08 Outubro 2019
Não é preciso ser um pessimista inveterado para constatar que a situação política se degradou nos últimos anos em nível global e local: os populismos seduzem, a religião se politiza, os migrantes se reúnem nas fronteiras e as tensões geopolíticas entre os Estados Unidos, Rússia e China estão aumentando. Assumindo esse panorama sombrio, Slavoj Žižek resgata uma frase do filósofo italiano Giorgio Agamben, El coraje de la desesperanza (A coragem da desesperança), para intitular seu último livro publicado na Espanha, no ano passado, por Anagrama. São 408 páginas que podem ser lidas a um ritmo semelhante ao usado pelo filósofo esloveno ao falar em vídeos, palestras e entrevistas, passando de um tópico para outro de maneira rápida, fazendo tiques e mexendo muito as mãos.
A reportagem é de Carlos Tromben, publicada por La Tercera, 07-10-2019. A tradução é do Cepat.
Provocador como sempre, Žižek apresenta ao leitor um convite e um desafio: entrar em um túnel escuro e sem expectativas de um capitalismo global vulnerável, mas ao mesmo tempo mais entronizado do que nunca no tecido social. Após enumerar as calamidades da última década, recorre a uma imagem cinematográfica para nos situar no espaço moral a partir do qual escreve: “Pode ser que a luz no fim do túnel sejam os faróis da locomotiva que se move em nossa direção”. Mesmo assim, alerta que o pior seria ficarmos onde estamos.
O requisito para entrar neste túnel é assumir por si próprio os dois instrumentos de navegação fundamentais de Žižek, o filósofo alemão F. G. W. Hegel e o médico e psiquiatra francês Jacques Lacan.
De Hegel adota o método dialético para iluminar os pontos quentes, identificando suas contradições e as exacerbando quase até a caricatura. Assim, consegue tirar conclusões radicais e opostas à ética convencional politicamente correta da esquerda socialdemocrata, a qual detesta sem meias palavras. Um exemplo: “A maneira de combater efetivamente o ódio étnico não é através de sua contrapartida imediata, a tolerância étnica. Ao contrário, o que precisamos é ainda de mais ódio, mas o ódio político de verdade, o ódio dirigido contra o inimigo político comum”.
De Lacan extrai as distinções entre o real, o simbólico e o imaginário, e os espaços ambíguos entre cada um, para separar os elementos que estão em jogo nesse drama do capitalismo global triunfante e, ao mesmo tempo, saturado. Por exemplo, o sexo e a religião, dois aspectos do humano que foram politizados de maneira problemática nos últimos anos. “A religião fundamentalista não é apenas política, é a política em si mesma”, diz. “Já não é apenas um fenômeno social, mas a própria textura da sociedade, pela qual, de certo modo, a própria sociedade se torna um fenômeno religioso”.
Žižek é particularmente venenoso onde se cruzam o sexo e as sexualidades com o politicamente correto. A marcha do orgulho gay em Vancouver, Canadá, serve-lhe de pretexto para impugnar o aproveitamento oportunista da causa LTBGQ+ por empresas, marcas, programas de televisão, assim como contradições éticas tão flagrantes como as de Tim Cook, o CEO da Apple, que apoia os direitos dos homossexuais e transgêneros, mas se mostra completamente indiferente aos direitos trabalhistas daqueles que trabalham montando seus aparelhos tão apreciados pelas elites globais.
Žižek fustiga também os novos movimentos de esquerda como o Podemos, na Espanha, e o Syriza, na Grécia, que com cuja obsessão em querer superar o pai (a velha esquerda comunista ou a socialdemocrata desgastadas) acabam validando a teoria de Freud sobre “os que fracassam ao triunfar”. Por um lado, identifica e lamenta esse eterno retorno ao não-poder (ou a eterna impotência do anticapitalismo), por outro, denuncia a aposta obscena de muitos esquerdistas de que uma catástrofe ambiental derrube as estruturas capitalistas globais.
A resiliência do capitalismo não estava no kit teórico clássico da esquerda e se relaciona à capacidade do sistema de se incorporar com eficácia em ambientes não ocidentais. Isso gera um capitalismo que pode prescindir completamente de seu correlato moderno, como é a democracia liberal. A China seria o exemplo supremo, mas Žižek se apressa em também impugnar a imagem de um estado chinês monolítico e sem fissuras. A corrupção, a crise ambiental nas grandes cidades e a necessidade de reprimir e vigiar são provas de que o modelo incorre em altos custos e se sente vulnerável.
Essa desconsideração da democracia no oriente está associada à sua crise no ocidente. Entre os sintomas, Žižek cita a direitização das classes populares europeias, abandonadas por uma socialdemocracia que validou o capitalismo global e se entrincheirou nos temas culturais, deixando a economia para os técnicos. Há também a ideia, profundamente enraizada nas elites liberais, de que o aprofundamento da democracia por meio de eleições verdadeiramente competitivas implica uma ameaça ao sistema.
As eleições presidenciais de 2016 deixaram isso claro. Segundo Žižek, a opção verdadeira, do ponto de vista democrático, teria sido entre Sanders e Trump, mas o establishment democrata e seus patrocinadores de Wall Street se mobilizaram oportunamente para eliminar esse risco. Foi, de acordo com Žižek, um grande erro que fez de Trump a encarnação do desencanto frente ao sistema. Hoje, está instalado na Casa Branca, destruindo consensos, causando opróbrio, arrebanhando as classes trabalhadoras para a defesa de seus próprios interesses e, o que é pior, provocando pavor nos liberais que cruzam seu caminho.
A melhor metáfora para o mundo atual e o sistema que o rege seria então o de Zeno, o personagem criado pelo escritor italiano Italo Svevo: um indivíduo com altos níveis de neurose, que se sente um inepto e promete mudar, mas sem sair da reiteração eterna de tal promessa. Toda vez que deixa de fumar, trabalha com a ideia ilusória de que está fumando seu último cigarro. A vida começará novamente com uma sensação tão saudável e plena, que para senti-la novamente será necessário voltar a fumar, e voltar a deixar de fumar.
Ao longo do livro, Žižek provoca um campo de encontros incomum. Além de seus autores de fetiche, Hegel e Lacan, estão Marx e Freud, Alain Badiou, Peter Sloterdijk, Noam Chomsky, Judith Butler, a Escola de Frankfurt, como também o ex-ministro das finanças grego Yanis Varoufakis, o autor chinês de ficção científica Cixin Liu, editorialistas de ultradireita eslovenos, formadores de opinião turcos que apoiam o regime autoritário de Erdogan, etc.
Foi chamado o rockstar da filosofia, mas, em rigor, o que Žižek faz é stand-up. O texto pode ser lido e configurado como se o autor estivesse no topo de um palco contando piadas complexas. Esse cenário é, por sua vez, a posição global pela qual Žižek - o personagem se desloca fazendo palestras, sustentando debates, falando com os meios de comunicação, animando os colóquios, reunindo elogios e críticas que retroalimentam a potência de seu discurso e sua fama de polemista. Nesse sentido, é um peripatético, isto é, um filósofo que pensa não a partir da quietude e do retiro, mas do barulho e o movimento. Um comediante muito sério.
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Žižek, o comediante sério - Instituto Humanitas Unisinos - IHU