03 Julho 2019
“Descartes dizia aquilo do “penso, logo existo”. Mas séculos depois, é como se na América Latina se entrasse em uma etapa onde aqueles que estão nas comunidades rurais não interessam, não existem, são apenas recursos como o solo, o petróleo ou os minerais. Ganham identidade humana quando morrem violentamente e há uma fotografia ou vídeo para compartilhar na imprensa ou nas redes sociais”, escreve o ambientalista Eduardo Gudynas, pesquisador vinculado ao Centro Latino-Americano de Ecologia Social (CLAES), em artigo publicado por Alai, 28-06-2019. A tradução é do Cepat.
Penso que levei mais de um ano para entender o que realmente minha amiga Cata queria dizer, quando me explicava que os jovens de La Guajira, no norte da Colômbia, sobre o mar Caribe, sentiam que não havia um futuro para eles. Não se referia aos usos comuns desse tipo de frase, tais como destacar as dificuldades em poder conseguir um emprego, terminar os estudos ou poder sustentar uma família. Também não dizia que aqueles jovens eram preguiçosos ou ineptos. Não disso. Estava me explicando sobre uma condição mais radical e muito mais dramática: não existia o futuro porque muitos deles sentem que desfalecerão em algum emprego insalubre ou perigoso, serão desempregados, ou os assassinarão, seja em um roubo, um ajuste de contas ou baleados por paramilitares, e assim sucessivamente. Não há um amanhã porque acreditam que morrerão ou que nada poderá ser mudado.
Esta é uma condição dolorosa que açoita a Colômbia e outros países. É uma anulação do futuro. Sonhar com o passado para o amanhã não só deixa de fazer sentido, como também já não existe como possibilidade. Se chega esse amanhã é um presente que deve ser aproveitado a cada hora, a cada instante.
Aquelas considerações retornaram imediatamente com a morte de María del Pilar Hurtado Montaño, assassinada por paramilitares no último dia 21 de junho, em uma pequena comunidade no departamento de Córdoba. Ela era oriunda do sul do país, e pelas ameaças que lá recebeu, precisou se exilar no outro extremo da Colômbia, onde voltou a ser ameaçada. Tinha 36 anos, e com essa idade seria uma “jovem” com quase toda a sua vida pela frente em qualquer outro país. Contudo, seu futuro já é um impossível. Nesse mundo, chegar aos trinta, é viver um tempo emprestado?
O escândalo desse assassinato é maiúsculo, porque as imagens em vídeo de seu filho, chorando, gritando e esmurrando junto ao cadáver de sua mãe se difundiram massivamente, tornando impossível se fazer de distraído. Isto revela outra condição dolorosa da problemática na Colômbia e em outros países, já que parece que as pessoas se tornam visíveis, busca-se entender seus dramas e conhecer os afastados lugares onde vivem e até há compaixão por elas, mas só quando morrem assassinadas.
É como uma modernidade em sentido inverso. Descartes dizia aquilo do “penso, logo existo”. Mas séculos depois, é como se na América Latina se entrasse em uma etapa onde aqueles que estão nas comunidades rurais não interessam, não existem, são apenas recursos como o solo, o petróleo ou os minerais. Ganham identidade humana quando morrem violentamente e há uma fotografia ou vídeo para compartilhar na imprensa ou nas redes sociais.
É isto o que se deve esperar nas terras dos extrativismos? A pergunta é pertinente porque mais ou menos ao mesmo tempo daquele assassinato na Colômbia, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, participou em um ato das igrejas evangélicas lançando um discurso que defendia a liberalização do porte de armas. Lá, divertido e sorridente, com seus braços simulava estar empunhando um rifle ou uma metralhadora, apertando o gatilho imaginário para disparar. Era uma celebração da violência (1).
Então, não surpreende que o Brasil lidere o ranking de defensores do meio ambiente e da terra assassinados (57 mortes), seguido na América Latina pela Colômbia (24 mortes, terceira no mundo) (2). Quando se somam os assassinatos por outras razões, os números são muito mais altos. A violência também se repete nas comunidades rurais do Peru, Equador, Bolívia e Venezuela, e se arrastam dificuldades endêmicas em particular com grupos indígenas no Chile e Argentina.
Como se pode ver, a violência aumenta em países onde supostamente domina o cristianismo. E mais, Bolsonaro brincava de estar com esse fuzil em um ato evangélico sob o lema “Marchar para Jesus”. Por outro lado, “a Colômbia está cheia de delinquentes ultracatólicos e de gente que identifica a política como uma seita religiosa”, que define o que é correto ou incorreto, o moralmente aceitável ou reprovável”, alertava agudamente a jornalista Margarita Rosa de Francisco (3).
Está em andamento uma redefinição da religiosidade que se distancia da celebração da vida para flertar com a morte? Aí abebera essa condição pela qual “morra, e então exista”? É possível marchar para Jesus simulando disparar rifles? Estas são perguntas que também não podem ser evitadas, e em especial porque as maiorias toleram a proliferação de extrativismos que deixam paisagens de morte, tanto ecológicas como sociais.
Escandalizar-se diante das mortes, como acontece nesses dias, tudo bem, e por certo serão destacados como insensíveis os que não reagem. Mas, essa resposta já não é suficiente. María del Pilar já está morta. Compartilhar o vídeo no Twitter ou no Facebook com mensagens de dor e solidariedade à família pode ter alguma utilidade, mas também não é suficiente. O problema essencial é que os assassinatos de líderes comunitários, camponeses e indígenas continuam sem despertar a necessária reação cidadã. Poucas vezes estouram massivas manifestações, os ministros parecem imunes, e quase nunca provocam uma crise política.
Não é simples desarmar uma condição cultural que converte a morte em uma tolerada rotina. A cada dia que se retarda a mudar essas posturas, somam-se mais mortes, e essa ideia de existir na morte é um disparate. Da morte não se regressa.
1. Líder evangélico critica silêncio após Bolsonaro imitar arma em ato cristão, L. Sakamoto, 22 junho de 2019.
2. At what cost? Global Witness, 2017.
3. El moralista colombiano, M. R. de Francisco, El Tiempo, 19 junho 2019.
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Quando o futuro se desvanece, só se existe na morte? Artigo de Eduardo Gudynas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU