é tirado por conflitos comunitários, má gestão da congregação, abusos de poder, resultantes de uma formação rígida demais (casos detectados principalmente nos Estados Unidos). As freiras são mandadas embora se apresentarem problemas psiquiátricos: “Temos conosco uma mulher com bipolaridade, subestimado no momento do ingresso no mosteiro”. A maioria dos problemas vem da Ásia: “Muitas vocações e, consequentemente, muitos problemas”.
O trabalho de recuperação não é fácil, mas “a experiência é muito bonita”, reitera a Ir. Etra. E é um “desafio”. De fato, algumas superioras não aprovam o projeto: “Não remam contra, mas não mostram plena acolhida. Como http://www.ihu.unisinos.br/595952-inicia-o-tempo-das-mulheres, por exemplo, lançamos a iniciativa ‘Adote uma mulher’: uma congregação disponibiliza uma soma por um ano para ser investida em escola, saúde, aluguel. Algumas aderem, outras se recusam, dizendo: elas saem de um lado, e vocês as pegam de outro?”.
Reações que andam de mãos dadas com críticas e preconceitos que as ex-freiras costumam enfrentar: “Vocês não têm vontade de trabalhar, nunca fizeram nada”. Um peso a mais no coração dessas mulheres que lutam para encontrar um lugar no mundo.
O Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o seu X Colóquio Internacional IHU. Abuso sexual: Vítimas, Contextos, Interfaces, Enfrentamentos, a ser realizado nos dias 14 e 15 de setembro de 2020, no Campus Unisinos Porto Alegre.
X Colóquio Internacional IHU. Abuso sexual: Vítimas, Contextos, Interfaces, Enfrentamentos
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Uma visita à casa desejada pelo papa para acolher ex-freiras que acabaram nas ruas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU