20 Março 2019
"A existência há uma única vocação: caminhar em direção ao enfraquecimento ou a Kenosis (esvaziamento) que não é perda, mas nosso encontro com o sentido", escreve Ademir Guedes Azevedo, cp, padre, missionário passionista e mestrando em teologia fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana.
Você já refletiu alguma vez sobre o significado do desgaste físico e emocional que sofremos todos os dias? Observe que hoje não somos mais os mesmos que éramos há alguns anos. Apesar de nos revigorarmos com a graça do repouso, nosso rosto não esconde as nossas fadigas cotidianas. Será que este processo faz parte apenas do ciclo natural da nossa existência? Reduzir nossas transformações físicas somente ao ponto de vista biológico é deixar de lado a melhor parte: aquela que todos os dias nos anima a continuar tocando em frente a nossa vida. Esta dimensão maior tem a ver também com o chamado à fraqueza (debilidade) que constitui a vocação cristã.
As marcas que a vida imprime em nosso corpo podem ser interpretadas como as moradas de Deus em nós. Quando olhamos por esta janela, aquilo que nos parece ser uma perda, na verdade é um sinal de que estamos nos transformando em pessoas mais divinizadas e, sobretudo, mais humanas. Um exemplo simples: os cabelos brancos de nossos pais sinalizam apenas a velhice deles? Não! Aqueles cabelos brancos carregam toda uma história de amor, doação, dificuldades, preocupações, vitórias, decepções, noites mal dormidas, ternura, cuidado. Tudo investido para que a vida dos filhos desabrochasse. O sentido, nesta perspectiva, se revela nas ações nobres que fazemos para que os outros tenham realmente a vida. Essa é a lógica da semente que, para nascer, precisa morrer.
Vejamos o caso de Jesus. As suas chagas, além de identificar o Ressuscitado com o mesmo Jesus histórico, são as marcas indeléveis que ele carregará para sempre e nos dizem que o mesmo optou por nós até o último momento, mas assumindo o estilo da fraqueza, visto que deixou-se ferir por nós. Por trás de todo desgaste físico precisamos aprender a interpretar o sentido espiritual e é isso que enriquece a nossa existência.
Se isso é verdade, comece a olhar sua história como uma trajetória de dom para os outros. Adquire igual sentido a metáfora da chama de uma vela: o calor vai consumindo a cera, mas com a missão de iluminar. É evidente que, ao longo dos anos, caminhamos para o enfraquecimento. A debilidade, no entanto, não é o nosso destino final, mas é o salto para a nossa divinização/humanização. Quando chegarmos a tal ponto seremos plenos de Deus, visto que nos consumamos pelos outros. Nossa história se transforma em um verdadeiro holocausto de amor. Lida a partir desta ótica, a existência há uma única vocação: caminhar em direção ao enfraquecimento ou a Kenosis (esvaziamento) que não é perda, mas nosso encontro com o sentido.
Por outro lado, quando olhamos para a história, fala-se sempre de progresso. Baseado neste discurso, criam-se estruturas de exploração da natureza, intensifica-se o comércio, insiste-se em civilização esclarecida, desenvolvimento da técnica, enfim, um conjunto de fatores são defendidos em nome de um aparente melhoramento do mundo. Mas esse percurso leva em direção ao poder que domina. Vai completamente contra a estrada do enfraquecimento da qual falamos. Quando Heidegger deparou-se com a perda de controle da humanidade diante do chamado progresso tecnológico, afirmou: “só um Deus poderá nos salvar”. Na verdade, só o estilo de vida débil pode reverter a tragédia que criamos com a nossa capacidade de controle e domínio. Débil aqui quer dizer atenção com os fracos e descartados. Débil como tolerância com os outros, saber esperar, caminhar no passo lento do próximo, sem o desejo de vencê-lo, permitindo que seja a caridade que triunfe em tudo. Em outras palavras, só quando começarmos a trilhar as vias da Kenosis será possível reencontrar a nossa humanidade.
Tal perspectiva de interpretação da vida faz-nos repensar os nossos conceitos religiosos que usamos para proclamar o santo nome de Deus. Por exemplo, o famoso discurso “Deus acima de todos” não representa uma imagem de um Deus guerreiro, destruidor e tirano, o qual é totalmente diferente daquilo que Jesus revelou através da sua Kenosis (cf. Fl 5,5)? Por acaso não seria a Kenosis a estrada que Deus escolheu para nos ferir com o seu amor? Não foi a sua encarnação a dissolução de toda forma de poder desse mundo? Se foi assim que Deus quis revelar-se, então as marcas da fraqueza que carregamos em nós são as únicas evidências de que realmente somos discípulos. E é justamente a esse Deus que se desgastou por nós que queremos segui-Lo até o fim, mesmo quando alguns insistem em manipular a sua mensagem.
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A vida nas pegadas da Kenosis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU