28 Junho 2019
Quem circula na Rua do Lazer, entre os blocos G e A da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), pode transitar por anos sem notar a figura de Dona Margarida sentada diante de seu fiteiro, no bairro de Santo Amaro, onde trabalha há 30 anos. Uma história enorme e uma memória surpreendente estão guardadas naquele frágil corpo de menos de um metro e meio e 86 anos de vida.
A reportagem é de Vinícius Sobreira, publicada por Brasil de Fato, 25-06-2019.
Margarida Oliveira Silva, alagoana da “terra do Quilombo dos Palmares, lá na Serra da Barriga”, como diz orgulhosa, nasceu em União dos Palmares (AL) em novembro de 1932, ou “logo depois da Revolução de 1930”. Os processos políticos marcaram a história de Margarida desde cedo. A revolução de 1930 depôs o então presidente Washington Luís, impediu a posse de Júlio Prestes e levou Getúlio Vargas ao poder.
Margarida garante que seu pai, o trabalhador do setor elétrico Manoel Sebastião da Silva, pegou em armas naquele embate, mas não tem certeza de que lado o pai estava ou se o grupo apenas protegia a vila de qualquer grupo que se aproximasse. Pouco após a morte do pai, em 1937, Margarida e a mãe deixaram a cidade em busca da avó materna, que partira para Palmares, cidade da zona da mata sul de Pernambuco, e não retornara. A irmã mais velha ficou em União dos Palmares, com parentes.
Sem dinheiro para passagens de trem, mãe e filha fizeram o percurso de mais de 100 quilômetros quase todo a pé. Dona Margarida conta a história em detalhes, sem perder oportunidades para dar pausas e exercitar sua língua afiada com comentários sobre política. “Fizemos o caminho todo pela Serra da Barriga, passamos por Murici – terra daquele safado do Renan [Calheiros]. Chegamos a Glicério (AL), mas o dinheiro não deu para comprarmos passagem. Imigramos com dinheiro curto”, lembra.
A dupla seguiu a pé pelo trilho do trem. Quipapá, Igarapeba, São Benedito, Maraial. Ela lembra tudo. “Em Maraial tinha um túnel, mas não dava para passar. Então compramos uma passagem de trem até Catende. De lá fomos a pé”. Dias após deixarem Alagoas, mãe e filha chegaram a Palmares pernambucana. “Cruzamos o rio, que estava seco, e chegamos à Usina 13 de Maio, já em Palmares. A gente sofreu para chegar”. Na rua do Cruzeiro encontraram a avó e tia que buscavam.
Na cidade da mata-sul do estado, aos 9 anos de idade Margarida montou uma banca de Jogo do Bicho e vendeu cachorro-quente. Mudaram-se para o Recife quando a criança tinha 11 anos de idade. Ela não tem certeza, mas acha que moravam no Alto do Céu ou em Tejipió, mas sabe que era nas proximidades do trem. “Vi uma multidão de gente na praça e perguntei o que era. Responderam que era emprego. Cheguei em casa, não disse nada a minha mãe, peguei um pedaço de charque e farinha seca, botei numa lata e de manhã fui embora para o meio do povo”, lembra.
Na fábrica, a menina teimosa – sem ter ou sequer saber o que eram “documentos” – insistiu que precisava trabalhar para ajudar a família. Ela conseguiu autorização do Juizado de Menor, da professora e da mãe, que apesar de analfabeta, foi quem alfabetizou Margarida durante os anos em Palmares. “Minha mãe me matriculou na escola, mas não teve como comprar os livros. Então eu lia qualquer pedaço de jornal ou papel que voava. Até que me deram uma Bíblia, que foi como aprendi a ler”, conta.
De volta à Fábrica de Tecidos Amalita, do grupo Othon Bezerra de Melo, a criança foi colocada para trabalhar na tecelagem. “A fábrica ficava na Praça Sérgio Loreto, onde fica a sede do Galo da Madrugada, perto de onde era a Folha do Povo”, recorda. Mesmo muito nova, Margarida gostava de participar do sindicato. “Eu participava de tudo. O que me mandassem fazer, eu fazia”, garante.
Entre as memórias, a lembrança de como os trabalhadores se mobilizavam para ajudar os companheiros de trabalho que adoeciam ou sofriam acidentes antes da existência da lei garantir o Auxílio Doença. “Uma comissão de 4 pessoas do sindicato visitava a casa do companheiro de trabalho, para ver a situação, se tinha alguém doente ou precisando de leite”, conta.
Depois os trabalhadores tentavam levantar recursos dentro da fábrica através da solidariedade dos colegas, a chamada “cota”. “Eu ia de máquina em máquina pedir ajuda aos companheiros para darem. Havia aqueles que soltavam pilhéria e tinha aqueles que davam. Naquela época não tinha INSS, Previdência Social. A Previdência não é de Bolsonaro, não foi de presidente nenhum, ela foi criada pelo povo, com o nosso esforço. Por isso eu contesto essa Reforma da Previdência. Trabalhei 38 anos e depois vi que só me restava uma bengala e um saco para pedir esmola no sinal. Não é justo um país rico, mas com um povo miserável”, completa.
Dona Margarida foi presa pela primeira vez em meio a uma greve em 1958. Por ser uma militante sindical reconhecida, foi acusada de um crime que não cometeu durante uma greve dos trabalhadores da indústria têxtil. “Desci do ônibus, andei um pouco e me prenderam. Disseram que eu havia jogado um coquetel molotov num ônibus e muita gente se machucou”, afirma Margarida. “Mas eu nem sabia de nada, havia descido uma parada antes justamente para ir para a porta da fábrica, ajudar a garantir a greve”, relembra a militante.
A segunda prisão se deu em 1965, pouco mais de um ano após o Golpe Militar de 1964. “Foi no dia 8 de setembro, às 14h. Eu já estava trabalhando na Fábrica da Macaxeira. Fomos presos eu e mais 180 companheiros de trabalho. O motivo da prisão foi perseguição política”, conta. A polícia propôs que ela assinasse um termo, mas ela teimou e rejeitou. “Eu não devia nada a eles e não poderia aceitar uma proposta imoral. Então eles me mandaram para o 'museu', dizendo que a gente era comunista”, afirma, possivelmente se referindo à atual Casa da Cultura, que funcionou como prisão até 1973. Com amigos influentes, Margarida passou poucos dias detida, mas perdeu o emprego.
Magarida Oliveira Silva se diz admiradora de Getúlio Vargas, Miguel Arraes e Leonel Brizola, além de suas companheiras de sindicalismo Cassimira Maria e, claro, Júlia Santiago fundadora do Sindicato da Fiação e Tecelagem de Pernambuco, militante do PCB e primeira mulher eleita vereadora no Recife. Nascida em 1917, Júlia defendia que homens e mulheres tivessem tempo diferente de contribuição para aposentadoria, devido às jornadas-extras que as mulheres têm com trabalho doméstico. Santiago faleceu em 1988.
Apesar da longa trajetória sindical, Dona Margarida nunca foi filiada ao antigo Partido Comunista do Brasil (PCB), mas “assinava tudo o que precisasse e estava com eles para o que der e vier”, garante. Margarida foi militante mesmo da Ação Católica Operária (ACO) da qual foi fundadora e onde teve oportunidade de manter contato com Dom Hélder Câmara. “Eu como menina, moça operária, queria construir algo para mim e minha família. E por isso entrei na luta operária”, diz a militante. “Era a força do direito de viver. Se não lutássemos, o patrão fazia o que queria. Mas como lutamos, tivemos algumas conquistas. Mas agora vem Bolsonaro e rouba os direitos e até acabou com o Ministério do Trabalho”, reclama. “E quem faz greve ainda é chamado de agitador”, completa Margarida.
Após a segunda prisão, Margarida não voltou mais a trabalhar na indústria têxtil, onde estivera dos 12 aos 33 anos. “Nem me mudar eu podia, porque a Polícia Federal não deixava, estavam em cima de mim”, conta a sindicalista. Ela começou então a vender livros na Rua do Lazer, junto ao campus da Universidade Católica, ganhando o suficiente para sobreviver. “A comissão a qual eu tinha direito, pela venda dos livros, muitas vezes eu dava de desconto para os estudantes e ganhava só 5%”, conta.
Vendeu livros durante 10 anos, até que a Unicap a convidou para trabalhar. “A universidade me deu uma chance depois do golpe. Até sugeri que colocasse minha filha, mas eles queriam que fosse eu, porque eu sabia lidar com a 'moçada'. Eles me colocaram como auxiliar acadêmica”, lembra Margarida. Ela trabalhou na universidade durante 13 anos e 8 meses, entre 1975 a 1988, quando teve um acidente vascular cerebral (AVC). Mas ela conta que o que levou a sua demissão foi um “chefe ruim e opressor” que assumiu a reitoria da instituição na época. Após ser demitida, outros padres que atuam na Unicap ajudaram ela a montar um fiteiro na Rua do Lazer.
Com 38 anos de carteira assinada, Margarida conseguiu se aposentar por tempo de contribuição. Mas sua trajetória foi bastante afetada pela segunda prisão, somada à demissão e outras restrições impostas pela Ditadura Militar. Por isso reivindicou uma indenização junto à Comissão da Anistia, criada em 2001. “Fui lá contar a história para o cara, mas o pelego não me deu nada, disse que eu só conseguiria algo se escrevesse para o Rio de Janeiro. Não recebi nada no governo Lula, nem com Dilma e agora com Bolsonaro é que não vou receber mesmo”, lamenta. A idosa afirma que não tem condições de ficar acompanhando.
O recurso ajudaria a idosa. Ela, que resume em “um bocado” o número de filhos que teve e mais quatro que adotou, revela que não é um assunto do qual goste de falar. Dona Margarida vive hoje num casebre alugado nas proximidades da Praça Sérgio Lorêto. O recurso de sua aposentadoria e do fiteiro são o que sustentam ela, sua filha Norma, de 69 anos, que sofreu um AVC e vive na cama, além de um neto que ajuda Margarida no fiteiro.
Ela contou que dias antes da entrevista sua casa havia sido invadida por policiais que buscavam seu neto. “Muita bronca tem acontecido comigo. Mas estou vivendo, teimando”, conta com tristeza. “Eu tinha chorado, pedido ajuda a Deus. Um ou dois dias depois apareceu essa menina”, conta, em referência a estudante de Direito na Unicap Marília Rocha, que iniciou uma campanha solidária de arrecadação de fraldas, remédios, alimento e outros mantimentos para a casa da idosa. Mesmo em situação adversa, Dona Margarida mantém o humor. “Hoje só vim por vir, para ninguém dizer 'ela morreu'. O povo não fala muito, mas sempre tem uma oposição, né?”, brinca.
A solidariedade, no entanto, tem lhe dado ânimo. A luta pelo bem comum e por novos valores é o que moveu os sonhos de Margarida. “Precisamos fazer a revolução da solidariedade e do amor, para que haja transformação”, avalia. Sobre o Brasil, ela considera que “nunca foi democrático”. “Sempre foi uma ditadura branca, uma ditadura econômica contra os trabalhadores. Somos um país rico que faz um povo miserável. Não existe desenvolvimento de verdade sem justiça social”, reclama. “Eu quero o bem comum, queria que o povo vivesse bem e em paz”, sonha.
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Líder sindical e presa na Ditadura, hoje ela vende livros e doces no Recife - Instituto Humanitas Unisinos - IHU